Retrocessos nas relações de trabalho podem comprometer ainda mais a qualidade do jornalismo em 2021

Após um ano exaustivo e de avanço da precarização, em 2021 devemos assistir ao fortalecimento das organizações profissionais como forma de garantir condições de trabalho dos jornalistas e a qualidade do seu produto

Maria José Braga
O jornalismo no Brasil em 2021

--

Pode uma doença provocar mudanças profundas nas relações humanas, nas dinâmicas sócio-políticas e, em especial, na organização do trabalho, como modo de produção e reprodução do ser social? A resposta não é assertiva e, sim, subjuntiva: poderia. A dúvida abre janelas de possibilidades, mas, em 2021, as portas para as transformações profundas devem permanecer fechadas num mundo que gira em torno da lógica do capital.

A Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, continua a surpreender e assustar o mundo, em dezembro de 2020, nove meses depois de a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificá-la como uma pandemia.

Observando os efeitos provocados pela pandemia nos mais diversos países, é possível afirmar que as transformações positivas desejadas por muitos não ocorrerão. O futuro não surge de repente, sem reflexões e ações no presente. E o que se assiste é a manutenção das relações sociais estratificadas com desigualdades entre países e entre grupos sociais, falta de solidariedade e aprofundamento da crise econômica mundial, com os consequentes efeitos negativos para a classe trabalhadora (sempre a classe trabalhadora paga o preço das crises).

No jornalismo profissional, o cenário visto durante a pandemia também não está sendo, em geral, de transformações positivas. Ainda que tenham surgido, nos últimos anos, novos arranjos econômicos para o trabalho jornalístico (cooperativas, coletivos, oscips e outras), a maior parte da informação continua a ser produzida por profissionais empregados de empresas jornalísticas, de grandes corporações a pequenas empresas de assessoria de comunicação/imprensa.

Para que se intensifique a valorização do jornalismo, é preciso valorizar o profissional jornalista.

E a pandemia escancarou a precarização das relações de trabalho, sendo também pretexto para aprofundá-la. No mundo todo, jornalistas passaram a trabalhar mais pressionados e, no caso do Brasil, com salários reduzidos. Reconhecidos legal e socialmente como trabalhadores essenciais, os jornalistas não tiveram o mesmo reconhecimento por parte de seus empregadores.

Pesquisa realizada pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) junto aos 31 Sindicatos de Jornalistas existentes no país revelou que mais de 4 mil profissionais tiveram impactos salariais com a pandemia. A maioria (90%) teve redução de 25% no salário com uma suposta redução, na mesma proporção, da jornada diária de trabalho. Até julho, 110 empresas haviam promovido alterações contratuais. Além das reduções salariais (de 25%, 50% e 70%) houve 81 suspensões de contratos e 205 demissões.

Do ponto de vista da saúde mental, a situação é ainda mais alarmante. Outro levantamento da FENAJ, realizado em junho, revelou o crescimento da pressão no trabalho. Do total de respondentes, 55% apontaram acúmulo de tarefas, ampliação da jornada e mais cobrança por resultados. O aumento do estresse é ainda mais evidente para as mulheres jornalistas. Em uma outra pesquisa da FENAJ, realizada com recorte de gênero, 85% das jornalistas que são mães disseram sentirem-se sobrecarregadas.

O trabalho em domicílio (75% da categoria passou a trabalhar em home office) contribuiu para o aumento do estresse. Se por um lado ele foi importante para garantir o isolamento social e proteger o jornalista do contágio, por outro revelou aspectos impactantes na saúde mental do trabalhador. A indistinção entre espaço laboral e espaço da vida privada, a indefinição da jornada diária de trabalho, a imposição de uma atenção permanente aos canais de comunicação (e-mails, mensagens por aplicativos etc) e a necessidade de utilização (e aquisição) de tecnologias provocaram mais estresse.

A questão que se levanta é se o trabalho em domicílio será majoritariamente mantido depois da pandemia. No jornalismo, o mais provável é que não. Isso porque a produção jornalística remota provocou uma grande queda na qualidade do produto ofertado à população: das imagens e áudios feitos pelas próprias fontes à falta de interação entre repórteres e seus entrevistados, passando pela superficialidade na apuração de assuntos complexos.

O trabalho em domicílio será mantido depois da pandemia? O mais provável é que não.

Para recuperar credibilidade, fidelizar o público conquistado durante a pandemia e conquistar novas audiências, quem produz jornalismo deve, em 2021, investir na qualidade de seu produto. E jornalismo de qualidade não se faz a distância e sem garantias de condições de trabalho para os jornalistas.

Se durante a pandemia houve mais precarização nas relações de trabalho, não há elementos indicativos de que, passada a crise sanitária, haverá no Brasil e no mundo uma revalorização da prática jornalística e dos profissionais que a exercem. O jornalismo, como setor de serviços, está inserido na chamada Indústria 4.0, um fenômeno recente que vem modificando as formas de produção e as relações de trabalho. E as transformações rumam à “escravidão digital”, expressão cunhada pelo sociólogo Ricardo Antunes, coordenador de Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GTMT/Unicamp).

Paradoxalmente, para que se mantenha e se intensifique a revalorização do jornalismo pelo público, ocorrida durante a pandemia, e para garantir a qualidade do jornalismo em 2021, é preciso valorizar o profissional jornalista. Como trabalho intelectual e vivo (que só pode ser desenvolvido pelo ser humano), o jornalismo requer trabalhadores qualificados e condições dignas de labor para se realizar. As formas de produção e também as relações de trabalho estão diretamente relacionadas à qualidade da informação jornalística, fruto dessa atividade essencialmente humana.

Não há, portanto, outra possibilidade para a prática jornalística que o enfrentamento à precarização das relações de trabalho, com o fortalecimento da organização dos jornalistas. É preciso resistir à tendência de destruição do trabalho. É preciso recusar e confrontar a imposição da servidão.

Uma das alternativas já adotadas é a constituição de novas formas de organização do trabalho, sem a relação patrão/empregado, como já mencionado. Mas para fortalecer esses novos arranjos e também permitir o surgimento e a sobrevivência de pequenos e médios veículos de comunicação, em 2021 e nos anos futuros, é preciso pensar em como garantir outras formas de financiamento para a produção jornalística, para além da publicidade.

A Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) lançou recentemente sua Plataforma para um Jornalismo de Qualidade, que prevê a taxação das grandes plataformas digitais para a constituição de um Fundo de Apoio e Fomento ao Jornalismo. O financiamento público é um mecanismo eficaz para garantir a produção jornalística em arranjos produtivos integralmente geridos pelos próprios jornalistas. Isso será um grande passo para garantir a pluralidade e a diversidade da informação jornalística, necessária para efetivar o direito do cidadão e da cidadã à informação.

Jornalismo só se faz com jornalistas, trabalhadores, seres humanos que precisam de vida digna para contribuir, com seu trabalho, para que a vida seja digna para toda a humanidade.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

--

--