Um ano em regressiva, um caderno de atrasos, um milhão de turistas e 19 prisões intimidatórias.

"Imagina na Copa". Muitos imaginamos como seria. Ninguém tinha certeza, ninguém acertou. Não foi o caos, muito menos a Copa das Copas.

Jornalismo em Pé
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(2ª parte)

Abaixo da passarela que liga a Estação de Metrô Artur Alvim à enorme pista da radial leste, uma dupla azucrinava em festa. Os jovens sauditas também se destacavam da multidão pelo vestuário, composto pela thawb e pelo keffiyeh. Com roupas tão exóticas para a zona leste de São Paulo, queriam tirar fotos com todos. Todos, por sua vez, queria tirar foto com eles.

Entrevista solicitada, entrevista concedida, desde que eu aguardasse o rapaz vestir sobre seu pescoço um cachecol verde e branco. Apontou o típico narigão árabe para a câmera e comemorou, em inglês, seus ingressos da abertura da Copa.

— Viemos da Arábia Saudita, mas aqui somos torcedores da Argélia, porque a Argélia é o único time árabe na Copa do Mundo, sabia?

Nem tinha reparado.
Também não tinha nem ideia de que seriam tantos costa-riquenhos a dançar forró no Recife antigo. Ou tantos jornalistas a apanhar no Rio.
Nunca imaginei que a Marquês de Sapucaí se transformaria na melhor pedida para quem quisesse filar um legítimo assado de tira argentino na noite da véspera da final do Mundial.
Desde a infância, eu já tinha imaginado um montão como seria uma Copa no Brasil, mas não sabia de nada.

INÍCIO DA REGRESSIVA
O domingo, 1° de julho de 2013, foi sensacional. Tudo muito simbólico. No campo do Maracanã, após duas semanas de intensos protestos pelo país, a Seleção Brasileira teria pela frente os bicampeões da Europa e então campeões mundiais, os espanhóis. Podia-se, de verdade, sentir o cheiro misturado de pimenta e gás que migrava da manifestação na praça Varnhagen até o estádio. Despreze o quanto quiser a Copa das Confederações, ainda o que sobra é um jogo épico, uma grande final.

Fomos convencidos a acreditar numa equipe que se mostrou fantástica. Quem não era excepcional — distinção merecida apenas a Thiago Silva e Neymar — era, no mínimo, bom jogador e muitíssimo esforçado.

(foto: Rafael Ribeiro, CBFNews)

Foram 90 minutos de extremo brilho brasileiro. Fred fez um gol deitado e outro em pé. Neymar pregou Casillas com um tirambaço de canhota. Paulinho, sensacional, quase fez mais um de cobertura. David Luiz salvou o Brasil em cima da linha. E Júlio Cesar soprou o pênalti de Sergio Ramos para fora!

Hoje é até estranho lembrar dessa equipe jogando tão bem assim, mas a verdade é que a atuação e o resultado daquela noite iniciavam uma otimista contagem regressiva para a Copa dali a um ano. Imagina sermos campeões do mundo em casa?! Seria um longo ano de expectativa. E não queríamos apenas saber se venceríamos o hexa. Queríamos mais respostas. Os estádios ficarão prontos? Os aeroportos sofrerão em pane? Haverá protestos ainda maiores? Serão respeitados? E as festas? Vão entupir de gringo? E o preço do aluguel em Itaquera? Vai subir ainda mais? E a exploração sexual? A vigilância sanitária? Os vendedores ambulantes? Tínhamos só um ano para descobrir nosso futuro, para saber quais memórias teríamos para a vida toda.

UM ANO DE OPOSIÇÃO

Era o auge do calor do verão de 2014. Em dois dias tórridos entre o fim de janeiro e o início de fevereiro, estive na Acampada do Juntos!, em Magé, na Baixada Fluminense. Eram mais de duzentas pessoas reunidas, a maioria jovens. Queriam conversar sobre o ano que se pretendia histórico, queriam "organizar suas indignações".

