Prefeitura do Rio substitui garis em greve por pessoas sem treinamento nem segurança.

Jornalismo em Pé
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7 min readMar 17, 2015

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Menores de idade podem estar envolvidos.

A terça-feira amanheceu com ruas um pouco mais limpas no Rio de Janeiro, mesmo com a greve dos garis chegando ao seu quinto dia. Não foi a população da cidade que ajudou, evitando despejar lixo no chão ou entupir as lixeiras. A proeza se deu por conta do “plano de contingência” preparado pela Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro).

Em nota, a companhia municipal alonga-se para dizer que o plano “conta com o apoio de agentes da Guarda Municipal, Polícia Militar, Secretarias de Conservação, de Ordem Pública e de Obras, além de empresas terceirizadas, com prioridade para a coleta doméstica”. No entanto, pelo o que se descobre nas ruas, a Prefeitura omite a principal força de trabalho da companhia neste momento: cidadãos comuns, sem contrato com empresa alguma, arregimentados em comunidades pobres da capital e da Região Metropolitana, em troca de R$100 ou R$150 por dia de trabalho. O salário-base do gari da Comlurb é de R$1.100,00.

Nesta tarde de segunda-feira, cerca de 80 pessoas podiam ser vistas ao lado de quatro ônibus estacionados na rua República do Líbano, no centro da cidade.

Elas esperavam, dos funcionários da Comlurb, apenas uma orientação básica: onde varrer. Não havia treinamento, nem contrato, nem mesmo um uniforme que cumprisse as exigências dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) que os garis usam, como, por exemplo, uma grossa roupa que protege o trabalhador do contato com o lixo e da forte incidência solar da cidade do Rio de Janeiro. Uma mulher de aproximadamente 25 anos, que esperava as orientações na calçada, foi entrevistada.

— Pagam antes ou depois do serviço?
— Vamos ser pagos só no final
— Houve algum tipo de treinamento?
— Nada. Nem nada de comer…
— E em relação à segurança do trabalho?
— Nenhuma. Ele só disse para vir de calça e tênis. Até de chinelo pode trabalhar. E assim: tomar cuidado para não se cortar ou machucar.
— Vão trabalhar quantas horas?
— Oito. Tem de madrugada também. Tem gente que entra às sete da noite e sai às três da manhã.

Outra mulher, da cidade vizinha de Duque de Caxias, aguardava sentada.

- Receberam almoço?
- Não.
- Prometeram?
- Prometeram.
- Estão combinando só para hoje com vocês ou já estão falando de outros dias?
- Só para hoje.
- Vocês sabem quem vai pagar? A Comlurb?
- A Comlurb.

Um grupo de quase 10 mulheres, que veio do Méier, conversava já com as vassouras nas mãos.

- Eles deram algum tipo de segurança?
- Nada disso. Nenhum EPI.
- Falaram qual a metragem que será percorrida?
- Só falaram que era das 14h às 22h.

A reportagem também encontrou duas pessoas varrendo a rua dos Andradas, também no centro.

- Vocês são da Comlurb?
- Não. Estamos quebrando um galho.
- Vocês são funcionários de alguma empresa?
- Não.

A dupla estava com tiras reflexivas sobre o corpo, mas não usava nem mesmo luvas, o mais essencial item de segurança do trabalhador do lixo.

Não é a varredura da ruas o maior perigo para essas pessoas. Em cima dos caminhões de lixo, também sem treinamento, homens — alguns ainda com feições de meninos — estão se arriscando pelo dinheiro. São muitos os registros, que circulam nas redes sociais, de cidadãos não uniformizados, em cima dos caminhões da Comlurb.

No Tanque, na zona oeste, um caminhão de lixo com três homens dependurados foi interrompido por um grupo que lidera a greve. Bruno Rosa, um dos 10 garis que compõe a Comissão de Negociação, protestou contra o grupo.

— Vocês estão arriscando a saúde de vocês para nada. Cadê o papel que eles vão pagar vocês? Não podem companheiros sem nenhuma segurança trabalhar pelos garis. Se vocês pegam uma AIDS numa agulha, ninguém garante nada para vocês.

Era nítida a falta de destreza dos homens com o lixo e as lixeiras.

Há outras fotografias que indicam a presença de jovens, que aparentam serem menores de idade, também trabalhando no caminhão. As fotografias são feitas por garis em greve e enviadas para uma página no Facebook que reúne denúncias contra os procedimentos da Prefeitura durante a paralisação.

