Povo sem casa, casa sem povo: uma história desgraçada no Flamengo.

Descaso de Executivo e Legislativo e rigidez de Judiciário e PM condenam à vida infernal famílias pobres que não conseguem mais pagar o aluguel das violentas favelas do Rio de Janeiro.

Jornalismo em Pé
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Na noite da véspera da desocupação, mulher deu à luz ao mais novo sem-teto do Brasil, seu sétimo filho, dentro de uma privada, no banheiro da ocupação.

por Caetano Manenti
colaboração fotográfica Ana Rovati

É difícil escolher por onde começar o relato desta desgraça, que é o desenrolar de outras várias desgraças. Pior ainda será decidir o fim do relato desta desgraça, já que (infelizmente) ela deverá ser também ponto de partida para outras desgraças.

Manhã de 10 de abril de 2015, sexta-feira, quarto dia da ocupação.

Quem passava a pé em frente ao número 170 da prestigiada avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo, era abordado pelos gritos de acuda de cinco jovens mulheres, que pediam água e comida. Elas, detrás das grades do edifício Hilton Santos, haviam sofrido em mais uma noite de temor, com pouco para matar a sede, a fome, as angústias próprias e, certamente pior, os problemas de seus filhos.

Não dá para tomar a água que sai da torneira. Tá podre, com cocô de pomba.

Na pressa, um funcionário da Farmácia Norte e Sul passou de bicicleta; foi parado por quem, do lado de fora do prédio, tentava ajudar. Perguntado sobre entrega de água, disse que era preciso telefonar para a loja e fazer o pedido. Deu ao grupo um ímã de geladeira com o número, mesmo que não houvesse geladeira alguma em funcionamento naquele gigantesco prédio de 24 andares.

No largo salão de entrada do imóvel que pertence ao Clube de Regatas do Flamengo, R$17 foram arrecadados para pedir um galão de 20 litros. Sem telefone fixo para informar e sem endereço que batesse com a listagem da farmácia que reúne todos moradores da região, o pedido foi negado pela loja. A frustração dos sedentos, que já era enorme, cresceu quando um homem de camisa de brim e uma mulher de vestido estampado surgiram no portão poucos segundos depois.

A dupla de oficiais de justiça chegou tensa. Ele ainda escondeu melhor nos primeiros segundos. Ela não conseguia. Transbordava um sorriso falso — falso de tão nervoso.

Foto de Caetano Manenti.

Ao subir os seis degraus que separam a calçada de pedras portuguesas ao prédio que é o palco desta história, os servidores do Estado do Rio de Janeiro encontraram as cinco moças.

Todas jovens, menos de 30 anos, ex-moradoras de favelas violentas da zona norte do Rio de Janeiro.

Todas ex-moradoras também de uma ocupação destruída, num prédio abandonado pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), no Centro da cidade. Todas tristes com a destruição de seus poucos pertences — como armários e tvs — justamente nesta ação da PM e da Guarda Municipal, no dia 26 de março.

Todas revoltadas por terem sido “tratadas com muita ignorância pela Prefeitura”, que as levou “para um abrigo sujo, cheio de ratos, baratas, craculentos, tuberculosos e doentes mentais”. Todas decepcionadas com a “Igreja, I-GRE-JA Universal”, que lhes negava acesso ao banheiro de seu “templo” da Cinelândia.

Todas constrangidas por terem vivido quase 10 dias ao relento nas ruas do Centro, debaixo das chuvas do fim do verão, esmolando comida e dormindo sob marquises. Todas corajosas por terem transformado a miséria de suas vidas em luta pelo direito digno à moradia digna, o que, no caso, significa proteger a família sob o teto dos dois primeiros andares do imóvel. Uma construção acostumada a abandonos, seja do Flamengo ao longo das décadas, seja do grupo de Eike Batista há três anos, quando a REX arrendou a propriedade para a construção de um hotel 4 estrelas, que sequer começou a ser reformado.

Todas as moças acordaram apreensivas sem nem conseguir dormir direito, pensando no que vai ser o dia de amanhã, se vão nos expulsar daqui”. Todas sentiam-se presas dentro do prédio cercado, já que os policiais estacionados do lado de fora ameaçavam não deixar mais ninguém entrar.

E o pior: todas dividiam histórias impressionantemente semelhantes a de outras 80 pessoas que encontrei ali.

Não posso garantir, mas é provável que os oficiais de justiça soubessem dos trechos mais fundamentais deste roteiro descrito, que reúne — basta contar — quatro “moradas” diferentes num período de apenas 11 dias. Se não sabiam, deveriam saber. Se sabiam, mostraram despreparo profissional para tratar com sentimentos tão frágeis. Expuseram aquela indiferença que tanto assusta os nossos dias. Reproduziram, como fiéis servidores de um Estado míope, o discurso de confronto, de briga, que se abriga nas frases de despejo, expedidas por decisões judiciais, assinadas por juízes que não se prestam nem mesmo a conhecer o rosto dessas pessoas.

— Bom dia, somos oficiais de justiça. Quantos pessoas estão aí? Queremos saber para montar todo o esquema de desocupação.

— Nós só vamos sair daqui dentro de um caixão! — de pronto, rebateu a mais enfurecida.

— Não vai ter jeito!

— Sabe por causa de quê, senhora? Entende um pouco…

— A gente entende… — disfarçou a oficial de justiça, inseparável de seu sorriso nervoso.

— A Prefeitura é mentirosa. Botaram todo mundo num abrigo SU-JO!

— Olha só, a gente não é da Prefeitura, não…. Não tem nada a ver…. — era o oficial de justiça tentando retomar a conversa para si.

