Plantar aipim, colher medo

Técnicos apontam irregularidades, agricultores reclamam de falta de diálogo e projeto de barragem em área fértil angustia o município de Cachoeiras de Macacu (RJ)

Jornalismo em Pé
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texto: Caetano Manenti
fotos: Mídia Ninja

Pé na terra, mão na enxada

Quase nada importante se pode descobrir sobre a vida de alguém apenas num primeiro aperto de mão. A procedência rural do sujeito, no entanto, se sabe. A palma, talhada na enxada, torna-se mais dura e seca, assim como a pele. A impressão é de que elas perdem em sutileza em troca da capacidade de trabalho na lavoura. É com ásperos apertos de mão, entre uma colheita e outra, ou mesmo durante uma delas, que os orgulhosos agricultores da parte baixa do município de Cachoeiras de Macacu, ainda aos pés da Serra Fluminense, costumam receber os forasteiros.

De quatro anos para cá, entretanto, o povo da roça garante que a vida mudou: é o medo de terem suas vidas afogadas justamente por aquele rio que atravessa suas histórias.

Voz emocionada da comunidade, Lena foi batizada no “Rio Guapi” e rejeita barragem onde viveu seus 38 anos.
foto: Caetano Manenti

Foi, então, com os olhos marejados que a agricultora Rosilene Viana de Melo, a Lena, revelou sua dor:

- Nós estamos indignados! Entraram empresas na nossa área para começar esta barragem sem ao menos ter feito uma audiência pública com o pessoal, sem ao menos ter vindo qualquer entidade do Estado para conversar conosco.

Nascida há 38 anos na região, batizada no rio a ser represado, casada numa igreja que está ameaçada de ser tomada pelas águas, Lena, embora transborde sinceridade no seu discurso, pode até ser considerada uma personagem sob suspeita nesta história, tamanho o envolvimento de sua família com aquelas terras verdes, cobertas de um lado ao outro de aipim e milho.

— Quando os meus avós chegaram na localidade, não existia nada. Chegaram do Espírito Santo. Chegaram com o meu pai ainda criança. E foi ali que meu pai trabalhou para que hoje tivéssemos uma terra produtiva. A gente espera que possa continuar nesta localidade, fazendo aquilo que nossos pais nos ensinaram, aquilo que estamos passando para os nossos filhos. Nós, povo de Serra Queimada e do entorno do rio Guapiaçu, estamos indignados!

Agricultores criticam, técnicos também

As palavras de Lena ganham peso com a contundente crítica do geógrafo Paulo Alentejano, da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Em abril de 2014, após dois anos de pesquisa, o órgão publicou um relatório detalhado, que discrimina uma série de problemas e ilegalidades por parte do Governo do Estado do Rio de Janeiro no desenvolvimento da barragem do rio Guapiaçu — projeto que tenta obter a licença ambiental para começar suas obras.

— Há uma grave contradição: a Secretaria Estadual do Ambiente é, ao mesmo tempo, a proponente e a avaliadora do projeto. É um conflito de competências absurdo, que não pode ser levado adiante! É insustentável do ponto de vista do processo de licenciamento ambiental. O governo decretou, em setembro de 2013, a desapropriação de área para barragem antes mesmo de existir o Estudo de Impacto Ambiental. É mais uma ilegalidade absoluta deste processo. Antes de discutir o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental, você não pode decretar a desapropriação da área. Para piorar, em novembro de 2013, o governo decretou indenização de R$5 mil reais por hectare para quem for desapropriado.

(Paulo Alentejano, da Associação dos Geógrafos Brasileiros)

Colega de Paulo na Associação dos Geógrafos Brasileiros, Eduardo Barcelos utiliza outros argumentos para não admitir a barragem em Cachoeiras:

— Nós estamos perto do maior mosaico de unidades de conservação do Rio de Janeiro. Nós estamos no Corredor da Serra do Mar, que foi declarado pelo Ministério do Meio Ambiente como região prioritária para a conservação, não só da biodiversidade, mas também dos mananciais hídricos destas bacias. Portanto, o estado brasileiro, desde 2002, aponta esta área como destinada para a recuperação ambiental! Ainda há a questão da qualidade da água: (o projeto pretende) inundar uma área agrícola, com um manejo de, pelo menos, 50 anos, para construir uma barragem com fins de abastecimento humano. Alagar pastagens, cultivos agrícolas, solo, calcário e ainda nitrogênio e fósforo dos insumos agrícolas é um prato cheio para o processo que se chama eutofrização ou apodrecimento das águas. É um risco para toda a região leste metropolitana.

( Eduardo Barcelos, da Associação dos Geógrafos Brasileiros)

Sem medo de trabalho

Enquanto os técnicos usam a ciência para evitar a barragem, moradores reclamam sob um olhar profundo, quase sempre triste. É o caso do falador Laerte Cordeiro, de 63 anos. Fluminense de Campos dos Goitacazes, largou a cidade natal em 1969 para se tornar agricultor na região de Cachoeiras de Macacu. Na localidade de Serra Queimada, hoje trabalha como motorista da van escolar para reforçar os proventos que ainda obtém com a roça e com a aposentadoria rural de um salário mínimo.

