Pressão das redes vai manter o debate sobre racismo vivo em 2021

Trabalho de comunicadores negros nas redes sociais fará o discurso antirracista ganhar força, potencializando a intersecção com o jornalismo

Cleidiana Ramos
O jornalismo no Brasil em 2021

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Tabu durante muito tempo em canais da mídia brasileira, o racismo e os movimentos que o enfrentam se manterão firmes na pauta do próximo ano. Em 2021, o jornalismo independente e a movimentação de ativistas e influenciadores da causa antirracista nas redes sociais ganharão mais força como protagonistas do debate. Parte de uma luta que atravessa a história do país, o antirracismo e a valorização da cultura afro-brasileira encontrará no ambiente digital ainda mais combustível para a luta pela diversidade e representatividade no jornalismo e, consequentemente, nos diversos meios sociais.

A circulação de conteúdo no Facebook, Instagram, Twitter e Youtube fez emergir novas e novos agentes que têm potencializado a discussão étnico-racial. Se a dinâmica das plataformas limitam debates aprofundados, as repercussões costumam ser intensas. Os jornalistas negros ainda são minoria nos espaços profissionais tradicionais, mas estão presentes de forma cada vez mais expressiva nos canais independentes. Sem falar nos comunicadores, pessoas que não têm formação específica em jornalismo, mas vêm ocupando as redes sociais. Tal fenômeno potencializa uma rede que historicamente luta para fazer circular as pautas relacionadas ao combate ao racismo.

Em 2020, o trabalho desses jornalistas, comunicadores e comunicadoras influenciaram a opinião pública e ajudaram a moldar o discurso e as práticas jornalísticas. Em 2021, veremos essa dinâmica se intensificar, beneficiando-se da intersecção crescente entre o campo jornalístico e outras formas de comunicação nativas do ambiente digital. Em especial, merecerá atenção sua potencialidade para pautar mídias tradicionais.

Em 2020, o trabalho de jornalistas negros nas redes sociais ajudaram a moldar o discurso jornalístico.

A importância dos influenciadores

Nas redes sociais, a ascensão expressiva de influenciadores digitais vem amplificando o discurso de valorização das culturas afro-brasileiras. A filósofa e escritora Djamila Ribeiro, por exemplo, é uma representante sólida desse movimento. Beneficiando-se da repercussão de suas opiniões, Djamila publica livros, tem atuação constante em redes sociais e é citada no meio acadêmico e em conteúdos jornalísticos. Além disso, tem presença constante na revista Marie Claire e é colunista do Grupo Folha.

No mesmo ambiente surgiram jovens como Nath Finanças, que tem 21 anos e dá dicas sobre organização financeira para quem é de baixa renda no Youtube e no Twitter, mas também comenta sobre racismo e seus desdobramentos. Ela tem uma coluna no jornal Extra e no site Voz das Comunidades, ambos do Rio de Janeiro. Kaíque Brito, por sua vez, tem 16 anos e já acumula um bom número de seguidores. Ele comenta sobre política, jogos e outros temas, mas está também atento às questões antirracistas.

Em outro segmento, profissionais com carreiras consolidadas igualmente têm ganhado espaço e mais visibilidade para além dos espaços acadêmicos. É o caso do professor e jurista Silvio Almeida. A repercussão nos canais de Almeida, especialmente sobre as consequências do racismo na produção de desigualdades no Brasil, o levou ao programa Roda Viva, em junho deste ano. Sua entrevista alcançou uma repercussão significativa em outras mídias e nas redes sociais.

Articulação em massa

Foi a pressão oriunda das redes que levou o programa Em Pauta, da Globo News, a realizar, em junho, um programa protagonizado apenas por jornalistas negros. O episódio aconteceu depois que a emissora pôs no ar uma edição do programa somente com jornalistas brancos para comentar a morte de George Floyd, um homem negro, sufocado até à morte por um policial branco, Derek Chauvin, acontecimento que provocou uma onda de protestos nos Estados Unidos e em vários outros países.

A série de críticas recebidas especialmente pelo Twitter fez a emissora levar ao ar uma edição especial, apresentada por Heraldo Pereira, negro, com a participação das jornalistas Aline Midlej, Flávia Oliveira, Lilian Ribeiro, Maju Coutinho e Zileide Silva. Todas negras, elas contaram suas experiências com o racismo. O sucesso foi tanto que o programa foi exibido novamente no Globo Repórter, da TV Globo.

Além de ilustrar o poder de articulação das redes, o episódio é também adequado para analisar porque ainda é necessária pressão pública para que o maior grupo de mídia brasileiro aborde as consequências do racismo de forma aprofundada e contínua, e não só em situações especiais. O racismo, apontam os movimentos negros, é estrutural e estruturante. Mas as elites econômicas do país, as mídias comerciais incluídas, historicamente alimentam a ideia de que o racismo opera pontualmente. Isso significa considerar que o racismo no máximo atinge indivíduos, ignorando os desdobramentos coletivos da tragédia que foram os cerca de 300 anos de escravidão no Brasil.

Essa equação também atinge o jornalismo profissional.