— 2013 acabou apenas formalmente. Na prática, o processo de 2013 continua. (Maurício Costa, liderança do Juntos!)

No galpão dos fundos da propriedade, o jovem cientista social, (agora candidato a deputado federal pelo PSOL de São Paulo) Thiago Aguiar, de 24 anos, pegou o microfone. Seus olhos fulguravam ao lembrar de junho passado. Os punhos cerravam ao falar com tanta gana de, outra vez, ocupar as ruas e mostrar para o mundo que "não queremos a Copa das empreiteiras". O microfone passava de mão em mão e o repúdio ao megaevento seguia contundente. Usavam bons argumentos para criticar a Lei Geral da Copa, as intromissões da FIFA na soberania nacional, o gasto bilionário em estádios, a remoção em razão das obras, a repressão em função do Mundial.

Não é possível dizer quantos ali apoiavam ou rejeitavam o radicalismo do #nãovaitercopa. O fato é que a famosa hashtag, sempre muito criticada por Dilma, já havia se popularizado na internet, a ponto de dar nome para as maiores manifestações contra a Copa em 2014. Antes delas, no entanto, era preciso voltar às ruas para evitar uma nova tentativa do aumento das passagens, aquele indeferido pelo povo no ano passado sob porrada, gás e pimenta.

Para a cidade do Rio, Eduardo Paes havia decretado o acréscimo de 25 centavos na tarifa a partir de 8 de fevereiro. Era o primeiro prefeito de uma grande capital do país a se arriscar com a resistência. Iria pagar (ou cobrar) para ver. A prova de fogo, a manifestação contra o aumento, foi marcada, então, para o final da tarde do dia 6, uma quinta-feira. Na concentração do ato, na praça da Igreja da Candelária, conversei com alguns exemplares de "pessoas comuns", aqueles cidadãos que não se dedicam semanalmente aos protestos, mas que, naquele caso específico, achavam correto estar na rua para se manifestar contra o transporte público. Em poucas ocasiões e em pouca quantidade, pessoas comuns se unem aos mobilizados, corajosos resistentes de oposição que não arredam pé da rua já há muito tempo. Muito menos em ano de Copa.

Naquela quinta, mesmo quando as quase cinco mil pessoas ocuparam a avenida Presidente Vargas em marcha, não confiei que seríamos capazes de barrar o aumento. Por outro lado, chegava a acreditar que os objetivos da missão daquela tarde/noite seriam alcançados: marchar até a Central do Brasil, dominar as catracas da maior estação de trens do Rio e liberar a passagem dos usuários por algum tempo razoável. Voltei a duvidar de tudo quando, à frente de todo grupo, posicionaram-se os Black Blocs avançando a passos bem mais destemidos.

A partir desse momento, a história se separa em duas: a menos importante registra que parte da multidão ingressou na Central, derrubou algumas poucas catracas, subiu sobre outras e abriu passagem para um mar de gente durante duas horas e meia. Os usuários sorriam, batiam palmas, davam apoio. Pouquíssimos faziam questão de gastar o cartão nos acessos ainda em funcionamento.

Sem vandalismo, sem caretismo, a oposição da cidade abraçava-se ao usuário pela oportunidade de andar de graça de trem. Ainda por cima, o prejuízo ia para conta da Supervia, a dona dos metrôs da cidade. Quando a vazão de passageiros diminuiu, perto das 21h, a concessionária voltou, pacificamente, a ter o domínio das entradas.

A outra parte da história é bem mais importante para o roteiro da trama e corre fora do prédio. Um jovem com rosto coberto passa um rojão de vara, sem a vara, para um outro rapaz de rosto coberto. Ele lança o artefato em direção aos policiais, que já abusavam da força do outro lado da praça, defronte à estação. No caminho impreciso, em vez dos militares, a bomba acerta a nuca de Santiago Andrade, cinegrafista da Band, que morre 4 dias depois.

