Protesto para gringo ver — e chorar

No Rio, trupe imensa de jornalistas estrangeiros se embrenha entre Black Blocs e PM's para conhecer a fragrância do spray de pimenta brasileiro.

Jornalismo em Pé
jornalismoempe

--

DesTemperados

Não há uma tática segura para, ao mesmo tempo, cobrir de perto uma manifestação de rua e proteger-se do irritante cheiro doce que invade a garganta e os olhos toda a vez que um agente de segurança lança no ar o desodorante preferido da polícia militar brasileira. Para o jornalista, a dúvida é cruel: ou usa-se a máscara antigás e desconecta-se de parte dos fatos a sua volta ou, então, espirra, espirra, tosse e chora. Sem o equipamento de proteção, o fotógrafo japonês chorou de tanto espirrar. Em busca de um registro bem vivaz para atravessar o mundo, ele ficou a poucos passos do cordão de isolamento que uma centena de policiais militares formava diante de um grupo de Black Blocs, perto do portão da Prefeitura, no centro do Rio, no início da noite desta quinta-feira. Talvez o clique até tenha sido preciso, mas a ideia nunca será boa por completa por aqui. Protesto brasileiro, pelo menos para aperitivo, sempre é temperado com o spray de pimenta (ou spray de gás OC, de Oleorresina Capsium, a maldita secreção que é extraída de algumas plantas — entre elas, a malagueta). Amplamente documentadas, é corriqueiro que as desavenças entre PM's e BB's - os dois segmentos mais violentos de toda a trama — espalhem pimentas voadoras pelos ares. Espirram todos: manifestantes, policiais, vendedores de bebidas, guardas de trânsito e, claro, o fotógrafo japonês.

Pimenta na garganta de PM dói também.

Nem é comum, mas, dessa vez, teve policial militar que não aguentou. Logo que o colega de farda apertou o gatilho mais apimentado do novo leste, André Luiz pegou uma máscara lá com a retaguarda do pelotão e protegeu sua garganta da picardia gasosa. Eram cenas como essa que as câmaras estrangeiras estavam procurando.

Cobertura de Copa do Mundo

Os movimentos sociais conclamaram o 15 de maio como data oficial da abertura da "Copa das Manifestações" que, como o nome já supõe, propõe uma Copa do Mundo, como de costume, repleta de bandeiras e gritos nas ruas — só que agora em protesto. Todos os estratos envolvidos - dos mobilizados indignados passando pelos indignados acomodados, pela imprensa e chegando ao Palácio do Planalto - tiraram o dia para medir a temperatura da fervura da panela.

A imprensa internacional já instalada na Capital da Copa, o Rio de Janeiro, entendeu bem a pauta da ocasião: coletar opiniões dos brasileiros que, a quatro semanas do torneio, odeiam o Mundial e vociferaram contra a FIFA e os mais de R$30 bilhões de reais gastos pelo Poder Público para o torneio, que durará um mês e um dia. Mais de 30 jornalistas estrangeiros estiveram na Central do Brasil para escutar com os próprios ouvidos como a banda toca por aqui. Na lição número 1, devem ter aprendido que protesto brasileiro não costuma esquentar na hora marcada. Antes das 17h, portanto, a contabilidade impressionava: havia mais imprensa transoceânica do que nacional. Escutava-se o inglês da BBC e da Reuters, o francês da France Press, o espanhol da EFE, o alemão da DeutscheWelle, o holandês da D.TV. Alguns bem jovens, outros já bem carecas, todos circulavam com altivez entre o público, com crachás à mostra.

Enquanto a mídia tradicional brasileira sobe aos helicópteros, jornalistas estrangeiros transitam entre os manifestantes com total desinibição.
Imprensa estrangeira impressiona com tecnologia avançada em cobertura manifestações. Na foto, operador de áudio leva a tiracolo uma "mesa"com mais de 30 botões.

Gringos que são, ainda mais em missão profissional, fotografavam e filmavam tudo o que podiam, freneticamente. Alguns usavam intérpretes. Na dificuldade de se comunicar, os movimentos sociais escolhiam seus representantes mais poliglotas para discursar em frente às lentes internacionais. Enquanto isso, os mais cascudos fotojornalistas do Rio de Janeiro esperavam, sem muitos cliques, a marcha pegar no tranco. Já os repórteres dos mais assistidos canais de televisão do Brasil, mais outra vez, não foram vistos em terra firme. Nem Globo, nem Band (o protesto foi marcado para a mesma vizinhança onde foi morto o cinegrafista Santiago Andrade), nem Record, nem SBT apareceram.

No entanto, nos céus, cinco helicópteros tinham visão privilegiada da multidão (e da belíssima lua cheia). Enquanto não inventam a Unidade Móvel de Reportagem Blindada, uma espécie de papa-móvel do jornalismo moderno com aqueles microfones insuportáveis de bilheteria de cinema, é só lá no alto, dentro do veículo urbano mais barulhento já inventado, que os repórteres que carregam os microfones mais pesados do Brasil se sentem seguros. E numa avaliação bem honesta, sem querer disseminar temor em ninguém, é apenas lá que estão seguros mesmo.