- Me sinto prejudicado, porque, quando vim de Campos, escolhi esse lugarzinho para viver. Agora estou sendo expulso! Gostaria de continuar aqui! Gostaria de continuar aqui! Infelizmente, pelo o que escuto, estamos sujeitos a sair sem direito a nada. Queria continuar na terra, plantando e colhendo. Não tenho medo de trabalho. Tenho meu sítio com tudo em dia, com as fruteiras e tudo. Tudo o que consegui saiu dali de dentro. Cheguei ali sem nada.

A reportagem não encontrou um único agricultor favorável à construção da barragem.

Mais desesperançado ainda está o olhar de Manuel Vanderlei, 44 anos de idade e 37 de agricultura em Ilha Vechi. Após voluntariamente oferecer carona ao repórter a pé na estrada de terra, demonstrou pavor com a possibilidade de ter que viver na cidade grande:

-É como uma bomba que vão jogar aqui! As pessoas vão tudo sair correndo, sem tipo de valor nenhum, sem saber o que fazer. Vai virar bandido? Virar bandido não pode! Tem que lutar, mas vai lutar onde?, sem opção do governo, sem opção de ninguém?

Governo defende saída "calma", mas publica decretos.

Antônio da Hora, subsecretário de Projetos e Intervenções Especiais.
reprodução: youtube

A expectativa do Governo do Estado é que a obra, uma vez começada, demore 24 meses para ficar pronta. O lago pode se formar antes disso, 18 meses a partir do início dos trabalhos. Com esse argumento, o subsecretário de Projetos e Intervenções Especiais, Antônio da Hora, em vídeo postado no youtube em novembro de 2013, usa um tom gentil para informar que ninguém será removido de suas terras imediatamente.

- Tem que ser feito com muita calma e num prazo adequado, para que ninguém saia afobado das suas plantações. Que (o produtor) faça sua colheita e vá se transferindo, pode ser aos poucos, para a outra área quando (essa) estiver pronta e preparada de forma adequada.

As áreas a serem ocupadas já foram determinadas, segundo o decreto de setembro de 2013, que apontou de interesse social uma propriedade de 247 hectares em Urindy, também em Cachoeiras de Macacu, para o reassentamento de famílias a serem removidas em razão da barragem do Guapiaçu. O documento também expropria mais três pequenas áreas próximas, num total pouco inferior a 400 hectares. Veremos adiante que é terra bem menor do que a que hoje abriga as cerca de três mil pessoas que, diretamente, devem ser atingidas pela barragem.

O prazo de saída da terra, que parece bem longo para Da Hora, não agrada nenhum agricultor local. Segundo eles, já hoje em dia, é muito raro ver alguém investindo em melhorias para sua casa ou terra, uma vez que embaixo d’àgua não servirão para nada.

Com medo de sair, agricultores evitam investir em melhorias para suas propriedades.

-Já tem duas empresas aqui fazendo um trabalho “social” (faz um sinal de aspas com as mãos). Eu não digo que é um trabalho social, eu digo que é um trabalho de “lavagem cerebral”.

As palavras são de Geildo Moura, 39 anos, uma das lideranças da comissão criada para mobilizar a comunidade contra o projeto que pretende represar o segundo maior rio da cidade.
foto:Caetano Manenti

Empresas já operam na região

A Cohidro é uma companhia de consultoria, estudos e projetos. Foi contratada pelo Governo do Estado do Rio para fazer um levantamento profundo sobre a maior parte da zona rural de Cachoeiras de Macacu, aquela que está largamente espalhada entre a imponente Serra dos Órgãos e a margem esquerda da RJ 122, a Rio-Friburgo, para quem se dirige justamente nesta direção. É a região que deve ser alagada pela barragem ou, pelo menos, ficar ilhada por ela. De propriedade em propriedade, os agentes da Cohidro questionaram o tamanho de cada área privada, de cada família, quais as culturas cultivadas, a renda mensal, as benfeitorias já construídas sobre aquela terra. A frente de um documento elaborado pelo governo estadual, quase todos agricultores forneceram os dados, mesmo que alguns não tenham assinado ao final. Uma parte dos agentes foi recrutada pela Cohidro na própria localidade, motivo de sobra para uma imensa polêmica na cidade. Em uma discussão pacífica que a reportagem pôde ver, enquanto uns consideravam traição alguém dali colaborar para um projeto de retirada das famílias, aquela que aceitou o serviço justificava-se sob alegação que o salário era bom demais: "R$4 mil reais". Para alguns líderes do movimento de resistência, a predileção da Cohidro justamente pelos habitantes locais para fazer esse delicado serviço de recenseamento trata-se de uma tática do Governo para germinar discórdia entre a população local.

A Viva Rio é uma empresa bem mais conhecida. Fundada no começo da década de 90, descreve, em seu site, sua atuação principal: “formular políticas públicas com o objetivo de promover a cultura de paz e inclusão social”. Sobre o trabalho em Cachoeiras, lança outro texto no mesmo site: “Em meio a boatarias e falta de informações concretas, o Viva Rio Socioambiental começou a trabalhar em outubro (2013) na região, para fazer uma mediação entre a comunidade, o poder público e a empresa envolvida na obra, a Cohidro. Foi montada uma sede no local e um posto de ouvidoria itinerante, onde atuam assistentes sociais e socioambientais para ouvir as demandas da população. Logo se diagnosticou a carência de computadores com internet, que começaram a ser oferecidos gratuitamente aos moradores a partir de dezembro de 2013, (além de) cursos de aceleração escolar”.