— Eu sei, eu sei! Isso aqui é de homens riquíssimos e tá aí tudo podre, tudo sujo e podre aí.

— É… Tirar a gente vai tirar, não vai ter jeito!

— Com vocês, é assim né? Tudo na guerra…

— Vai ser tudo na guerra! Vai sair!

Foto de Caetano Manenti.

O povo do lado de dentro, já amontoado em muitos outros, permaneceu como o mais saudável da discussão, percebendo o óbvio: que a guerra, definitivamente, não é uma boa saída para aquelas pessoas.

— Viu? Viu? Gravou? — um deles olhava para mim — Ele tá falando que vai ser tudo na guerra…

A oficial de justiça, talvez por ser mãe, não sei, esboçou um recuo.

— Não vai ter guerra, não…

— Mas ele falou, você ouviu. Ele falou que vai ter guerra.

Outro jovem apareceu, cruzando os braços, desafiando a justiça.

— Vai matar todo mundo? Vai fazer uma chassassina? — questionou, misturando a palavra “chacina” à palavra “assassina”, num neologismo muito pertinente a sua realidade.

O oficial titubeou e ficou sem resposta; a enfurecida voltou à carga.

— Claro, não é o teu filho que tá aqui, não é o teu filho!

— Tu acha que você vai morar aqui? Tu acha isso?, cortou o oficial.

— Teu filho tá na escola, tá dormindo….

Nesse momento, uma única pequena liderança que parece haver no grupo ocupado, de nome Alexandre Silva, 37 anos, se apresentou. Ainda desinformado da declaração de guerra, perguntou aos mensageiros da lei.

— Vocês são aqui do bairro?

— Não! Nós vamos fazer a reintegração de posse! Queremos saber quantas pessoas têm aí …

— Até para poder ajudar vocês… completou a oficial — de novo, disfarçando.

A enfurecida não se acalmava.

— A vida muda, hein? Tudo muda um dia. Hoje não é o teu filho…

Tentando travar uma conversa mais prática, o oficial evitava a jovem e buscava, através de Alexandre, descobrir quantas pessoas havia no imóvel. Alexandre não aceitou a aproximação, pediu identificação. O oficial, então, tirou o crachá do bolso e mostrou. Alexandre não se satisfez. Com o dedo indicador direito sobre a palma da mão esquerda, indicou que queria algum papel com a ordem de reintegração escrita por extenso.

Não havia papel ali, embora já se soubesse que a juíza Martha Elizabeth Falcão Sobreira acolhera o pedido do C.R. do Flamengo pela desocupação do prédio. Ao deixar o local, nem o oficial, nem a oficial aceitaram se identificar para mim, mesmo apresentando-me como jornalista.

Reitero uma teoria que tenho: funcionário público que, em serviço, furta-se a dizer seu próprio nome não é ao público que está servindo.

O que já estava ruim, agora, havia piorado.

O prédio Hilton Santos é aquele que oprime seu observador. É grande e largo. Alto, pesado e abandonado. Foto de Caetano Manenti.
Salão de entrada do prédio é largo e fresco, local mais propício para os mais idosos se instalarem. Foto: Ana Rovati

Foi nesse clima pesado que recebi o convite para sentar ao lado de uma senhora, no colchão que fazia as vezes de casa, onde ela sofria há quatro dias, com dores na barriga.

Lúcia Serafim, 47 anos

— No dia que fomos expulsos lá da CEDAE, os policial foram lá e pediu que a gente se retirasse, porque eles iam fazer o cadastramento da gente, de todo mundo. E a gente acreditamos neles. Nos botaram num ônibus e nos levaram para um galpão lá. E a gente acreditou. Quando a gente entrou no galpão, eles fecharam um portão grandão. Deixou todo mundo lá. Como a gente tava cansado, cada um deitou num canto no chão. Eles levaram um lanchinho para enganar a gente. Depois de muuuuito tempo, botaram a gente para fazer o cadastramento. Quando a gente chegou lá, não era nada de cadastramento de casa, era o cadastramento do Bolsa Família. Isso foi feito por eles (Guarda Municipal) para ganhar tempo e para eles poderem quebrar tudo que a gente tinha no barraco lá na CEDAE.

— Como eram esses barracos que foram quebrados?

— Era de madeira. Mas era bonitinho! Era nosso! Aí, quando nós retornamos para lá para (o prédio da) CEDAE, os polícia e o Choque não deixou mais a gente entrar. E mesmo quem entrou disse que tava tudo quebrado, que não tinha mais nada para pegar.

— Da senhora, o que quebraram?

— Tudo! Minha televisãozinha que eu tinha. Era velha, mas era minha. Minha roupa, meu guarda-roupa. Levaram tudo! Quando eu voltei, já tavam colocando aqueles fios de grade, que nem presídio. E aí falou que ninguém podia entrar mais. Nem entrar, nem sair.

— Me conta, Dona Lúcia: por que a senhora decidiu ir lá para o prédio da CEDAE? Onde a senhora morava?

— Eu morava num barraquinho lá na B2 (Favela da Bandeira 2, em Del Castilho). Eu tava lá! Lá também! Foram lá, quebraram também. E também deram esse papelzinho (do Bolsa Família) para a gente. O mesmo papel!

— Nesse barraco, a senhora morava sozinha?

— Não. Morava eu, meus dois netos e meu filho. Foram todos comigo para a CEDAE. Agora meu filho foi trabalhar. Ele vende mate na praia. Eu fiquei com pena do neném e a vizinha ficou com o neném dele para mim. O meu outro neto está vindo para o prédio aqui. Já tô morrendo de saudade.

— Voltando para a história da CEDAE. De lá, vocês foram para um abrigo, onde não quiseram ficar, é isso?