Antes de o sol se pôr, em frente ao portão principal da Central do Brasil, tambores e trompete misturavam-se às bandeiras do Juntos!, da ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes — Livre) e ainda do CSP Conlutas (Central Sindical e Popular). Logo chegou um Fuleco gigante. Em vez daquela simpática cara de tatu-bola de desenho animado, o mascote da Copa de 2014 encarnava um porco capitalista corrupto, repleto de dinheiro nos bolsos.

Tatu-bola também reclama por direitos humanos.

Como de praxe, era farta a distribuição de material gráfico. Movimentos sociais e parlamentares de esquerda defendiam em seus panfletos "todo apoio às lutas do povo". Distinta era a oferta da Intervenção Comunista. Impresso em papel rígido, bom para ler e guardar, o Jornal Internacionalista de Análise Marxista era vendido a R$2. O comprador ainda era gentilmente convidado a participar de um ciclo de debates marxistas sobre a "China: o novo gigante imperialista na rapina da contenda mundial" em Niterói. Outros pitorescos personagens de fé, obrigatórios nos protestos do Rio, também já haviam chegado. O mais comparecente é Eron Moraes de Melo, de 33 anos. Profissional do ramo de próteses dentárias, sempre surge física e psicologicamente preparado para virar o centro das atenções. Experiente, previu a ocasião para um protesto bilíngue. Vestido de Batman, carregava um cartaz de frente e verso. De um lado, em português, pedia escolas e hospitais no padrão FIFA. Do outro , fazia o mesmo em inglês. E ainda completava: "Fuck the World Cup". O lema "foda-se a Copa", aliás, era o favorito em camisetas, cartazes e também na central rítmica da passeata. "Ôôôô-ôôôÔ-Ô-Ô-Ô-Ô-Ô-Ô, foda-se a Copa!" foi entoado várias vezes.

Batmam engajado agora é famoso também fora do Brasil.

Quando o relógio marcou 17h, pôde-se ver a organização Black Bloc para o ato. Cerca de 30 jovens muito jovens, alguns até mesmo menores de idade, pintavam de preto a máscara branquinha do Anounymous. Quem não a tinha amarrava camisa, preferencialmente preta, em volta do rosto, ventilando apenas os olhos. Apresentavam-se com uma caixa de som via bluetooth que não funcionava bem. Em meio a gritos de guerra bem pouco melódicos, pediram a liberdade de Fábio. Entende-se que seja Fábio Raposo, preso preventivamente no aguardo do julgamento da morte do cinegrafista Santiago Andrade em fevereiro. Segundo a Polícia Civil e o Ministério Público, foi ele quem passou o artefato explosivo para Caio Silva arremessar na multidão.

Desde cedo, ficava nítido que o grupo de Black Blocs agiam por coordenação própria, sempre bem vigiados pela polícia, enquanto os outros grupos compunham a manifestação em unidade. Prova disso é que a caminhada esperou até às 17h20 para disparar, horário em que a caminhada de cerca de 600 servidores estaduais da educação alcançou aquele trecho da Avenida Presidente Vargas. Em greve, eles haviam deixado a Tijuca, onde uma assembléia mantivera a paralisação. Bandeiras do PSTU apareceram neste momento. Da Cinelândia, em outro sentido, chegavam rodoviários e outros movimentos classistas. Entre eles, os garis. Em março, sem apoio do sindicato, um grupo dissidente liderou uma greve de 8 dias que só acabou após a Prefeitura aceitar um farto reajuste de 37%. Era o que precisava para os garis se transformarem em uma espécie de heróis da oposição local. Seus líderes ganharam prestígio nos movimentos sociais e, nesse momento, tentam ampliar a rede de atuação. Cantavam: "A nossa luta unificô! Rodoviário, estudante e professor"!

Com todas essas turmas unidas, a marcha interditou a pista do sentido centro-bairro da avenida Presidente Vargas e partiu com pouco mais de duas mil pessoas em direção à sede da Prefeitura do Rio, distante 2,5 km dali. Que percurso fedido! Ao lado da caminhada, corria um "rio"¹ absolutamente pútrido, onde era possível até flagar vultuosas explosões subaquáticas de alguma massa preta indecifrável. O pelotão de policiais que acompanhava a passeata preferiu, então, prosseguir na margem oposta do rio. Era melhor evitar o risco de cair em águas tão nojentas numa eventual confusão.

Rio imundo separou policiais e manifestantes em passeata no Rio de Janeiro.