Os cursos de aceleração escolar (supletivos expressos), que são lecionados numa pequena escola a 20 minutos de moto desde a rodovia, foram classificados como “apenas mel para adoçar nossa boca” por um dos muitos produtores rurais que querem a imediata saída da empresa de lá. Para outros agricultores, ao ajudar mesmo que modestamente na educação local, o Governo quer criar um álibi para depois justificar que aquele povo está preparado para enfrentar a cidade grande, se assim precisar. A Viva Rio também posta vídeos na internet com declarações elogiosas das autoridades estaduais em apoio ao projeto.

A desamada atuação das duas empresas embaça uma presença ainda mais amedrontadora para os produtores rurais. Ainda nem eram 8 horas da manhã do sábado, dia 3 de maio, quando dois jovens uniformizados deixaram, sobre uma moto vermelha, a esburacada estrada de terra da localidade de Quizanga. Vestiam laranja dos tornozelos à gola, um macacão completo com símbolo da Petrobras no peito.

Ao contrário da maioria dos motoqueiros daqueles caminhos, não acenaram para nenhuma das 13 pessoas que esperavam, já na estrada estadual, um ônibus em direção à cidade de Guapimirim. Provavelmente, não conheciam ninguém naquele ponto. Não eram dali. Segundo uma moradora, os funcionários da Petrobras são vistos com frequência coletando areia e água na região.

O envolvimento da maior empresa do Brasil nesta trama toda começa a dar a dimensão do imbróglio a ser explicado.

Destinos cruzados: quando o Comperj encontra o Guapiaçu

O projeto de barragem do rio Guapiaçu está estreitamente ligado ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj, que está sendo construído em Itaboraí, na região metropolitana do Rio. Uma das joias da coroa da primeira edição do Programa de Aceleração do Crescimento, o Complexo patina sobre problemas ambientais, trabalhistas, de definição de projeto e de obras atrasadas — o que até gerou uma intervenção do Tribunal de Contas da União em abril deste ano. Como de costume, houve também um vertiginoso aumento de custo na obra. Em 2006, calculava-se que o total gasto seria de U$8 bilhões de dólares. Em junho de 2013, a presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, admitiu que a conta já ultrapassou os U$12,9 bilhões de dólares, o que, atualmente, corresponde a pouco mais de R$30 bilhões de reais, valor similar ao gasto na Copa do Mundo até aqui. A previsão é de que o Complexo comece a funcionar em 2016, na hipótese otimista.

Colossal complexo petroquímico aumentará demanda de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

(foto: divulgação Petrobras)

Mas, afinal, o que a barragem tem a ver com isso? A resposta a essa pergunta expõe o (como fica claro) pernicioso fatiamento das licenças ambientais para os grandes projetos do país. A Petrobras, mesmo depois de muita disputa, detém a licença para realizar as principais obras do Complexo, embora ainda não possua a licença para a sua operação por completo. Assim, para consegui-la, a estatal corre atrás das condicionantes, inclusive a de número 19, que diz: “considerar para o licenciamento do abastecimento de água todas as alternativas possíveis que garantam não só o abastecimento do Complexo, mas também representem reforço hídrico para os municípios da região, mesmo que mais alternativas de abastecimento venham a ser adotadas”. Entre todas as nove alternativas apresentadas, o represamento do rio Guapiaçu foi o escolhido pela Secretaria Estadual do Ambiente. O subsecretário Antônio da Hora garante que, desde 1985, o Estado tinha o projeto da barragem em Cachoeiras engavetado.

Secretaria Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro desengavetou projeto de quase 30 anos sem dialogar com a comunidade.

Em março de 2013, o deputado estadual Carlos Minc (PT), então secretário estadual do Ambiente, ressaltou ao jornal O Globo que a barragem se destinaria exclusivamente ao uso doméstico de água, já que o Comperj usará água de reuso. Na mesma oportunidade, Minc classificou a alternativa do Guapiaçu como a “de menor impacto”.

Muitos órgãos importantes, inclusive a Prefeitura de Cachoeiras de Macacu, discordam do ex-ministro e provável candidato ao Senado em outubro. Roberto Oliveira Aguiar é engenheiro agrônomo, com especialização em meio ambiente, e secretário de Agricultura local.

— O governo (municipal) está apoiando a construção de pequenas barragens. Eu, como técnico, defendo isso. O prefeito também já manifestou isso no nosso Conselho de Agricultura. Além de três pequenas barragens, a gente vai estar procurando reflorestar as áreas degradadas, porque assim a gente vai ter mais água para distribuir.

O secretário-executivo do Comitê de Bacia da Baía de Guanabara, Alexandre Praga, também não dá como definida a opção pela barragem no Guapiaçu. Para ele, ainda é importante debater todas as alternativas para vencer um sério problema de abastecimento em toda a região:

- Vivemos numa região de intenso estresse hídrico!

(Alexandre Praga, Comitê de Bacia da Baía de Guanabara)

O déficit hídrico da região metropolitana do Rio de Janeiro, especialmente a sua porção leste (que reúne os municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Magé, Rio Bonito, Tanguá, Guapimirim e Cachoeiras do Macacu) é, possivelmente, o único ponto pacífico entre Governo, técnicos e a população. Trata-se do sistema Imunana-Laranjal, operado pela CEDAE. A situação tende a piorar com o incremento demográfico inflado pelo Comperj. Para 2030, por exemplo, a Fundação COPPETEC espera que toda a Região Hidrográfica da Baía de Guanabara, incluindo aí também a cidade do Rio, demandará 7,3% a mais de água do que em 2010. O mesmo instituto prevê um acréscimo de 2,5 milhões de habitantes na região nos próximos 16 anos.