— É claro que sim. Porque lá é muito ruim! Muito crackeiro, o que tu acha? Imagina misturar com gente com turberculose, com monte doença… Aí é para acabar com a gente.

— E aí? Para onde foram? Cinelândia?

— Fomos para a Cinelândia. Lá foi um lugar…. Meu Deus! Aqui, pelo menos, tem teto. Lá, não faltava comida, porque a gente pedia aos outros. Aqui, a gente tem teto, mas tá difícil de entrar comida. Aqui parece que eles querem fazer maldade com a gente: “Vamos fazer eles morrerem de fome, morrerem de sede que é isso aí!”. Eu desmaiei aqui outro dia.

— Como foi na Cinelândia?

— Não tem uma Igreja Universal lá? Pois então. Um pastor falou que não podia deixar a gente dormir lá dentro. Falou não sei o que lá, não sei o que lá. Então, a gente dormiu na porta da igreja. Enquanto a igreja tava fechada, a gente dormia ali (debaixo da marquise). Tinha hora para a gente deitar e para a gente acordar. A igreja abre às 7h da manhã. Depois, a gente ficava perambulando pela praça. Aí descansava um pouquinho… Uma vida horrível! Não gosto nem de falar! Triste. Muito ruim. Muito humilhante também…

Morrendo de insegurança, arrisquei mais uma pergunta. Decisão equivocada:

— O que mais a senhora sente?

Lúcia começou a chorar sobre seu olhar cansado. Com raiva, admitiu que pensava na morte.

— Eu pensei que queria que um carro me pegasse e me levasse logo… tô sofrendo muito… Assim, ninguém precisa cuidar mais de mim …

Agora com o seu interlocutor também chorando, Lúcia reagiu:

— Eu vou sair daqui e procurar um psicólogo. Tá mexendo demais com a minha cabeça. Eu não durmo. Só penso no dia de amanhã… Comida… Muito humilhante… Eu desmaiei aqui outro dia, porque fiquei muito tempo sem tomar o remédio da pressão, muito tempo sem tomar o remédio dos nervos…

— Por que não tomou os remédios?

— Porque não tinha água para a gente tomar o remédio. Outro dia, não tinha água aqui dentro e a polícia não deixava entrar. Aí não aguentei. Eu entrei aqui boa e tô saindo ruim.

— Como está sua saúde, você me disse que iria operar?

— Consegui uma cirurgia do períneo pelo governo, graças a Deus. Eu esperei 7 anos por essa operação. São 7 anos mesmo, não são 7 dias. Tá me dando muita crise. Toda vez eu desmaio. Já tô cansado dessa vida. Tem uma hora que eu vou ir e não vou voltar mais.

— Você tem alguma fé?

— Claro que tenho.

— Segura nela, então. Não fala isso!

— Eu trabalhava mais jovem com limpeza. Eu trabalhava numa firma. Eu adoro trabalhar, gosto muito. Eu que varri tudo isso aqui. Eu sei que isso aqui não é nosso. Mas o dono daqui, que perdoe a gente: ou a gente morre, ou a gente vem para cá. Caiu muita chuva lá no centro da cidade (quando estavam por lá)… Uma chuva danada. Ficamos toda molhada, zanzando, sem ter para onde ir. E viemos para cá. Aqui a gente ganhou umas roupas e sabonete. A gente não pode desistir, sabia? A gente tem que lutar.

— Exato! Deixa eu perguntar: a senhora recebe alguma ajuda do Governo Federal? Bolsa-Família?

— Graças a Deus, Nosso Senhor. Esse homem que inventou o Bolsa Família é nota 10. Não sei quem foi, mas eu dou nota 10. Ajuda muito! Eu agradeço muito a esse homem. Não é muito dinheiro, não é. Mas me ajuda muito. Se eu não tivesse o Bolsa Família, eu ia comer o quê?

— Posso perguntar quanto é seu Bolsa Família?

— R$155. Pouco com Deus é muito. Muito sem Deus não é nada.

— Mas não dá para pagar o aluguel…

— Se eu pagar o aluguel, eu fico assim sentada, esperando a morte chegar.

NEM TUDO É SECO
COM O POVO DA CEDAE

Ainda resta a firmeza no aperto de mão, o sorriso como boas-vindas e, especialmente, a pureza das crianças na ocupação. Famílias se reúnem em volta dos pequenos, cujos nomes são repetidos em voz alta a toda hora, por mães e pais preocupados.

No primeiro andar, bem perto da porta, ficaram as senhoras mais velhas, como Lúcia. Avançando pelo hall em direção às escadas, mesmo embaixo delas, e ainda nos largos corredores que deram um dia acesso aos elevadores, outras famílias se alojaram. Outras ainda preferiram salas do primeiro andar, nas quais, segundo uma moradora da região que conheci, antigamente, funcionava um espetacular café do clube.

O colchão ou mesmo tábuas forradas com papelão tornam-se o centro do “espaço” de cada um. Mesmo quando querem sentar, ficam por ali. Ao redor, bagunçam-se bolsas, sacos e alguns pequenos móveis improvisados.

No segundo andar, num imenso salão de festas que dava caminho à varanda de frente do prédio, ficaram os grupos mais jovens e agitados. Algumas famílias do segundo andar também se reservaram em salas “particulares”.

Alguns núcleos já se conhecem há muitos anos e deixaram suas favelas em busca de moradia num movimento conjunto. Conheci emigrantes de favelas como a Providência, Manguinhos, Mandela, Jacarézinho e ainda da Favela B2.

A aventura dividida dos últimos meses formou um sentimento de união naquelas pessoas, que aos poucos vão se identificando como “povo da CEDAE”.

Crianças jogam bola.

Encontram livros abandonados.