Na tarde de sua morte, estive na 17ª delegacia de Polícia, em São Cristóvão. Era lá que a grande mídia estava de guarida, à espera do suspeito do crime. Pude sentir na pele que o clima havia mudado. Sem crachá que me identificasse, jornalistas de grandes veículos estranharam minha presença e chamaram um policial civil para me inquirir. Após provar que eu "não tinha participações em protestos violentos", um outro jornalista pediu para ver minhas fotos. Felizmente, no cartão da câmera só havia uma, que mostrava a emocionada trupe de jornalistas e técnicos de tv reunida num bar ao lado da delegacia para assistir à homenagem que a Band fazia, no ar, a Santiago, amigo de muitos dali.

Atingida na cabeça, a mídia tradicional reagiu com força. Na teoria e na prática um dos alvos fundamentais dos protestos, se posicionou.

— Sem cidadãos informados, não há democracia. Desde as primeiras grandes manifestações de Junho, que reuniram milhões de cidadãos pacificamente no Brasil todo, grupos minoritários acrescentaram o ingrediente desastroso da violência. E a cada nova manifestação passaram a hostilizar jornalistas profissionais. Foi uma atitude autoritária, porque atacou a liberdade de expressão. E foi uma atitude suicida, porque sem os jornalistas profissionais a nação não tem como tomar conhecimento amplo das manifestações que promove. (editorial Rede Globo 10/02/2014)

— As autoridades deveriam agir de maneira mais dura contra esses tais Black Blocs. O politicamente correto não permite que se use a força policial de forma contundente contra essa cambada de arruaceiros. Já falei e repito: tem que baixar o pau nesses baderneiros. (Ratinho, 10/02/2014)

Era a virada definitiva de um jogo manjado há muito tempo. Escorados sobre a opinião da mídia e sobre a ausência do físico apoio popular nos protestos, a polícia militar estava agora ideologicamente autorizada a reprimir as manifestações com gosto, ainda mais em ano de Copa do Mundo. Conclusão importante, embora bem pessoal: passou a ser perigoso demais frequentar atos públicos de oposição.

É impossível precisar o quanto o medo do perigo — de PMs ou Black Blocs — arrefeceu as manifestações. Mas se me parece certo registrar que foi um ano recheado de coragem, de atos contra a Copa por todo o Brasil, é correto reservar espaço para dizer também que o país, com aquele sentimento coletivo de mudança, perdeu potência em seus protestos de rua.

De todos os grupos que se organizaram contra a Copa, talvez seja do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) o troféu de campeão da oposição. No sábado, 3 de maio, cerca de mil famílias ocuparam um imenso terreno abandonado na zona leste paulistana, próximo ao Planetário do Carmo — não por acaso, a apenas 4 quilômetros do estádio de Itaquera. Em 11 de junho, a 24 horas do início da Copa, fui conhecer o terreno e também Josué Augusto Rocha, médico de formação, jovem responsável pela ocupação Copa do Povo.

— Estamos aqui com 5 mil famílias — a grande maioria é daqui da região de Itaquera mesmo. Foi uma região que há cinco anos, desde o anúncio que a abertura da Copa do Mundo seria aqui, vem enfrentando um aumento muito importante no valor dos aluguéis e no valor dos imóveis. Famílias que antes pagavam R$300 de aluguel, agora tem que pagar R$500, 600, 700 reais… Isso compromete completamente o orçamento familiar. (Josué Augusto Rocha, coordenador da Copa do Povo, de Itaquera)

Antes de eu terminar a pergunta "e no teu caso, de quanto foi o aumento?", Cláudio Rocha, 42 anos, abriu esse sorriso sarcástico para responder que seu aluguel subira 50%.
- De qual ano para qual ano?
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(novo sorriso debochado): De qual ano para qual ano, não! De qual mês para qual mês! Em 6 meses, houve essa faixa de aumento.
- Você pagava quanto e agora passou a pagar quanto?
- Eu pagava R$480 e foi para R$720. Não tive mais condições de pagar. Parte da minha família está morando de favor e eu estou aqui, na luta do acampamento.

