A batalha da Arena 2

Jornalismo em Pé
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7 min readSep 13, 2016

O mais emocionante ouro brasileiro deste 2016 brotou da genialidade de Tó, paralisado cerebral que largou a venda de salgadinhos para ser campeão.

Tó abraça seu irmão Fernando, que abraça seu irmão Tó, que emocionam todo o mundo. ©Daniel Zappe/MPIX/CPB

Era julho de 1968 quando, em São Paulo, um parto dramático deu à luz Antônio Leme. Problemas com o cordão umbilical e, em consequência, oxigenação no cérebro resultaram em uma paralisia cerebral bastante comprometedora para seus movimentos. O jovem Antônio não conseguia dominar seu corpo e cresceu com dificuldades na fala. Cinco anos depois, nasceria seu irmão Fernando, companheiro fundamental para os perrengues da vida e, talvez ainda mais importante, adversário de tantas rivalidades — no carteado, na dama e em tudo mais que dava. “A gente sempre foi muito competitivo”, diz Fernando. Quis o destino que 43 anos depois do começo desta parceria eles rolariam juntos no chão da Arena da Bocha, sob aplausos e choros da torcida brasileira, na vitória mais tocante deste 2016 histórico.

Veja a emocionante comemoração dos irmãos

“Me joga no chão”, pediu Tó ao irmão Fernando, que dedicou o momento ao pai dos dois, que faleceu em fevereiro. ©Daniel Zappe/MPIX/CPB

Antônio é Tó, capitão da equipe brasileira de Bocha, na categoria BC3, reservada aos atletas que têm maior comprometimento motor em todo o esporte paralímpico. Fernando é seu calheiro, sem qualquer ação ativa no jogo, um ajudante que segura a calha, uma rampa que serve para o disparo das bochas, que Tó lança com o toque de uma antena em formato de mão, acoplada a seu capacete.

Conheça mais da classe BC3 da Bocha.

A vida dos dois irmãos, como a de tantas famílias que possuem entes que precisam de intensivos cuidados, não foi uma linha reta. De São Paulo, a família se mudou para Jacareí, vizinha a São José dos Campos. Foi lá que, por dez anos, Tó trabalhou vendendo salgadinhos pelas ruas da pequena cidade. 2006 mudou sua vida. Carlos Eduardo Dudi, abnegado professor de Educação Física, estava introduzindo a bocha adaptada em Jacareí e abordou Tó na rua. Tó achou que era gozação: “eu? atleta?”

O convite era verdadeiro. Seu irmão passou a lhe ajudar. Tó virou um craque. Em 2014, foi campeão parassul-americano no Chile. Em 2015, no Parapan do Canadá, voltou com o bronze. O título mais importante de suas vidas veio justamente no Brasil que tanto ama, na quente tarde desta segunda-feira, 12 de setembro. O ouro nas duplas mistas foi conquistado em parceria com a reservada Evelyn Vieira, paulista de 39 anos, que tem Atrofia Muscular Espinhal, uma doença que lhe tirou os movimentos das pernas e que limitou a destreza dos membros superiores. A reserva da equipe é a simpática Evani Calado, 26 anos, paralisada cerebral, pernambucana de Garanhus, que não tem nada de calada e que, com um sorrisão metálico do aparelho, adora dizer que, além de campeã paralímpica, é também publicitária.

A Arena Carioca 2 recebeu um bom público para celebrar os novos campeões paralímpicos da classe BC3 da bocha. ©Daniel Zappe/MPIX/CPB

Quem vê a leveza na foto acima não pode imaginar como foi sofrida a vitória na final sobre a Coreia do Sul de Ye-Jin Choi, Ho-Won Jeong e Han-Soo Kim, nada menos que, na ordem, o campeão, o vice e o quarto lugar na disputa individual nas Paralimpíadas de Londres 2012. A toalha que Fernando levanta com orgulho na sua mão direita está suja de sangue. Sangue de Tó, que se mordeu a boca ao discordar de uma punição da arbitragem no último set, o que poderia ter decidido a partida em favor dos asiáticos. “Fiquei muito nervoso porque achei que poderíamos perder”, disse Tó na saída da final, sempre traduzido por seu irmão.

Foi um jogaço-aço-aço. Antes da partida, o clima na Arena Carioca 2 estava esquisito. O Brasil recém havia perdido a final da categoria BC4 para a Eslováquia e, quando os finalistas da BC3 entraram em quadra, havia quase mais torcedores sul-coreanos do que brasileiros. E eles faziam muito barulho!