No carro de som, cânticos de guerra. No chão, os jornalistas estrangeiros e os midiativistas brasileiros registravam atos simbólicos. O Batman subiu um imenso pedestal para posar ao lado da estátua em homenagem a Zumbi dos Palmares. Foram mais fotos registradas do que todo o século XIX. Em frente ao Sambódromo, os Black Blocs queimaram a bandeira do Brasil. Eles andavam à frente do grupo, sempre mais ansiosos para alcançar a Prefeitura. Atrás, um grupo de educadoras entrelaçavam os braços em uma cena bonita.

Manifestantes cruzaram mais de 2km da Avenida Presidente Vargas, mas não pressionaram prédio da Prefeitura.

Não demorou muito para o cortejo chegar à Prefeitura e produzir as situações mais paradigmáticas para o nosso enredo. Os Black Blocs queriam pressionar o portão do centro administrativo. Chegaram fazendo barulho, auxiliados pela caixa de som, que agora funcionava. Deram play em um rock metal pesado e ensaiaram uma roda punk em frente ao imenso paredão formado pelo Batalhão de Choque. Em clara manifestação de desacordo com as táticas violentas, o restante da manifestação arrefeceu. Por via das dúvidas, ninguém mais se aproximou do prédio e o protesto caminhou para um final melancólico. Grande parte escapou de fininho pela rua Afonso Cavalcanti. Outros deram meia volta e decidiram caminhar de volta a Central do Brasil. Os escudos da PM, portanto, voltaram para o Batalhão sem nenhum arranhão.

ESCUDOS INTACTOS

Ainda procurando certa ação, Black Blocs e outro grupo de policias se provocaram. Os jovens partiram agrupados entre carros e ônibus engarrafados na avenida, provocando temor entre motoristas e os estudantes da Universidade Estácio de Sá, que deixavam a aula perto das 19h30. Os policiais — alguns com câmeras acopladas em seus óculos — seguiam atrás, espalhando o aroma apimentado e fazendo uma família inteira chorar num ponto de ônibus. Não havia mais protesto organizado, só um resquício temerário, momento mais perigoso de uma manifestação.

Quando o grosso da correria já havia retornado à Central do Brasil, poucos jornalistas estrangeiros ainda perseveravam na caminhada. O que garantia uma certa equivalência de forças entre PM's e suspeitos revistados era o batalhão de câmeras de celulares conectadas ao vivo em transmissão. Quando um policial truculento vasculhava a mochila de um rapaz, a roda cibernética a volta era tão grande que um outro PM não se aguentou de tanta emoção. Deixou no chão uma bomba de gás lacrimogêneo, que dispersou o grupo restante pela última vez.

Manifestante no centro da foto foi o único detido do protesto do #15M no Rio de Janeiro.

Não demorou para a Central do Brasil voltar a sua intraquilidade habitual. Antes mesmo do imenso relógio badalar às 20h, só chamavam a atenção os mendigos dormindo nas ruas, as pessoas correndo para voltar cedo para casa e os ambulantes berrando em busca de mais vendas.

Em outras cidades do Brasil, a quinta-feira também serviu para atos de oposição à Copa, embora, em muitos deles, tenha sido difícil separar o que era pauta contra o Mundial e o que era reivindicação classista. Os casos mais noticiosos ocorreram em Recife, onde a greve da PM levou a uma série de saques na Região Metropolitana, e em São Paulo, onde, pela manhã, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto mobilizou uma multidão para protestar bem perto do Itaquerão, palco do pontapé inicial da Copa.

É difícil avaliar se um protesto alcançou ou não o seu objetivo. Até por que os objetivos de muitos protestos contra a Copa brasileira têm sido difíceis de entender. A campanha #NãoVaiTerCopa esfriou. Com a clara sensação de que Brasil e Croácia duelarão no próximo dia 12 na abertura da Copa, as manifestações parecem mais empenhadas em marcar a posição de alguns poucos brasileiros que permaneceram mobilizados nas ruas desde junho do ano passado. Até mesmo a linha de frente do Governo Federal confirma que está dormindo mais sossegado. "Dizia-se que ia ser um caos. Não vai", disse o Secretário-Geral da Presidência Gilberto Carvalho neste sábado(17).

Em entrevista na quinta-feira (15) ao Brasil de Fato, o coordenador do MTST Guilherme Boulos deu a sua opinião em relação aos motivos dos protestos temáticos se mostrem tão esvaziados às vésperas da Copa.

"Na verdade, você tem uma insatisfação bastante considerável em relação à Copa, medida por pesquisas. Agora, se isso não se vincula a uma pauta concreta, o discurso fica vazio e as pessoas não vão às ruas mesmo. Elas se mobilizam por questões claras".

Nenhum jornalista deveria fazer previsões sobre fatos inseridos em uma conjectura tão grandiosa, mas, dessa vez, o Jornalismo em Pé não resiste e registra: ou surge um fato novo e a multidão retorna em peso às ruas, como fez na Copa das Confederações, ou teremos vivido uma geração de turistas de protestos. Uma turma que visitou às ruas em 2013, não gostou e pode nunca mais voltar.

--

--