Itaquera serve como chegada e partida de um mundo chamado zona leste de São Paulo. É um portal, aonde o metrô ainda alcança. Na prática, a ocupação é a corda na qual a comunidade se agarra para não ser obrigada a viver na periferia da periferia de São Paulo, o que pode significar uma vida perdida no transporte público.

Juninho me pegou pelo braço para mostrar os 8 grupos, espécies de lotes, nos quais a ocupação se divide. Com medo de constrangê-lo, fiquei tímido de pedir para conhecer seu barraco. Não precisou. Fui convidado pelo orgulhoso anfitrião do grupo 7 a conhecer seu espaço, o suficiente para um armário e uma cama. Paulistano de 21 anos, vende água no farol. Com pouco dinheiro no bolso e repleto de conflitos familiares na antiga casa apertada, passou a viver na Copa do Povo.

— Tem que se reunir para a gente se erguer. Se a gente não se reunir, a gente não vai se erguer de jeito nenhum. Aqui não é como a família de sangue. Aqui todo mundo é como uma grande família que se dá bem. (Juninho, mobilizado do MTST)

Tamanha felicidade de Juninho se justificava. A semana era especialmente alegre para a ocupação. Depois de três grandes protestos sem quebra-quebra, o MTST teve toda sua pauta atendida. Exigindo uma abertura de Copa do Mundo sem protestos, o Governo Federal aceitou diversas reivindicações do Movimento para o lançamento da terceira fase do Minha Casa, Minha Vida. É o caso da ampliação do programa para a população de baixíssima renda. Foi acordada também a criação de uma comissão nacional de prevenção a despejos, além da promessa do atendimento especial aos ocupantes da Copa do Povo. Mesmo com o fim da Copa do Mundo, as famílias seguem no acampamento de Itaquera.

Manifestação de cerca de 20 mil pessoas tomou a Ponte Estaiada da Marginal Pinheiros, em São Paulo. Ticiane Pinheiro não gostou de ficar presa no trânsito, mas a luta de rua surtiu efeito. (foto: Mídia Ninja)

O fim desta história de oposição ao Mundial, no entanto, é lamentável. Na véspera da finalíssima, 19 pessoas foram presas pela Polícia do Rio acusadas de planejar e participar de atos de vandalismo. O crime descrito, o de quadrilha armada. Só que o inquérito, aberto em SETEMBRO, corre em segredo de justiça… só que armas e explosivos não foram apresentados — exceto uma pistola, que, segundo o jornal Extra, seria do pai de um dos menores apreendidos. Ou a polícia — e depois a Justiça — prova algo muito grave contra essas pessoas, ou um dia teremos certeza que, a poucas horas da final da Copa de 2014, tivemos prisões intimidatórias, de caráter político, num Brasil "democrático".

Se a véspera da final pode ter revelado uma orquestração possível entre polícia e justiça, o domingo derradeiro mostrou a face mais dura da repressão. Na praça Sáens Peña, na Tijuca, quem teve coragem para protestar foi cercado pela polícia. Paradoxalmente, presos em praça pública. Jornalistas independentes apanharam um bocado, como o documentarista canadense Jason O’Hara, neste vídeo, chutado no rosto.