Em um ano especialmente seco nos reservatórios das regiões sudeste e centro-oeste do Brasil, a promessa de água na próxima campanha eleitoral pode ser uma pressão a mais a favor da construção da barragem em Cachoeiras de Macacu. Por outro lado, o grupo de resistência à barragem tem a seu favor o contexto de intensa pressão sobre os negócios da Petrobras, tema de CPI do Congresso. A obra da barragem não custará menos de R$250 milhões de reais para a estatal do petróleo. Esse é o valor já fixado em decreto pelo governo do Estado. Não é uma refinaria de Pasadena, mas é hora de atenção total sobre as contas da empresa.

Passado, futuro e a mesma sina: a disputa pela terra

A área onde hoje está delimitado o município de Cachoeiras de Macacu registra uma história inquieta. Nos primórdios anos do Brasil colônia, parte dessas terras foram de Miguel de Moura, escrivão da fazenda real. Em 1571, passaram às mãos jesuítas da Companhia de Jesus, que só conseguiu se instalar na região após embates contra índios Coroados e Puris. Séculos de crescente desenvolvimento foram interrompidos em 1831 quando uma febre endêmica, que ficou conhecida como Febre Macacu, matou agricultores e provocou intenso êxodo rural. Entreposto importante entre a então capital brasileira e a Serra Fluminense durante o período imperial e o início da República, Cachoeiras de Macacu batizou-se com esse nome em 1929, em homenagem às mais de 80 cachoeiras da área e ainda à árvore macacu, uma espécie de palmeira.

Cachoeiras de Macacu já foi terra de índios e jesuítas; agora são os colonos da reforma agrária que admiram o lugar.

Foi a partir dos anos 1940 que a zona rural de Cachoeiras de Macacu começou a se tornar um caso de sucesso da reforma agrária brasileira. Antes mesmo do INCRA existir, já havia terra sendo distribuída na região. Produtores de frutas cítricas na Baixada Fluminense instalaram-se por ali, como também alguns japoneses, que se acomodaram às margens dos dois grandes rios da cidade. O Guapiaçu, possível fonte da barragem, é o mais importante afluente do Macacu, principal rio que deságua na Baía de Guanabara.

Caso raro: região a ser alagada é exemplo de sucesso da reforma agrária.

O quilômetro 17 da RJ 122 fica logo na entrada do município (sentido Rio-Friburgo) e é especialmente isolado do mundo da tecnologia. Não por estar muito longe dos grandes centros. O próprio Rio de Janeiro está a pouquinho mais de 90 quilômetros de distância. O problema lá é o celular:

Na zona rural de Cachoeiras de Macacu é comum avistar pessoas caminhando com o celular apontado para o céu, na esperança que uma onda eletromagnética se perca em meio a tanto aipim. Não seria, no entanto, a conexão dos celulares a ausência mais sentida daquela tarde de segunda-feira, 28 de abril, dia para qual foi marcada, pelo deputado estadual Paulo Ramos (PSOL), a 1ª Audiência Pública da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social da Assembleia Legislativa do Rio para tratar do tema.

Após ser procurada por agricultores contrários à barragem, comissão da Alerj promoveu audiência pública em Cachoeiras de Macacu.

O dia de ser ouvido

Recém desembarcado de sua moto, com o capacete ainda no braço, um homem corpulento pedia a palavra no pequeno grupo de jornalistas que se preparava para a sessão.

-Qual o seu nome completo?, um deles perguntou.

- Geildo (Moura). Põe o (Moura) entre parênteses.

Logo saberemos que não é à toa que Moura fazia questão de ser chamado pelo sobrenome. Para ele, virou questão de honra evitar que uma área de 2,1 mil hectares se torne uma imensa barragem. Para comparação espacial, em vez de usarmos campos de futebol, usemos os bairros da capital do Rio de Janeiro: 2,1 mil hectares é área equivalente a Botafogo, Gávea, Jardim Botânico, Leblon, Ipanema, Copacabana e o Leme juntos.

Bem menos conhecidos, Moura sabe de cór o nome de todos os bairros de Cachoeiras de Macacu que, possivelmente, serão afetados pela barragem: Quizanga, Serra Queimada, Vechi, Ilha Vechi, Anil, Sebastiana, Areal, Boa Sorte, Matumbo e Guapiaçu.

Em vez de usar o uniforme padrão da resistência local, uma camiseta do Movimento dos Atingidos por Barragem, o MAB, Moura prefere vestir outra blusa branca. Nela, em troca do lema “Água e energia não são mercadorias”, a frase diz “Descanse em Paz”. Trata-se da saudade que Moura sente por sua mãe, dona Maria Moura, falecida em fevereiro de 2013. Foram 77 anos de vida, quase todos vividos sobre uma terra que agora pode virar água.

- Ela chegou em lombo de burro e criou os 12 filhos aqui.

Moura acredita profundamente que a ameaça da barragem prejudicou a saúde da sua mãe, que morreu de câncer. Órfão aos 39 anos, o agricultor já se considera, portanto, uma vítima do projeto. Têm sido dias frenéticos para ele. Sobre sua moto, divide-se entre a vida urbana no município vizinho de Guapimirim, a disputa política da barragem e os 21 hectares que possui na localidade do Vechi. “Alguns conheciam só como Maria Moura” , prefere lembrar, orgulhoso da fama da mãe, uma das precursoras da região.