São os melhores para sorrir para câmera.

E já sabem protestar. Não apenas como papagaios de seus pais, mas também como cidadãos brasileiros plenos, com direito às largas garantias da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente. As vozes agudas da infância e aquela infantil falta de ritmo embrulharam o meu estômago, no momento em que gritos de luta foram cantados a plenos pulmõezinhos.

“Queremos moradia, saúde e educação!
Queremos moradia, saúde e educação!”

Crianças não apenas reproduziam seus pais. Reclamam do Governo porque, diretamente, sofrem pelo descaso. “Queremos moradia, saúde e educação!” Foto Ana Rovati.
Carlinhos, o mais novinho, a frente do grupo, parece ser o único a não entender perfeitamente o que se passa por ali. Foto de Caetano Manenti
Carlinhos, de menos de dois anos, era a estrelinha que mais brilhava. Até mesmo quando quis fazer cara feia para a imprensa que chegava. Foto de Ana Rovati.

HISTÓRIAS REPETIDAS

No segundo andar do prédio, sentado em dois colchões e em uma cadeira, ao lado do buraco de uma janela que já não têm mais vidro, encontrei um trio de amigos. Um deles pintava, com uma caneta bic azul, a parte traseira de um quadro. José Ricardo, de 31 anos, vestia uma camisa azul do Botafogo e desenhava um tabuleiro de dama para jogar com seus amigos. Queriam “passar o tempo”.

Filho de um pai com problemas de saúde, José Ricardo trabalha desde os 16 anos de idade. Quer uma vida mais confortável. Foto de Caetano Manenti

Por falar em passagem de tempo, foram as palavras de José Ricardo justamente sobre esse assunto as que mais me cortaram o coração.

— Eu tô nessa luta há muito tempo. Eu ocupei o prédio da Telerj, o prédio da CEDAE. Eu não aguento mais pagar aluguel. Eu nem vivo.

“Vivo só para pagar aluguel e comer, mesmo”.

A verdade é que eu vivo igual o porco. Tô trabalhando para comer e pagar o aluguel. Não dá para dar uma volta no shopping com os meus dois filhos, um de cinco anos e outro de três. Não dá para curtir. O dinheiro que era para eu me divertir vai para pagar o aluguel. Eu não tô conseguindo trabalhar agora porque estou lutando por um teto, por uma vida mais confortável. Eu tô agoniado, doido para trabalhar, mas também tô pensando em um teto. Senão, vou ficar a vida toda nisso aí. Não vou conseguir curtir a vida. Daqui a pouco, fico velho, acontece alguma coisa, eu morro, meus filhos ficam aí sem ter uma casa para eles morar. E eu sem curtir nada com eles também. Por isso, abandonei o trabalho, para tentar garantir esse teto. Se não conseguir, …. aí vou ver como é que fica.

Durante 20 minutos, José Eduardo conta a vida dura que teve. Nascido em Nova Iguaçu, na Baixada, chegou a Favela do Mandela, em Benfica, zona norte do Rio, aos 4 anos de idade. O pai tinha dificuldade de levantar dinheiro. Segundo José, ele sofria de epilepsia e nenhuma firma parava com ele. Morreu quando José tinha apenas 16 anos. Foi a deixa — possivelmente, obrigatória — para ele largar os estudos e ajudar a mãe em casa. Passou por aviários, por restaurantes da zona sul e, mais recentemente, pela Sociedade Hípica Brasileira. Em sua irônica realidade, era um dos responsáveis por montar a pista e os obstáculos sobre quais saltam cavalos caríssimos e cavaleiros e amazonas ainda mais ricos.

— Ganhava R$780 por mês e pagava R$400 de aluguel, ainda antes de ir para a CEDAE, de onde a gente foi tirado com muita ignorância, muito tiro de borracha. A gente perguntava as coisas para saber e eles respondiam “aguarda lá!!”. Já tava com tudo lá: armário sofá, cama. Alguns já tinham uns fogões pequenos. Só faltava puxar a luz. A Prefeitura tem que dar uma solução para nós. Parece que alguns se esquecem que a gente é ser humano.

As damas são um breve momento de descontração para José Ricardo. Tabuleiro foi pintado à mão e as pedras foram improvisadas com tampinhas de garrafa. Foto de Caetano Manenti.

A sexta-feira ia chegando ao fim bem melhor do que começou. Sem uma operação policial de remoção deflagrada, o entendimento era de que as famílias passariam o fim de semana ali.

Em vez da seca, agora um galão d’água de 20 litros, doado, nutria o ambiente hostil. foto de Caetano Manenti.

HISTÓRIA DE LUTO E DESCASO NO SEGUNDO ANDAR

Reservada em uma das salas do segundo andar, onde — a ver pelas portas de vidro — talvez já tenha funcionado a sala de troféus do clube, a família de Diego DG se instalou. Comerciantes experientes, vendedores ambulantes diuturnos em festas e eventos públicos — sobretudo, em jogos do Maracanã — a família logo abriu um barzinho, oferecendo misto quente a R$2.

Parede quebrada dá acesso ao bar e à casa improvisada da família do jovem Diego DG, vendedor ambulante desde que nasceu. Foto de Caetano Manenti.

Lá dentro, protegia-se a simpática família, cria do morro da Providência, na região central do Rio. Era a terceira ocupação realizada pelo grupo. Antes de se hospedar na sala abandonada, já haviam passado trabalho também numa ocupação chamada Bairro 13, na Francisco Bicalho, além da ocupação na CEDAE.