Para encerrar, o legado: no dia da maior operação de segurança que o país já viu, a polícia do Rio mostrou novas armas para as manifestações. Agora o gás sai colorido, em azul ou vermelho. A indumentária também mudou com a Copa. Agora, se parecem com o Robocop. Alguns tem até o rosto coberto! Que ironia…

UM ANO DE ATRASOS

Quando uma das principais figuras do governo federal vai a público e admite constrangimento com o inconcluso cronograma de obras é sintoma de que elas definitivamente ficaram muito aquém do prometido. Se fosse um atraso aqui outro ali, certamente não ouviríamos algo como isso:

— Fomos ambiciosos e quisemos aproveitar esse ensejo para trazer às cidades benefícios efetivos não tanto para a Copa, mas para mudar a cara dessas localidades. Guardamos a frustração de não termos entregue todas as obras, mas o essencial nós conseguimos entregar. (Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência da República durante a Copa do Mundo)

Para começar nossa missão, o mais difícil obstáculo é conseguir números confiáveis sobre as obras. No Copa Transparente, portal do Congresso Nacional, o sistema de procura nem sempre funciona. Quando não sucede em tela branca, leva o eleitor a uma página confusa. Nem sempre consta o que importa: em quanto foi orçado, quanto já foi gasto, quanto já foi concluído e o prazo de entrega. E olha que o mesmo site anuncia o mesmo serviço "transparente" para as Olimpíadas de 2016.

o portal de Transparência da Copa foi uma promessa pomposa de Lula. Administrado pela Controladoria-Geral da União, este outro site é ainda pior. Está desatualizado em diversos links. Boa parte das obras conta com informações do 5° e último Balanço da Copa. Acontece que ele publicado em setembro de 2013 ou 10 (DEZ!) meses atrás. Outras obras parecem esquecidas por completo pelo site. É o caso, por exemplo, do porto de Salvador. As últimas informações do site a respeito do empreendimento são do 3° Balanço da Copa, divulgado no longíquo mês de abril de 2012. Obras que foram concluídas, ou quase isso, trazem, no entanto, informações mais atualizadas, deste ano. "Muito prestativas", são as Prefeituras que enviam as informações nestes casos positivos.

Sem bons portais de transparência, o eleitor perde autonomia. Precisa da mídia ou de órgãos especializados para poder tirar suas conclusões indiretas. Então, vamos a eles: um levantamento da ONG Contas Abertas, (que possui publicidade da Veja em seu site) mostrou que apenas 51,7% das obras ficaram prontas para o Mundial, incluindo aí os estádios. A impressão, nas ruas, me parece ainda menor. Em Porto Alegre, por exemplo, das 19 obras que deixariam legado para a mobilidade da cidade, apenas 6 ficaram prontas. Houve pressa somente com aquelas intervenções essenciais à competição, como a adequação do acesso ao estádio Beira-Rio. A Prefeitura da capital gaúcha parece ter incluído algumas outras obras no pacote da Copa apenas para se beneficiar dos financiamentos favoráveis da União. Para a população, o recado era outro.

Com uma tragédia em obra atrasada da Copa, Belo Horizonte também passou vergonha. Dia 15/05/2014, a Prefeitura informou ao Portal da Copa que estavam concluídos 93% do Corredor Pedro II e das obras complementares nos BRT’s Antônio Carlos/Pedro I e Cristiano Machado. Menos de 2 meses depois e durante a Copa do Mundo, o viaduto Batalha dos Guararapes, parte das obras complementares, caiu sobre a avenida Pedro I, matando duas pessoas.

Em Pernambuco, o que seria o maior legado da Copa, ainda nem tem licença ambiental aprovada. Talvez o mais ambicioso (megalomaníaco?) projeto ligado ao Mundial previa a construção da Cidade da Copa em um imenso descampado, na cidade de São João da Mata, junto à Arena Pernambuco. Para a Copa, a promessa, feita em 2012, é que também já estariam prontos um hotel, a Arena Indoor, uma universidade, a Praça de Celebração e ainda restaurantes. Nada foi erguido além do estádio, o mais isolado do país.

Nesse ano de correria, o Regime Diferenciado de Contratações de Obras Públicas (RDC) também merece ser duramente criticado. Aprovada em polêmica votação no Congresso em 2011, a iniciativa que serviria para agilizar as licitações para as obras da Copa não deu certo. É o que mostra um levantamento do Sindicato da Arquitetura e da Engenharia em parceria com o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. Apenas 4 empreendimentos dos 20 incluídos no regime especial haviam sido entregues no final de maio. O tiro saiu pela culatra. As obras em RDC foram mais lentas que a média geral das intervenções.