- Hoje será a primeira vez que seremos ouvidos com respeito.

O grupo que briga contra a barragem já havia sido recebido uma vez no Instituto Estadual do Ambiente, órgão ligado à Secretaria Estadual do Ambiente. Os agricultores voltaram da capital do Rio de Janeiro furiosos com o tratamento dispensado.

-Pegaram um documento, com se fosse de presença da reunião e foram passando. Nesta lista de presença, quando já havia 25 assinaturas, vimos que não se tratava de uma reunião apenas, mas de uma audiência pública! Pegamos o documento para nós. Chamaram a segurança, a polícia… Temos esse documento guardado num cofre.

Antes da audiência, Moura acompanha Leonardo Bauer Maggi. Gaúcho litorâneo de Três Cachoeiras, Leonardo é um galego alto, que, junto ao seu chimarrão, roda parte do Brasil como um dos líderes do Movimento dos Atingidos por Barragem. Conhece bem um sem-número de processos judiciais, de guerras psicológicas, de projetos desrespeitosos. Quando pode, lembra o número total de atingidos por barragem no Brasil: “um milhão ao todo!” Ele repete que o plano em curso em Cachoeiras de Macacu é “totalmente ilegal, imoral e injusto”. A presença constante de Leonardo na área foi classificada como “bênção divina” por um dos agricultores locais. Mesmo preferindo um tom baixo e sereno, o gaúcho consegue misturar picardia e contundência para convencer o interlocutor.

Há erros formais graves: a barragem está em fase de Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental, mas já tem um decreto de desapropriação da área. Não tem consistência nenhuma isso aqui. A Petrobras já passou dinheiro para o governo do Estado. São quase R$14 milhões de reais para a elaboração cartográfica, levantamento cadastral, avaliações e as efetivas desapropriações.

(Leonardo Bauer Maggi, do Movimento dos Atingidos por Barragens)

Antes mesmo da audiência começar, sentado à mesa, Leonardo foi chamado de canto por um professor de geografia da cidade.

- Léo, Léo… Parabéns! Parabéns!

Leonardo era saudado pelo sucesso do evento. Contadas uma a uma pela reportagem, pelo menos, 380 pessoas estiveram no salão do clube Texas naquela tarde. Mostraram união contra barragem, concatenaram ideias ao microfone, verberaram contra o Governo e encheram Moura de orgulho. O filho de Maria Moura comemorava como uma pequena vitória — concordando e acenando com a cabeça — cada novo depoimento. Afinal, na mesa, não estava nenhum grande adversário. Governo Estadual, Secretaria do Ambiente e Petrobras foram convidados pela Comissão da Alerj, mas preferiam não enviar representantes — pelo menos, oficialmente.

Governo do Estado foi duramente criticado por se omitir de audiência pública.

Nem mesmo Cica Machado (PSC), prefeito de Cachoeiras de Macacu, apareceu, o que acentuou a sensação de omissão do chefe do Executivo local no caso, como relatado por alguns dos oradores da sessão. Pelo menos o secretariado cachoeirense esteve em peso. E foi por ocasião da fala do secretário do Meio Ambiente, Loir Gonçalves de Lima, que surgiu uma das poucas rixas do dia. No começo de sua fala, Loir lamentava a grande barragem:

— A vida do produtor já é bem sofrida. E como se não bastasse vem esse tormento, a questão da barragem.

Porém, na mensagem final, tocou na complexa questão fundiária da região, outra ramificação importante que floresce, e lembrou de quatro localidades que somadas reúnem 314 famílias, todas sem o documento de Registro Geral de Imóveis. Nas entrelinhas, considerando possível a barragem, perguntou:

— Quem será indenizado? E qual o valor que será indenizado? (..) O nosso governo tem essa preocupação.

Líder do debate e distribuidor do microfone, o deputado Paulo Ramos enxergou a oportunidade do confronto. E ganhou o público de vez.

Deputado Paulo Ramos ganhou o público quando recusou conversar sobre indenizações com secretário municipal: “Não estamos aqui para compor jogo de cena”.

— Nós não estamos aqui para compor um jogo de cena, de modo que amanhã a população seja golpeada, os produtores percam suas terras e aí a gente vai discutir desapropriação. Nós estamos aqui para dizer não para este projeto.

O veterano Nilson Reis falou em nome do INCRA, o instituto de reforma agrária do país. Com olhos emocionados, lembrou que dois terços da área sob risco de inundação — entre elas as terras de Lena e Moura — vieram de projetos de colonização.

— Deixo o recado: não vamos perder o que nós conquistamos.

A maioria dos trabalhadores rurais da região não tem documento de posse das terras. A localidade de Serra Queimada, por exemplo, foi fatiada em mais de 140 famílias no ano de 2002, depois que uma imensa fazenda com o mesmo nome foi vendida para o Banco da Terra. Hoje essas famílias estão divididas em 5 glebas e sofrem por terem parte de seus direitos analisados coletivamente, gleba por gleba.

Para Leonardo Maggi, do MAB, analisando o histórico das lutas contra as barragens do país, se a obra sair mesmo, apenas quem tem terras sob área de construção da barragem deverá ser indenizado rapidamente.