Diego DG de 21 anos é uma figura agradável, de boa conversa, que eu conheci no sábado (11) ao comprar cerveja durante uma festa na Praça da Bandeira, na Tijuca. Ele e sua fiel família haviam deixado o Maracanã havia pouco, onde o Fluminense vencera o Botafogo pelo Campeonato Carioca. Com a expertise de 21 anos de venda (isso mesmo, DG já da barriga da sua mãe via a família vender cerveja), disse que o resultado do campo era ruim para suas vendas.

Botafoguense só bebe quando ganha. Quando perde, sai puto. E a torcida do Fluminense só tem playboy, que não bebe latão de Antártica, nem de Brahma. É só Heineken. Boa é a torcida do Flamengo, que bebe quando perde, bebe quando ganha.

O clima na sala, embora acolhedor, era de luto. DG, que já perdeu seu pai e seu irmão assassinados em brigas, usava uma camisa em homenagem ao melhor amigo, morto há 6 meses. Ele era surdo-mudo e, mesmo assim, vendia cerveja como ambulante irregular nas ruas do Rio. Em 22 de outubro passado, dia de Flamengo e Internacional no Maracanã, Izaías teve de sair correndo da fiscalização, tomou uma paulada na nuca de um Guarda Municipal, perdeu o controle do corpo e acabou sendo atropelado na radial oeste.

Diego DG, 21 anos, lutador por moradia no Rio de Janeiro. Foto de Ana Rovati.

José Eduardo, tio de DG, também falava de Izaías com os olhos deprimidos.

Era um menino ótimo. Todo mundo conhecia ele na Providência. Tava só vendendo a cerveja dele para ter um dinheirinho para viver.

José Eduardo talvez seja um dos mais organizados ocupantes do Rio de Janeiro. Anda com uma pasta azul, onde coleciona documentos, que ele chama de dossiês. Faz questão de mostrar para mim e para a fotógrafa Ana Rovati um papel em especial, assinado em fevereiro de 2014. Em português claro, a Prefeitura do Rio de Janeiro, através da Secretaria de Habitação, se compromete a reassentar José Eduardo num empreendimento do Minha Casa, Minha Vida em Santa Cruz, zona oeste da cidade. Promessa vazia. Bom entendedor da política da cidade e do país, como muitos na ocupação do Flamengo, José Eduardo escrevia cartazes para expor sua indignação à imprensa.

“Queremos moradia. Sou eleitor” “Eu agora colhessiono dossiês” “Eduardo Paes, cadê meu apartamento? Sou eleitor”. Foto de Ana Rovati
“Prefeito, queremos nossos direitos” Foto de Caetano Manenti

24 andares prédio acima

A família de DG se encheu de orgulho para nos oferecer um Guaraná em copos de plástico, aceito de bom grado. Afinal, serviu como combustível para uma jornada maluca, uma trilha de escada e muito abandono 24 andares acima. Era necessário subir em cada piso para entender o que ainda há e o que já houve ali, num caminho repleto de suposições imobiliárias e reflexões filosóficas sobre a ocupação do tempo e do espaço nas grandes cidades.

3° terceiro andar,

o primeiro de tantos retratos do descaso do CR Flamengo. Documentos antigos do clube estavam amontoados numa pequena sala. Formavam uma espessa montanha de dois metros de altura, bagunçadas por notas de pagamento da década de 80, cópias de cheques recebidos, descrições de movimentações financeiras. Todas ainda com o símbolo do clube bem expostos para comprovar.

Foto de Caetano Manenti
Foto de Ana Rovati.
Foto de CAetano Manenti

4° andar

Em vez do Flamengo, a impressão era de que um furacão havia passado num escritório modesto, chacoalhando para o chão um bando de aparelhos eletrônicos.

Foto de Caetano Manenti

Do 5° andar em diante,

um novo mundo se abriu. Ao redor dos buracos vagos — e portanto, perigosos — dos elevadores, descansavam sem vida mais de 150 apartamentos residenciais, de amplas salas, apertados banheiros e muita história abandonada em frente a uma estupenda vista da Baía de Guanabara.

Talvez a mais famosa formação rochosa de todo o Brasil, o Pão de Açúcar, resplandece por entre as janelas do edifício Hilton Santos. Foto de Ana Rovati.
Buraco do elevador provoca vertigem e impede que crianças da ocupação brinquem subindo e descendo a escada. Pelo menos 4 elevadores funcionavam no imenso prédio. Foto de Ana Rovati.
Muitos quartos repletos de entulho revirado possuem uma vista altamente valorizada pelo o mercado imobiliário desta região do Flamengo. Foto de Ana Rovati.
De um lado, o Pão de Açúcar; do outro, a Baía de Guanabara e a cidade de Niterói. Foto de Caetano Manenti
Para os fundos do prédio, a vista muda outra vez: Em primeiro plano, o Morro da Viúva. No último, o Corcovado e o Cristo Redentor. Foto de Caetano Manenti
Foto de Caetano Manenti. Enquanto alguns moradores deixaram até mesmo festas inacabadas para trás…
… outros apartamentos estão completamente destruídos por marretas e descaso. Foto de Ana Rovati.
Memórias íntimas das famílias ainda podem ser encontradas. Há cartas, fotos, boletins de colégio, quartos e salas com vidas depositadas. Foto de Ana Rovati.
Na parede, o recado de Charlie Chaplin “A vida é muito para ser insignificante”, me lembrou o que disse José Ricardo, da Favela do Mandela. Foto de Caetano Manenti
Parece que esse rabisco na parede também conversa com o povo ocupado escadarias abaixo. Foto de Caetano Manenti.
Como a arte rupestre, os rabiscos nas paredes do edifício Hilton Santos deixaram para trás quem foram os moradores do prédio. Foto de Caetano Manenti.
Até mesmo uma quadra de basquete foi encontrada em um dos apartamentos. Foto de Caetano Manenti

O mosaico inconstante, que mistura destruição completa a um agonizante resquício de vida, produz uma imensa confusão na cabeça do andarilho inusitado. Quem eram seus moradores? Quando esse prédio teria sido desabitado? Era o Flamengo quem alugava o prédio? A resposta veio a partir do encontro de uma agradável sala, que trazia obras abandonadas do artista plástico Heleno Bernardi.