O Governo Federal também pecou ao divulgar os balanços das obras da Copa. De janeiro de 2011, data do primeiro balanço, até hoje já se foram 3 anos e meio. 42 meses e apenas 5 balanços publicados. Agora olhe que curiosas as datas das publicações.
I Balanço: janeiro de 2011
II Balanço: setembro de 2011 (8 meses depois)
III Balanço: abril de 2012 (7 meses depois)
IV Balanço: dezembro de 2012 (8 meses depois)
V Balanço: setembro de 2013 (9 meses depois)

Já estamos em julho de 2014 (10 meses depois) e nada de novo documento no site. Nem promessa.

Dando folga para o pessimismo, houve também obras que ficaram prontas a tempo do Mundial e já ajudam a vida das cidades. São os casos dos BRT's de Recife e Rio de Janeiro. A passarela que liga o terminal do aeroporto do Recife ao metrô também ajudou muito o pernambucano. Em Porto Alegre, o viaduto Pinheiro Borda melhorou bastante o trânsito da zona sul para a zona central de Porto Alegre.

Arena Pernambuco, Recife

Os estádios ficaram prontos, bonitos e bons, pelo menos neste primeiro uso. Foi o maior salto de qualidade que o país teve com a Copa, sem dúvida. Nos 12 estádios do campeonato, foram praticamente extintos assentos com pouca visibilidade do campo. Os setores dos estádios foram organizados seguindo um raciocínio lógico de distribuição. Não há mais aperto insuportável em corredores ou nas rampas de acesso. Há mais e melhores lugares para os cadeirantes. As vias para sair e chegar aos estádios também melhoraram. As áreas de trabalho da imprensa mudaram de patamar.

Retornando ao pessimismo, ainda há muito o que se saber sobre as obras dos estádios. Primeiro de tudo: haverá responsabilização pelas oito mortes em estádios do Mundial? Não serei leviano de dizer que a pressa acarretou nos óbitos, mas alguns dados me chamam a atenção. Das 8 mortes, 7 foram em estádios entregues na última hora: o de São Paulo(3), Manaus(3) e Cuiabá(1). A primeira morte foi registrada em 2012 em Brasília, mas o Estádio Nacional Mané Garrincha tinha como prazo a Copa das Confederações de 2013. Assim sendo, 7 das 8 mortes ocorreram no período de um ano anterior a seu prazo final de entrega. A exceção é Raimundo Nonato Lima da Costa que morreu em março de 2013 na Arena Amazônia.

Pergunta dois: nitidamente construídos às pressas, esses estádios permanecerão seguros ao público? Seria apenas intriga da oposição, não estivéssemos com Engenhão, futuro palco do atletismo nas Olimpíadas do Rio, interditado por falta de segurança há mais de um ano. Ele também foi construído rapidamente para o Pan do Rio, em 2007.

Pergunta três: e os sobrepreços? Alguém paga? Em janeiro de 2014, o presidente do Tribunal de Contas da União, ministro Augusto Nardes, já apontava R$650 milhões de reais de sobrepreço (o que não significa superfaturamento) em obras da Copa, incluindo os estádios. O Tribunal de Contas do Distrito Federal, responsável por fiscalizar os gastos do Estádio Mané Garrincha, não se pronuncia sobre os gastos da Copa no Estado desde março. Nesta data, o órgão apontou indícios de superfaturamento de R$431 milhões de reais na arena brasiliense. Assim, o valor total do estádio mais caro e mais usado na Copa pode chegar a 1,9 bilhão de reais. A previsão inicial, em 2010, era que ele custaria aproximadamente R$ 700 milhões. Por não haver financiamento do BNDES, o Mané Garrincha não é fiscalizado nem pela CGU, nem pelo TCU. O Tribunal de Contas da União promete para outubro um relatório consolidado com os dados sobre as obras da Copa.