— Se tu não tem consistência em provar tua propriedade, a tua posse, a empresa (indenizatória) judicializa o teu processo. Fechou a torneirinha, a água enche. Eles vão tratar de resolver rápido a indenização daqueles proprietários (das terras) que eles precisam fazer a obra em cima: onde estarão as adutoras, barramentos, diques… isso eles fazem rapidinho. Pagam até a mais. O resto do povo? Judicializa.

(Leonardo Bauer Maggi, Movimento dos Atingidos por Barragens)

Contando com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens, do INCRA, da Associação dos Geógrafos Brasileiros, do Ministério Público Federal, do Sindicato dos Produtores Rurais de Cachoeiras de Macacu, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Comitê de Bacia da Baía de Guanabara, a sociedade civil mostrava força na audiência. O Legislativo local também apareceu. 11 dos 13 vereadores de Cachoeiras de Macacu atenderam ao evento, que também contou com três deputados estaduais e outro deputado federal. Foram mais de 4 horas de ataque ao Governo do Estado e à barragem do Rio Guapiaçu.

Audiência pública refutou opção por barragem em Cachoeiras de Macacu.

O engenheiro ambiental Eduardo Barcelos, da Associação dos Geógrafos Brasileiros era quem tinha os alfinetes mais pontudos.

— No licenciamento (para construção) do Comperj, o INEA declara, na condicionante 30.1 e 30.2, o vale do rio Guapiaçu como área prioritária para recuperação ambiental. Depois (no licenciamento para a operação do Comperj) o mesmo INEA diz que o vale é prioritário para a barragem! Usos completamente antagônicos e conflitantes. Não dá para o mesmo órgão ambiental dizer que um vale é prioritário para recuperação ambiental e, cinco anos depois, dizer que o vale é prioritário para a construção da barragem.

Uma outra questão em relação ao cenário de alternativas: pelo menos, 9 projetos já foram colocados. O Projeto Macacu, patrocinado pela Petrobras Ambiental, apresentou 5 alternativas. O Plano Estadual de Recursos Hídricos, que foi atualizado no ano passado, apresenta mais 4. Então dizer que é fato consumado (a construção da barragem) exclui e viola esses outros estudos, que foram feitos pela própria secretaria.

Dentro desses estudos, fica claro também que há divergência em relação ao volume da barragem. O Projeto Macacu fala em (vazão de) 4,65 metros cúbicos por segundo para 2020. O Relatório de Impacto Ambiental (da barragem) fala em 5 metros cúbicos por segundo para 2035. O tempo de saturação do sistema está invertido ou em contradição. O Plano Estadual de Recursos Hídricos fala de 6 metros cúbicos por segundo para 2030. O prazo de saturação varia para cada estudo e o volume também varia. Se você não tem tempo de saturação determinado, não tem como você discutir viabilidade desta barragem.

(Eduardo Barcelos, da Associação dos Geógrafos do Brasil)

A vazão do rio é um assunto que intriga especialmente nosso personagem, Geildo Moura. Sobre sua moto, ele aponta o dedo para um rio raso, da altura da canela. Mesmo sem ter conhecimento científico, demonstra certeza empírica de que aquele tanto de água não será capaz de alagar toda a região, que é plana e que, segundo ele e mais vizinhos, altamente permeável. É a opinião do engenheiro agrônomo Rolf Dieringer.

- Existem soluções mais simples para ofertar água de maior quantidade e também de melhor qualidade. O EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental + Relatório de Impacto Ambiental) apresenta erros gravíssimo sobre a quantidade de água. Eles levam em consideração a média (de vazão) de 60 anos. Sendo que de 1930 a 1958 a oferta de água era uma, (hoje é outra). O rio era cheio de meandros. Hoje ele é reto. Ele foi drenado e toda a área ao redor foi desmatada. Nos próprios autos do Projeto Guapiaçu, dizem que a vazão só representa um terço do que era há 30 anos. Para termos mais água, não é fazer represa, é recuperar a bacia hidrográfica, pelo menos para recuperar o que tínhamos.

Rolf ainda é produtor agrícola da região e dirigente do Sindicato de Produtores Rurais de Cachoeiras do Macacu. Também são dele as palavras mais assustadoras em relação ao impacto social e econômico da obra.

Engenheiro agrônomo, produtor rural e dirigente do sindicato local, Rolf Dieringer alerta para desemprego e desabastecimento.

- Serão 6 mil pessoas desempregadas no município. Três mil na área rural, três mil indiretos, num total de 12 mil no Estado, por causa das cadeias: cadeia do aipim, cadeia da goiaba, fato que sequer foi citado no Relatório de Impacto Ambiental (da barragem).

O que o Relatório citou foi o número de empregos temporários que a obra da barragem traria à região: 692. Apenas. Para dimensionar o problema de abastecimento alimentar que os técnicos asseguram que a intervenção também acarretará, recorremos novamente ao estudo da Associação dos Geógrafos Brasileiros.

Localizados numa área de terra fecunda e com uma proximidade considerável dos centros consumidores de alimentos, os agricultores da região produzem grande quantidade de alimentos, com destaque para a produção de aipim, milho verde, quiabo, jiló, berinjela, olerícolas, feijão mauá, batata doce, inhame, goiaba e maracujá. Além da criação de gado de corte, ranicultura, piscicultura de corte e ornamental, dentre outras. O valor estimado da produção, segundo a EMATER-RIO, é de cerca de R$: 21.679.700,00 ao ano.