A primeira jogada da partida foi sul-coreana. A branca de referência foi jogada numa diagonal curta, na esquerda, lado oposto de onde Tó estava posicionado. O gênio então pediu a calha mais alta a seu irmão e mandou a bocha azul com força suficiente para expulsar, por milímetros, a branca da quadra. Tó comemorou demais: a regra manda o juiz devolver a bocha-referência ao centro. Foi a chave para o Brasil dominar o set e vencer por 3 a 0, ou seja, após seis lançamentos de cada equipe, as três bochas mais próximas à branca eram brasileiras.

Evelyn Viera é a discreta da dupla. Tó faz festa. Abre o sorrisão e grita alto em todas as boas jogadas. ©Daniel Zappe/MPIX/CPB

No segundo set, o Brasil escolheu jogar a branca para longe. A parcial foi muito disputada, com viradas constantes, e terminou 1 a 0 para a Coreia. No terceiro, os coreanos novamente forçaram a branca na diagonal curta esquerda e lideraram a série por muito tempo, com risco de placar dilatado. Foi quando, novamente, Tó mostrou toda sua capacidade. Uma casquinha na bocha adversária, estilo jogada de sinuca, e o prejuízo foi mínimo: fim de set em 1 a 0 para a Coréia. A decisiva parcial começaria em 3 a 2 para o Brasil.

Foi o set mais emocionante que muitos dos que acompanham bocha já viram. Aqueles que assistiam pela primeira vez, a maioria do estádio que já estava com bom público, descobriram como um jogo de bocha pode ser eletrizante. O Brasil arriscou outra vez na bocha branca longa. Na jogada seguinte, uma das mais decisivas do set, Tó foi mal, deixou sua bocha distante da referência e os sul-coreanos não perdoaram. Evelyn tinha uma jogada difícil a fazer. Mandou bem até, mas o juiz de pista viu uma irregularidade. A calheira deveria ter retirado a calha da posição logo depois do arremesso. Os juízes — um deles, argentino — se reuniram por longos minutos.

O público brasileiro, mesmo sem entender, percebeu que o clima não era bom e começou a vaiar. As notícias eram péssimas. O Brasil perderia a bocha lançada e, depois de lançar todas as suas seis bochas, apenas assistiria aos sul-coreanos mandarem ainda duas bochas extras. Tó foi ao desespero, começou a reclamar com o juiz efusivamente. Seu irmão Fernando também ficou nervoso. Tó se mordeu, sangrou. A delegação brasileira xingava o árbitro desde a arquibancada. O público vaiou e começou a bradar: “não vai ter golpe”. A partida ficou parada por 15 minutos. O Brasil ainda tinha dois arremessos, e Fernando percebeu que Tó precisava se acalmar. Com as mãos (o calheiro não pode falar, nem olhar para a disposição das bochas), pediu tranquilidade ao irmão, limpou sua boca com uma toalha branca e apontou a calha ao gosto de Tó, que mandou um disparo espetacular na paralela! Mesmo com toda a tensão, o gênio conseguiu o arremesso que precisava. No último movimento brasileiro no campeonato, Evelyn ainda mandou um arremesso tático, fechando o ângulo para as duas derradeiras bochas sul-coreanas.

©Daniel Zappe/MPIX/CPB

Nervosos, sob intensa pressão da torcida e da comemoração de Tó, os então campeões olímpicos fraquejaram. Mandaram mal demais, e o Brasil venceu por 5 a 2! Que festa! Que alegria! Mesmo os mais experientes amantes do esporte, fanáticos há algumas décadas, não acreditavam estar vivendo tanta emoção. Tó pediu colo para seu irmão. E os dois rolaram no chão! Fernando, para provar todo o empenho (não só o de quadra, mas como da vida toda de provações) levantou a toalha para o público e a depositou como uma bandeira no centro da quadra. O ápice do lindo êxtase era simbólico, inesquecível.O hino tocou, muitos choraram na arquibancada. Na saída, todos queriam abraçar e entrevistar os campeões.

— Ô Tó, quando você vendia pastéis em Jacareí, você era bom?
Era!
Mas é melhor vendedor de pastéis ou jogador de bocha?
Jogador de bocha!
— Ali no momento mais tenso da partida, o que passou pela partida?
Eles erraram! Mas Deus é fiel e honrou nosso trabalho.
— Por que ficou tão nervoso? Achou que poderia escapar o ouro?
Sim! Podia escapar! Eu pensei que a gente iria perder. Mas Deus é brasileiro!
— Como foi essa comemoração? Foi pensada?
— (Fernando intervém): Não foi pensada. Foi ele que pediu: “me joga no chão”. Foi uma maneira de mandar uma energia para o nosso paizinho que está lá no céu desde fevereiro. Ainda não caiu a ficha. Aliás, quando alguém me explicar o que é ficha, eu posso dizer se a ficha caiu.

Quando alguém me explicar o que é esporte, vou contar desse dia.

Caetano Manenti

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