Pergunta quatro e quase desimportante depois de tudo isso: as arenas de Brasília, Cuiabá e Manaus vão conseguir se livrar da pecha de serem elefantes brancos? E os estádios de Natal e Pernambuco conseguirão ser rentáveis?

No dia seguinte à final da Copa, a presidenta Dilma Roussef reuniu o secretariado para, orgulhosa, expor o sucesso da Copa do Mundo. Os números revelados a partir de um levantamento feito pelo Ministério do Turismo são retumbantes. Segundo o órgão, o Brasil recebeu um milhão de estrangeiros durante o Mundial. Desses, 61% nunca haviam visitado o país. 95% dos estrangeiros teriam revelado que desejam voltar ao Brasil. Ainda segundo o estudo, foram três milhões de turistas nacionais, o que resultou num fluxo recorde de 16,7 milhões de passageiros nos aeroportos, com taxas de atrasos abaixo das médias internacionais. Em Brasília, conversei com dois turistas nórdicos maravilhados com a pontualidade dos aviões brasileiros. Tinham lido na internet que não era bem assim.

Para o Governo, os 177.002 profissionais de segurança pública foram fundamentais para uma Copa sem grandes ocorrências de violência. Em Fortaleza, policiais pululavam de todas as partes, próximo à praia de Iracema. Os cearenses aprovavam: "Oxi, se fosse sempre assim…".

Para o governo, o atendimento de saúde foi impecável durante a Copa. De acordo com o Centro Integrado de Operações Conjuntas da Saúde Nacional (CIOCS), do Ministério da Saúde, até as mortes por dengue caíram durante a competição. Foram 65% óbitos a menos do que o mesmo período do ano passado.

Na mesma cerimônia, a presidenta respondeu sobre as obras em atraso. O mantra dos governos segue o mesmo: defender que elas seguirão evoluindo em ritmo bom e, assim, servirão para o desenvolvimento das cidades.

A quantidade de remoções, desapropriações e outros "deslocamentos involuntários" não entrou neste balanço final da equipe de Dilma. Pelo menos, não teve qualquer destaque no site do governo para a Copa do Mundo. Esse balanço mereceu uma atenção bem menor.

Foto: Mídia Ninja

Divulgado pela Secretaria-Geral da Presidência durante a Copa, parece que foi feito para ninguém ler. No total, 10.804 famílias tiveram que deixar as suas casas. 68% dessas famílias tem renda inferior a 3 salários mínimos por mês. Das 32 intervenções que precisaram de remoções, o campeão foi o BRT Transcarioca, do Rio de Janeiro, por onde 2.038 residências deixaram de existir.

UM ANO DE ESPERA NO SITE DA FIFA

Sejamos sinceros: nem foi um ano. Continuemos sinceros: pareceu muito mais. Foi uma epopeia conseguir um ingresso para o Mundial. Muitos passaram noites em claro. Teve quem acordou catando cavaco ao ouvir o estridente alerta sonoro da fila de espera. Elouquentes, tentavam incluir o ingresso tão sonhado no carrinho virtual de compras. Era em vão: sold out!

O que foi pior? Saber de um amigo que sobravam espaços vazios em muitos jogos da Copa ou se aproximar dos estádios e encontrar bandos de adultos vestidos com a camisa do patrocinador em direção às arenas, a la passeio de escola?

O primeiro problema, ainda na primeira fase de vendas, foi com os argentinos. Na ocasião, de nosso país vizinho, vieram 266.937 solicitações de entradas. Apenas 4.493 (1,7%) foram contempladas. Os americanos, por exemplo, tiveram um êxito de 18% das solicitações. Estatísticos confirmaram: era impossível que fossem tão azarados os argentinos. Foram os terceiros que mais pediram ingressos, mas apenas os décimos que mais receberam naquela primeira fase. A FIFA escolheu suas desculpas, como dizer que muitas solicitações de cartões de crédito dos argentinos foram negadas. Difícil acreditar.