Uma lenta caminhada

Os números sobre a presença de mulheres e homens negros no jornalismo são difíceis de mensurar, pois são poucos os estudos com esse foco. Mas esse debate ganhou maior espaço nas entidades de classe há mais ou menos 20 anos. A visibilidade para essa presença menor de negras e negros em redações coincide com o início das políticas de ações afirmativas, como as cotas nas universidades. Coincide também com o início dos governos presidenciais do Partido dos Trabalhadores (PT), partido com o qual movimentos sociais próximos à pauta étnico-racial possuem alguma afinidade.

Em 2012, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, realizou o estudo intitulado “Quem é o jornalista brasileiro?”. A pesquisa ouviu 2.371 jornalistas de todos os Estados e do Distrito Federal. Dentre os respondentes, 72% declararam ser brancos; 18% pardos; 5% negros; 2% amarelos e 1% indígenas. Não apontaram cor 2% dos entrevistados.

De lá pra cá, é possível notar um número maior de pardos e negros nos cursos de jornalismo. Mas isso não significa inserção automática no mercado de trabalho. Além disso, quando a inserção ocorre, dificilmente jornalistas negros chegam a posições de comando, como chefias de editorias ou os postos de visibilidade nas TVs.

A resposta que vem das redes

Por outro lado, comunicadoras e comunicadores negros, alguns formados em jornalismo, conseguem ocupar posições de protagonismo em canais nas redes sociais. também uma maior diversidades das plataformas da chamada mídia negra, como o Correio Nagô, criada pelo Instituto Mídia Étnica (IME). O projeto foi fundado em Salvador em 2005 para auxiliar estudantes de comunicação negros a se preparar para encontrar posições no mercado de trabalho. Vários dos jovens que participaram de projetos do IME atuam na mídia comercial e em canais independentes.

Outro exemplo é o Instituto Geledés. A organização tem um site que repercute artigos e outras produções sobre questões étnico-raciais e culturas afro-brasileiras, dando especial destaque à produção intelectual de mulheres. Outras plataformas também ganharam força, como Blogueiras Negras e a seção de colunistas do Mídia Ninja, que reúne articulistas negros, sobretudo mulheres. No ano passado surgiu o Mídia 4P, um canal de mídia negra hospedado no site da Carta Capital.

Diferentemente de outros tempos, as pautas que interessam aos movimentos negros, como as denúncias sobre racismo, não dependem mais de jornais ou TVs para encontrar ressonância. Agora é o barulho de uma opinião pública em rede que vem contribuindo para fazer o jornalismo se movimentar em direção à diversidade.

Observaremos a ampliação da circulação de discussões étnico-raciais em espaços alternativos.

Nas redações dos meios de comunicação, mesmo os mais antigos e comerciais, as antenas de adequação à pressão das redes estão cada vez mais conectadas a esses novos agentes. Dentre os sites da mídia comercial, o UOL é o que mais tem ampliado a sua rede de colunistas negros: Djamila Ribeiro, Elânia Francisca, André Santana.

Em 2021, observaremos a ampliação da circulação de discussões étnico-raciais em espaços alternativos. O resultado será uma maior atenção à temática, fazendo crescer também o interesse do jornalismo como um todo.

Passos antigos

Mas o que parece novo tem precedentes. Ocupar espaços às margens do sistema mantido pelas elites é uma ação antiga dos grupos vitimados pelo racismo no Brasil.

Foi por meio de um boletim que a Revolta de Búzios, ocorrida em Salvador em 12 de agosto de 1798, foi anunciada. No campo das artes, Abdias Nascimento, indignado com a ausência de temas relacionados à história afro-brasileira, fundou em 1944 o Teatro Experimental do Negro (TEN). Em 1974, o Ilê Aiyê levou para a rua as cores do movimento pan africanista e uma reivindicação a partir da estética com o lema: “Negro é lindo”. Quatro anos depois foi fundado o Movimento Negro Unificado (MNU). A unificação é apenas no nome, pois nele estavam aglutinados os mais variados agentes de resistência das culturas negras: capoeira, sindicatos e candomblés. Aliás, a resistência por meio dos terreiros e das irmandades negras católicas é tema que merece uma abordagem especial. O jornal Irohin, fundado pelo jornalista Edson Cardoso, fez história, assim como outras publicações semelhantes.

Não é de agora a existência de uma rede de agentes diversos disputando espaços na difusão de informação. A pauta sobre diversidade étnico-racial sempre circulou, principalmente nos jornais impressos. Mas até metade dos anos 2000 elas dependiam do protagonismo de jornalistas. Agora, ela conta com muitos agentes atuando com capilaridade para mobilizar seguidores e exercer pressão. Em 2021 não será diferente.

Observaremos no ano que vem a atuação de grupos cada vez mais ruidosos nas redes sociais e, portanto, difíceis de serem silenciados. Inclusive entre jornalistas que já não temem serem chamados de ativistas, porque assim o são, e podem recorrer a novas linguagens e também a uma rede de apoio mais consistente. Dificilmente haverá recuo ou silenciamento das questões étnicos-raciais nos espaços de comunicação social.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Cleidiana Ramos
O jornalismo no Brasil em 2021

Jornalista, doutora em antropologia, professora visitante na Uneb. Mora em Salvador, Bahia.