Heleno Bernardi deixou, propositadamente, algumas de suas obras no seu antigo apartamento para saber como seria sua degradação. Foto de Ana Rovati.

Encontrar Heleno foi o caminho para a solução de várias dúvidas. Trocamos dois emails.

Olá, Heleno. Obrigado pela atenção.
Queria saber como foi a desocupação quando vocês moravam lá? O Eike fechou o negócio e comprou os imóveis dos proprietários? Ou o Flamengo é quem alugava para vocês? Como estava o prédio em 2012? Havia muitos moradores ainda lá? O que se dizia à época?

Oi Caetano, a informação que tenho é que o prédio foi construído e inaugurado pelo Clube de Regatas do Flamengo em 1953 (se não me engano — há uma placa na portaria que informa isto) sobre um terreno cedido em comodato pelo Marinha. Ou seja, o edifício é propriedade do Flamengo, mas o terreno nunca foi do Flamengo.

Data de inauguração do edifício: 15/11/1953. Foto de Caetano Manenti.

À época da construção, o prédio tinha o mesmo padrão dos outros imóveis da Av. Rui Barbosa. Ali foi instalada a sede social do clube, sala de troféus etc.

Os apartamentos sempre foram alugados (e nunca vendidos) e serviam como fonte de renda para o clube.

Com o passar das décadas, o Flamengo não foi capaz de conduzir a gestão do condomínio de forma adequada e o prédio foi acumulando problemas administrativos (manutenção de elevadores, conservação das áreas comuns etc).

Portas estão jogadas até mesmo no vão do elevador. O CR Flamengo não conseguiu administrar o prédio adequadamente. Foto de Ana Rovati

Alguns apartamentos também foram utilizados para hospedar atletas vindos de outras cidades. Na década de 90, o enorme salão de festas abrigou eventos como uma série de Bailes de Charme.

Janelas do salão de festas da antiga sede do CR Flamengo. Foto de Ana Rovati.

Nos anos 2000, a conservação do edifício caiu visivelmente. Apartamentos que não estavam alugados foram se degradando por falta de manutenção. Os moradores mais antigos dizem que a própria administração sucateava estes apartamentos quando precisava de uma porta ou uma pia para outro apartamento alugado. Isso pode ser visto no enorme número de apartamentos que se encontram sem nenhuma estrutura (sem louças de banheiro, sem equipamentos de cozinha, com janelas e portas arrancadas).

Ovos! Ainda há de nascer outras vidas neste prédio. Foto de Ana Rovati.

Em algum momento dos anos 2000 foi aprovada uma lei (não sei se o termo jurídico para esta situação é correto) que permitiu que a região pudesse sediar hotéis. Até então isso não era permitido por se tratar de área residencial. Creio que isto foi uma iniciativa da câmera dos vereadores. Alguns anos depois, começaram a circular boatos de que o Edifício Hilton Santos se transformaria em um hotel.

Os inquilinos, entretanto, passaram meses sem nenhuma comunicação oficial do locador. Importante observar que assim como eu, os demais inquilinos tinham contrato de locação assinado com o clube, nos moldes da lei. E alguns poucos apartamentos ainda eram ocupados por atletas ou ex-atletas.

Atletas do remo, da natação e da ginástica artística, como Diego Hipóllito já moraram no prédio. Foto de Caetano Manenti.

Em 2011, dos cerca de 150 apartamentos do edifício, aproximadamente 50 estavam alugados. Os outros 100 estavam vazios e a grande maioria sem condições de ser habitado.

Pode-se afirmar, sem erro, que o prédio só se manteve de pé por conta dos inquilinos que alugavam, pagavam aluguel e taxa de administração e cuidavam de seus imóveis, pois os apartamentos desalugados foram se degradando sem nenhuma reação do clube. Se não fossem os inquilinos manterem suas residências, talvez todos os apartamentos estivessem inabitáveis.

Um belo dia, em 2011, os inquilinos receberam uma notificação solicitando a entrega dos imóveis. Até aí, tudo bem, pois a lei prevê que o proprietário pode requerer seu imóvel de volta. Entretanto, não foi levado em consideração que alguns inquilinos já habitavam o prédio há décadas. Uma das moradoras alugava seu apartamento desde 1953 e o prazo solicitado era extremamente curto.

Foi preciso que os moradores se reunissem e fundassem uma Associação de Moradores oficial para poder discutir juridicamente o caso com o clube. Isso levou cerca de um ano. Por fim, todos saíram.

Apartamento com banheira e vista para Baái de Guanabara. Foto de Ana Rovati.

Mas o que sempre nos pareceu incompreensível foi o descaso do clube ao longo de anos com seu próprio patrimônio. Se tivessem administrado o prédio de forma mais sensata, teriam certamente uma grande fonte de renda e não haveria necessidade de tentar soluções como o arrendamento para se transformar em hotel.

Sobre o negócio com a empresa EBX, não conheço detalhes para poder falar.

Att.

Que relato completo, Heleno. Obrigado.

Também me impressionou a possibilidade desperdiçada de altos rendimentos que o clube poderia ter neste prédio ao longo dos anos.

Ainda tenho algumas perguntas. Qual foi o período em que você ficou por lá? Nesse tempo, o clube tinha alguma atividade no prédio além de alugar apartamentos? Sabe algum atleta que morou no prédio? Gostaria de contar quanto pagava pelo aluguel de seu apartamento e quantos metros quadrados você utilizava?