Dezenas de milhares de argentinos vieram ao Brasil mesmo sem ingressos. Em Porto Alegre, para a partida contra a Nigéria seriam 100 mil. Na final, no Rio, repetiram a estimativa. Na Marquês de Sapucaí, à véspera da final, entre o espetacular odor da carne ao fogo, os hermanos se mostravam ressentidos: 'eres imposible una entrada! Imposible'.

Com o incerto sistema de sorteio, muita gente se candidatou às entradas mesmo sem ter a certeza de que conseguiria ir. Não era possível passar o ingresso para um amigo na cidade distante, mesmo que fosse produzida uma carta juramentada de boas intenções. O ingresso era pessoal e intransferível, o que, teoricamente, evitaria a ação dos cambistas. Para revender o ingresso no próprio site, a taxa era de módicos 10% — R$60 em alguns casos. Dinheiro que, certamente, foi muito bem recebido na Suíça.

Seria falsificação ideológica entrar no estádio com um ingresso que não fosse seu. Uau, como a FIFA é má. Na hora de retirar os tickets, os funcionários da gloriosa empresa Match alertavam com cara de agentes internacionais: "não pode molhar, dobrar, amassar…" Tudo bobagem para fazer onda. Ninguém conferia o nome do ingresso nos acessos ao estádios. Ingressos amassados também eram aceitos.

Após a fase de sorteio, a missão só se tornava mais inglória. Era quase impossível conseguir os bilhetes para jogos nas maiores capitais do país. Ingressos da segunda fase e dos jogos do Brasil também estavam constantemente esgotados. Até aí, tudo bem, faz parte do jogo. O que intrigava era a abertura de novos lotes sem qualquer explicação, mesmo durante o Mundial. Ao se aproximar da abertura, a FIFA parou de dar informações precisas de quantos ingressos ainda estariam à disposição. Criou-se o angustiado torcedor da madrugada. Freneticamente, com vários navegadores abertos ao mesmo tempo, ele pressionava o F5 na esperança da boa notícia. Programadores desenvolveram sistemas que aceleravam o processo de compra.

Durante a Copa, outra coisa me chamou a atenção: a quantidade de pessoas com crachás do Mundial assistindo aos jogos em áreas comuns do estádio. Esse pessoal credenciado deve ser muito sortudo mesmo!, como muitos dos meus amigos jornalistas. Ou será que as empresas que eles trabalham têm facilidade de comprar ou receber ingressos? Será?

Para fechar com chave de ouro o assunto 'ingressos', o cambismo. Os amadores, também chamados de 'amigos' no Facebook, não tiveram qualquer constrangimento de publicar: "vendo ingressos para os jogos do Rio".
— Fala, cara. Ainda tem os ingressos?
— Fala tenho sim….da fase de grupo, mas ja aviso q to cobrando caro!rs Mil pratas por ingresso da fase de grupos.

Os profissionais faziam o serviço mais discretamente, é claro. No metrô do Rio, a caminho da finalíssima da Copa, um argentino falava com um senhor com o agasalho de Zâmbia. Aguardei o hermano desistir para perguntar:
How much is it?
— Ten thousand!
— Reals?
— (cara de desprezo): Dollars, of course!

Era de se esperar. O que surpreendeu foi a Polícia Civil do Rio, a mesma que prendeu os 19 suspeitos na véspera da final da Copa, desbaratar a maior quadrilha de cambistas que se tem notícia na história dos mundiais. O líder da quadrilha, como a polícia mostra em grampos telefônicos, tinha relações estreitas com a cúpula da Match. Os dois estão presos.

Mesmo com tantas dificuldades, ainda assim 3,4 milhões de torcedores conseguiram seus bilhetes e viram uma Copa do Mundo espetacular! Mas sobre isso, com melhor humor, eu escrevo na próxima parte dessa matéria.

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