Na tarde desta segunda-feira, a Procuradora do Ministério Público do Trabalho, Deborah Felix, recebeu o grupo grevista para pressioná-lo a terminar a greve. Os garis, além de negarem a suspensão do movimento, aproveitaram a ocasião para fazer a denúncia sobre a “contratação” da contingência por parte da Comlurb. Felix revelou que está atenta à situação.

— A natureza desses trabalhadores, onde ela vai arregimentar esses trabalhadores… dependendo da forma que a Prefeitura estiver conduzindo isso, pode ser alvo, sim, do Ministério Público.

Nesta terça, a assessoria do Ministério Público do Trabalho confirmou que recebeu uma foto de denúncia de um jovem trabalhando, além de uma denúncia-anônima pelo site. Agora um procurador irá avaliar o material e decidir se abrirá investigação.

Quem também recebeu a denúncia foi a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Um dossiê, com fotos e vídeos, foi entregue por Babá (Psol), vereador do Rio.

— É como se você, em uma greve de médicos, colocasse pessoas que não conhecem o serviço. Gari é uma profissão dificílima. Para trabalhar nesta categoria, você tem que fazer uma série de exames, de acompanhamento. Tem que ter equipamento como bota, roupa específica para isso, porque, especialmente aqueles que trabalham nos caminhões, são submetidos ao contato de todo o tipo de germes e bactérias. É um risco muito grande colocar trabalhadores não capacitados e não equipados para fazer aquela tarefa. É o prefeito que está, de maneira irresponsável, tentando enfraquecer a greve. São contratações irregulares, gastando dinheiro público com isso.

A reportagem conversou por telefone com a assessoria de imprensa da Comlurb, que deu algumas explicações. Segundo a representante, essas pessoas realmente estão sem uniforme, mas que isso seria uma situação igual até mesmo à dos próprios garis que não aderiram à greve, que não estariam usando uniforme para poder driblar os grevistas. A assessoria confirmou que pessoas que não são ligadas a nenhuma empresa estão sendo contratadas para serviço temporário.

No Facebook, uma postagem oferece esse serviço temporário.

“Empresa seleciona um total de 400 ajudantes de caminhão para ajudar a limpar a cidade. Valor da diária: 100 reais”.

A reportagem ligou para o telefone que consta na postagem, sem se identificar. A pessoa que atendeu ao telefone trouxe mais detalhes.

— É para trabalhar prestando serviço para a Comlurb como coletor de lixo.
— Precisa entregar algum documento?
— É só trazer o RG. É como fosse freelancer. Pago na mão. Trabalhou, pago na mão.
— Em cima do caminhão?
— Isso mesmo.
— Precisa levar calça?
— Calça e camisa. Aqui a gente dá a bota e a luva.

Segundo os garis, o caso mais grave ocorreu no Méier, na zoa norte do Rio, na noite desta segunda-feira. Quando piqueteiros entraram na gerência, deparam-se com trabalhadores sem uniformes. Pelo menos três, segundo os garis, tinham feições de adolescentes. O Conselho Tutelar foi chamado.

O conselheiro que se identificou como Jaime Pereira Júnior, da 3ª Coordenadoria de Assistência Social, também do Méier, foi até o local, onde, ainda de acordo com os garis, se reuniu primeiro com o gerente local da Comlurb. Depois de cerca de meia-hora de conversa, Jaime foi inspecionar o local. Quando percebeu que estava sendo filmado, pediu para desligarem a câmera.

https://www.youtube.com/watch?v=4n3UaHB9FD8&feature=youtu.be

Contam os garis que o conselheiro perguntou a três deles se eles eram maiores de idade. Recebeu sim como resposta. Quando pediu a identidade, todos disseram que estavam sem documentos. Por “não ter força de polícia”, Jaime não encaminhou os jovens para a delegacia para averiguação e deixou os supostos adolescentes irem embora. Mesmo com a baixa qualidade desse segundo vídeo, é possível perceber as feições quase infantis de um jovem de camisa rosa.

https://www.youtube.com/watch?v=5RzTsOzIyjU&feature=youtu.be

Na noite de segunda, o conselheiro tutelar disse que teria que falar com o colegiado de conselheiros antes de conceder entrevista. Na terça-feira, informou que o colegiado decidiu não conceder a entrevista. Ainda na noite da denúncia no Méier, o vereador Babá foi até o local e, juntamente com dois garis, registrou ocorrência na 23ª Delegacia de Polícia acusando o conselheiro de negligência. Os dois bateram boca dentro da delegacia e tiveram que ser contidos pelo delegado de plantão. Nesta terça-feira, com exposição de fotos e vídeos, Babá levou a denúncia ao plenário da Câmara de Vereadores, que estava tomado por professores e garis.

(agradecimento ao gabinete do vereador Babá, que forneceu boa parte do material).

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