(Relatório da Associação dos Geógrafos Brasileiros sobre a proposta de construção da Barragem no Rio Guapiaçu )

O CEASA do Irajá, na zona norte do Rio, é o principal destino de tanta comida. Segundo a EMATER, apenas de produtos agrícolas, saem 20 mil toneladas de Cachoeira de Macacu por ano. 10 mil só de aipim.

Outra vez as cifras especializadas encontram a vida real nos depoimentos emocionados da agricultora Lena. Numa mistura de grito e choro contidos, ela implora para permanecer na terra onde nasceu.

- As pessoas têm que ter mais respeito com o produtor rural, porque somos nós que levamos o alimento para a boca das pessoas. Muitas vezes não temos estudo, falamos humilde, mas somos nós que levamos o alimento para a boca das pessoas. Na hora que faltar comida, a pessoa pode ter estudo, pode ser doutor, mas eu acho que o principal será o alimento na vida do ser humano.

Em vez de prever desabastecimento alimentar, diminuição da arrecadação de impostos para o município e o mesmo o desemprego, o subsecretário Antônio da Hora prefere, outra vez, escolher as lentes otimistas.

- Os locais mais valorizados são aquelas propriedades e casas que ficam em torno da barragem. (A barragem) valoriza as terras deste local. Valoriza por quê? Por que você pode ter a sua casa, a sua propriedade, a sua fazenda de frente para a água. Pode usar o lago para esportes náuticos, para a pesca, para a produção de peixes, por que não? Você pode ter praias artificiais. Olhando agora o lado da Prefeitura, ela pode induzir ali uma área de lazer com quiosques, olha que maravilha!

Antônio da Hora não goza de prestígio em Cachoeiras do Macacu. Talvez seja por declarações como a seguir, uma opinião bem particular sobre o caso.

-É um projeto para abastecimento da água que está tratando da área social como nenhum outro, pelo menos que temos notícia, para a população afetada.

Carlos Minc defende o projeto da barragem em vídeo na internet.

Também em um vídeo postado na internet, o ex-secretário estadual de Ambiente Carlos Minc listou diversas compensações que o município terá com a barragem.

-Pusemos recursos do Fecam (Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano) para o saneamento, que era uma demanda antiga de Cachoeiras de Macacu, que tem zero de saneamento, águas completamente poluídas. Já na atual gestão do prefeito Cica, acrescentamos mais R$12 milhões de reais para ampliar o saneamento e garantimos também recursos para a (distribuição de) água. Não tem sentido Cachoeiras de Macacu ajudar a levar a água para 2 milhões de pessoas e, no próprio município, faltar água, como se sabe.

Quem vive ou trabalha abaixo do ponto da barragem futura de Guapiaçu terá a vida melhorada. Hoje, quando chove muito, essas áreas inundam. E na estiagem falta água. Com a regularização da vazão (pela barragem), não vai mais ter inundação, nem estiagem.

Outra promessa celebrada por Minc é que o trabalhador hoje sem posse de terra vai recebê-la no novo reassentamento. Com a barragem, segundo ele, Cachoeiras de Macacu vai se tornar a número 1 do ranking do ICMS Verde no Estado. Aproveitando para opinar sobre a administração da Prefeitura, completa:

— Esse recurso vai servir para pagar melhor médicos, professores e guardas municipais.

Brasileiro que é, escaldado com promessas de políticos, o povo de Cachoeiras de Macacu não se convence. A falta de diálogo franco com o Governo voltou a ficar claro dia 9 de abril, com mais um decreto. Sob o número 44.723, agora assinado por Luis Fernando de Souza, o governador Pezão, o documento corrige o texto do decreto de novembro acerca do valor das indenizações a serem pagas aos atingidos. Em vez dos R$5 mil reais por hectare, agora vale “as indenizações devidas serão apuradas em cada caso de forma especial, garantindo-se a justa e devida indenização”.

Um dia depois da audiência do dia 28, onze integrantes da comissão de resistência foram recebidos no INEA pelo subsecretário Antônio da Hora. O clima da reunião foi tenso outra vez e houve até ameaça de expulsão de sala de um mobilizado. Já ficou claro que a queda de braço com a Secretaria, agora administrada por Carlos Portinho(PSD), persiste. Aliás, a recente sucessão da caneta mais importante da SEA-RJ é algo que vale um destaque.

Carlos Minc deixou a pasta no começo de fevereiro, quando o PT fluminense desembarcou numa levada só do governo Sérgio Cabral. De fevereiro a abril, a Secretaria foi chefiada por Índio da Costa, ex-candidato à vice-presidência da República em 2010, na chapa de José Serra. Pois bem, em nova troca nada alardeada pela Secretaria — não há nem uma nota sobre isso no site do órgão-, o meio ambiente estadual passou para o comando de Portinho, braço direito e ex-assessor parlamentar de Índio. Portinho, segundo perfil no site da SEA, é advogado com experiência nas áreas do Direito ambiental, administrativo e civil. Na imprensa carioca, é mais conhecido por sua atuação no futebol. Já foi vice-presidente jurídico do Flamengo e trabalhou na defesa dos atacantes Dodô e Jóbson em casos de doping. Seja como for, como já vimos, nem Portinho, nem Índio, nem Minc apareceram para dar explicações presenciais à comunidade de Cachoeiras de Macacu.