Agradeço outra vez a sua atenção.

Olá, Caetano.
Eu estive no prédio entre 2008 e começo de 2013. Em 2008, o Diego Hipólito ainda morava lá. O clube não tinha outras atividades não. Apenas recebia alguns atletas de fora, de vez em quando. E, no primeiro andar funcionavam academias de karatê, hidroginástica e pilates. Mas eram particulares.

Os alugueis dos aptos giravam em torno de R$ 2.000 a 3.000 / mês. E os aptos têm entre 120 e 170 m2 aproximadamente.

Abs, Heleno

Enviei a Heleno a foto de seu quadro abandonado em sua sala abandonada. Ele a postou no Facebook, seguido de um desabafo que servirá como gancho perfeito para a nossa história.

(…)

Resolvi, numa lógica inversa, deixar alguns trabalhos meus no local, apostando que o hotel não vingaria.

Agora, recebi de um jornalista que esteve hoje no local, durante o processo de desocupação, uma foto com alguns dos meus hóspedes-fantasmas e vejo que estão bem vivos.

Penso que depois de tantos equívocos em torno do local, o melhor seria que a reintegração de posse (principalmente a reintegração do terreno e do Morro da Viúva — hoje esmagado por tantos outros prédios) fosse a favor dos ocupantes mais antigos da região, os índios. Ou à sua memória.

Os índios Tupinambás nem mesmo estão mais na região para reivindicar tal ousada proposta. Em substituição ao seu posto de oprimido, quem aparece é o povo da CEDAE.

Não ouvi de um único sem-teto a intenção real de permanecer naquele local. A ideia era a de fazer pressão mesmo. Sobretudo, sobre a Prefeitura, responsável por encaminhar os programas habitacionais para seus munícipes.

De qualquer forma, foram os advogados do CR Flamengo e do grupo de Eike Batista que ingressaram na justiça pedindo a reintegração, deferida na sexta-feira anterior.

À sociedade carioca, o clube divulgou uma nota onde registrou:

A diretoria do Flamengo entende que o déficit habitacional na cidade do Rio de Janeiro é um problema e se solidariza com aqueles que não possuem uma moradia fixa. Entretanto, entende também que é seu dever e compromisso com os associados do Clube proteger e resguardar o seu patrimônio em qualquer situação.

Tendo isto em vista e em virtude da ausência de atitude imediata — ao conhecimento do Flamengo — por parte da locatária, REX Hotel Ltda. (empresa do empresário Eike Batista), responsável única pela segurança e preservação do prédio, não restou ao Flamengo outra alternativa que não fosse ajuizar a ação de reintegração perante a 36a Vara Cível.

A REX Hotel Ltda., logo no primeiro dia de ocupação, disse que não se manifestaria sobre o caso, mas, segundo os ocupantes, enviou um representante ao prédio — segundo dizem, bastante educado — para conversar e consolar o povo.

14 HORAS DE PAVOR
(e contando)

Noite de 13 de abril de 2015, segunda-feira, sétimo dia da ocupação

A véspera da desocupação foi a mais tensa noite de toda a semana.

Fernanda Aldeir, de 35 anos, ex-moradora do Jacarezinho, veterana das ocupações da Telerj (2014) e da CEDAE (2015) deu à vida dura seu sétimo filho. Ele nasceu prematuro de seis meses, dentro de uma privada da ocupação. A mulher foi ao banheiro porque estava se sentindo mal. Segundo amigos, em razão da pressão que policiais militares faziam em volta do prédio, usando — ainda de acordo com os relatos— piadinhas e barulhos de arma de choque para assustar. Fernanda não sabia que estava em trabalho de parto.

Sua irmã Andréia foi quem acudiu a criança quando o bebê caiu, direto de cabeça, dentro da louça da privada onde Fernanda estava sentada. O menino nasceu duro na queda, sem chorar. Foi a própria Andréia quem bateu em suas costas para ele, enfim, abrir o berreiro. A criança foi limpa e a PM, chamada para levá-la a um hospital.

Embora estivessem a 300 metros de uma das melhores maternidades do Rio, no Instituto Fernandes Figueira, mãe e bebê foram levados pela PM para a UPA de Botafogo, que repassou a criança em estado grave ao Miguel Couto. A mãe virou a noite em saúde.

O pai, Carlos Alessandro, também de 35 anos, que deixou o Jacarezinho após o aumento do aluguel na região, consequência da instalação da UPP local, estava fazendo um bico de pedreiro fora da ocupação na hora do parto e ficou sabendo do ocorrido apenas na madrugada.

Manhã de 14 de abril de 2015, terça-feira, oitavo dia da ocupação

No começo da manhã da terça-feira, em vez de ir ao hospital, Carlos voltou ao prédio do Flamengo para proteger suas coisas antes da desocupação. Precisava ficar também com seu lindíssimo bebê, o carinhoso Carlinhos, de apenas 1 aninho. Carlos Alessandro recebeu apoio dos cerca de 80 companheiros de luta que amanheceram por ali, angustiados com o dia que raiava.

Família cresceu de maneira brutal dentro da ocupação. Foto de Caetano Manenti

Foi justamente neste momento, perto das 6h, que o cerco da polícia começou a se fechar ao redor do edifício, já com a avenida Rui Barbosa interditada. Com o batalhão de pelo menos 50 carros da PM e 150 agentes — como costumeiro é — veio também um outro batalhão de choque, a trupe da imprensa.