Esperança?

O trabalho do Ministério Púbico é visto com ressalva pelos mobilizados contra as barragens do país. No entanto, em um ambiente onde o Governo foge do debate — afinal, não apareceu na audiência da Alerj –, talvez tenha que vir do Judiciário a primeira boa notícia para os agricultores de Cachoeiras. Na audiência do dia 28 de abril, a procuradora Gabriela Figueiredo revelou que o Ministério Público Federal do Rio já está investigando o processo de licenciamento da barragem:

- No MPF de São Gonçalo, foi instaurado um inquérito civil público que tem como objeto avaliar a viabilidade socioambiental da barragem. O processo de licenciamento de uma obra como essa não é um procedimento administrativo entre o empreendedor da obra e o poder publico. É um procedimento em que várias questões devem ser analisadas: questões ambientais, sociais, econômicas e que deve existir a participação da sociedade. Hoje o estudo de impacto ambiental já foi encaminhado para a perícia do MP, onde será feito uma análise técnica. Como encaminhamento, eu solicito que seja encaminhado ao MP o registro dessa audiência pública. Depois de todos esses elementos, o MP poderá tomar um posicionamento e, caso seja realmente constatada a irregularidade do processo, a lei prevê varias medidas para que sejam corrigidas essas irregularidades, como o ajuizamento de uma ação civil pública.

Audiência pública mostrou união do povo de Cachoeiras de Macacu e terminou em celebração de agricultores.

Uma ação civil pública pode ser a espinha na garganta de um projeto que o Governo tenta impor goela abaixo. Para Lena, Moura, Manuel, Laerte e tantas outras famílias que vivem e trabalham na região, precisará que o Governo regurgite decretos para que Cachoeiras de Macacu possa ter um futuro mais saudável. Com a palavra, Lena outra vez:

foto: Caetano Manenti

-Nasci e fui criada na roça, quase morri de insolação ao 3 anos de idade, mas sobrevivi. O povo da roça é um povo forte, é um povo que consegue as coisas lutando, que não deixa seus sonhos por qualquer coisa. É um povo que aguenta sol, que aguenta peso, que faz a diferença no Estado e em qualquer lugar do mundo. Nós sabemos cuidar da lavoura, mas também sabemos cuidar da terra, para que não falte comida no Rio de Janeiro. Ainda nos falta muito coisa aqui: caminhos, telefone… Mas somos um povo feliz, porque vivemos com dignidade, vivemos com o suor do nosso rosto, vivemos daquilo que plantamos. Querem nos arrancar do nosso lugar, com raiz e com tudo! O que vai acontecer? Nós vamos morrer, como as árvores que se arrancam e não têm como serem plantada em outro lugar. Sem a terra, o que eu vou fazer? Eu falo por todos da comunidade: sem a nossa terra, o que vamos fazer?

É com essa e outras perguntas que gostaríamos de nos dirigir à Secretaria do Ambiente do Rio de Janeiro. Não a procuramos antes de escrever esta reportagem (como certamente mandariam muitos dos professores de jornalismo) por entender que o órgão fez a opção de se licenciar sobre o caso neste momento, uma vez que não compareceu ao fórum democrático adequado para debater com a sociedade o assunto tão delicado. Então, aqui no final desta reportagem, escrevemos uma espécie de email aberto à secretaria. Gostaríamos que o órgão nos esclarecesse:

1) Por que o decreto de desapropriação de terra foi publicado, em setembro de 2013, antes da emissão da Licença Ambiental da barragem?

2) Por que o valor de R$5 mil reais por hectare de indenização foi fixado, em novembro de 2013, antes da emissão da Licença Ambiental da barragem?

3) Por que esse valor foi retirado do decreto de abril de 2014?

4) Por que a licitação de construção do Comperj indica a bacia do Macacu como prioritária para recuperação ambiental e a licitação de operação do Complexo indica a mesma região como prioritária para a barragem?

5) A população local afirma que não recebe comunicação formal do Governo do Estado em relação aos trâmites do processo. A secretaria confirma isso? Se não, como ocorrem esses informes? Se sim, por que evita se comunicar com a população?

6) Por falar em comunicação, por que nenhum representante do Governo compareceu a audiência pública convocada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em Cachoeiras de Macacu, dia 28 de abril?

7) Moradores querem saber se o trabalho de recenseamento da Cohidro na região é legal e respaldado pela lei. Sabem informar?

8) Pesquisadores da Associação de Geógrafos Brasileiros criticam que o EIA/RIMA da barragem não cita alternativas para o acréscimo na captação de água que não seja a barragem do Guapiaçu. Qual a posição da secretaria sobre essa crítica?

9) A secretaria confirma, conforme aponta o decreto 44.403 de setembro de 2013, que o valor da obra é de R$250 milhões de reais? Ou existem outros gastos não especificados ali? Quanto eles vão custar ao todo?

10) Todo o dinheiro da obra será da própria Petrobras?

11) A secretaria, como proponente da obra a ser realizada pela Petrobras, saberia precisar o que fazem, neste momento, os funcionários da estatal que estão trabalhando na região?

12) A secretaria mantém a posição do subsecretário Antônio da Hora que disse que este projeto está “tratando da área social como nenhum outro”?

13) A secretaria gostaria de rebater mais algum ponto da reportagem?

Desde já, aguardamos o retorno.

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