Havia mais agentes policiais do que cidadão ocupados dentro do prédio. Foto de Caetano Manenti
Parecem urubus? Imprensa se posiciona em passagem de nível do Aterro do Flamengo para não perder um frame sequer do (confronto da) desocupação. Poucos se aproximaram para entrevistar ocupantes. Foto de Caetano Manenti

A polícia assustava com suas sirenes, chegavam carros de bombeiro e ambulâncias. A imprensa irradiava toda sua distância do caso, do outro lado da rua, de onde fazia entradas ao vivo nos programas matinais. Os poucos aparelhos de tvs em funcionamento dentro da ocupação receberam a mensagem. E o povo não gostou. Segundo os gritos que podiam ser ouvidos lá de fora, uma repórter da Record havia reportado “vandalismo” ao ouvir janelas de vidro sendo quebradas dentro do prédio. O que, de fato, aconteceu.

Ei, imprensa, fala a verdade! Nós não somos bandidos! Nós não somos favelados qualquer. A gente só quer uma casa para morar!!

Depois de enfrentar os oficiais de justiça na sexta-feira, jovem confronta o noticiário cara a cara. Foto de Caetano Manenti

No terraço do salão de festas do segundo andar, formou-se, então, uma cena comovente. Entre rimas de luta e músicas de fé, a juventude da ocupação encontrou a oportunidade perfeita para se tornar visível e, enfim, dar o seu recado.

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. E poder me orgulhar e ter a consciência de que o pobre tem seu lugar”.

Foto de Caetano Manenti

Ao contrário da música, o povo ocupado não seria despejado para uma favela feliz; seria despejado ali na rua mesmo. Indiferente a isso, muitos vizinhos e colegas jornalistas mantinham um discurso de rancor e preconceito, baseado ou na desinformação, ou mesmo na burrice extrema, me desculpe. Anotei algumas frases absurdas que eu ouvi.

“Esse povo não quer trabalhar. Quer é fazer filho”.

“São tudo de partido político. Isso aí é partido político”.

“Não duvido que isso seja um esquema do próprio Eike”.

“Meu pai também nasceu na favela e não
é por isso que eu tô invadindo a propriedade dos outros”.

Ninguém ganhou dessa senhora, para quem não tive nem mesmo coragem de perguntar o nome. Quando ela passou gritando contra o grupo, um jovem e emergente repórter da GloboNews fez questão de se aproximar, erguendo o microfone. Ela vomitou em forma de palavras.

Foto de Caetano Manenti

— Eles têm é que trabalhar para conseguir algo e não botar filho no mundo e fazer invasão. Eu acho isso. A gente passa por aqui e ainda fica com medo deles.

Ela falou em botar filho no mundo e eu resolvi me meter.

— A senhora sabia que esta noite um bebê nasceu dentro de uma privada aí?

— Nada! É tudo forte e gordo! Eu vou é trabalhar….

A última esperança que restava aos ocupados era o pedido de ação cautelar protocolada pela Defensoria Pública na intenção de derrubar a liminar de reintegração já expedida. Entre 8h e 10h, a avenida Rui Barbosa foi tomada pela tensão. Advogados, oficiais de justiça, defensores públicos e ainda representantes do grupo ocupado se reuniam para evitar confronto e selar um acordo de saída voluntária. Nesse sentido, quase tudo deu certo.

Quando 60 agentes do Batalhão de Choque formaram filas bem em frente ao portão do edifício, os pobres sabiam que, MAIS UMA VEZ, havia chegado sua hora de ir para o olho (do cu!) da rua.

Tropa de Choque deu o recado: era hora de sair. Foto de Caetano Manenti

O grupo deixou o imóvel perto das 10h. Os primeiros saíram com relativa normalidade, entre o cordão de policiais. Depois, quando fogo começou a consumir colchões do segundo andar, os ânimos se exaltaram. Os bombeiros lançaram água. Houve correria. A criançada toda chorou. A polícia foi truculenta. Usou spray de pimenta, mesmo bem próximo a crianças. Pedras foram arremessadas contra a polícia e veículos de algumas emissoras de tv. Pelo menos três pessoas foram detidas. Ninguém se feriu com gravidade.

Bombeiros jogaram água para apagar o fogo do segundo andar. Batalhão de Choque da PM formava um confiuso corredor. Foto de Caetano Manenti.
Despejados reclamam de truculência da Polícia Militar. Foto de Caetano Manenti
Polícia estava com armas de choque durante a desocupação. Foto de Caetano Manenti

Carlos Alessandro, o pai da criança nascida na noite anterior, era um dos mais revoltados. Ele deixara o prédio com Carlinhos no colo e denunciou que os policiais usaram spray de pimenta próximo a seu filho. Antes de registrar boletim de ocorrência na delegacia de Botafogo, Carlos Alessandro desabou em choro.

Carlos Alessandro chora por um dia que nunca irá esquecer. Foto de Caetano Manenti.

A secretaria de Assistência Social e o Conselho Tutelar ofereceram transporte para quem quisesse ir para abrigos. Todos recusaram. Detestam esses abrigos ainda mais do que odeiam a rua.

80 pessoas despejadas ao relento, jogadas ao azar, abrigadas somente pela sombra das árvores de um canteiro do bairro do Flamengo. Esse foi o desfecho de mais um lamentável capítulo da luta por moradia na cidade do Rio de Janeiro.

No canteiro próximo ao edifício, famílias voltam a sua rotina de descaso e desilusão. Foto de Caetano Manenti

ATUALIZAÇÕES PERTINENTES (16/04/2015, 8h30)

  1. O bebê passa bem e vai sair dessa!!
  2. As famílias passaram as duas noite de abandono, novamente, nas ruas da Cinelândia, no centro do Rio.
  3. Se a Prefeitura não der uma solução para o grupo, eles seguem prometendo novas ocupações.

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