Único quilombo da zona sul do Rio recebe portaria do INCRA e volta a celebrar com pagode e feijoada

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13 min readSep 24, 2014

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Área verde incrustada na valorizada Ladeira Sacopã, no Morro da Saudade, é reconhecida pelo INCRA como terra dos 28 quilombolas da Família Pinto. Cerimônia resgata tradicional festa carioca, proibida na área há 3 anos.

por Caetano Manenti

“Um sorriso neeeegro

um abraço neeeegro

traaaaaz felicidade”

Foi com o verso de Dona Ivone Lara na garganta e com um enorme sorriso negro no rosto que Luiz Sacopã descarregou tantas horas de emoções. Minutos antes, o líder da Família Pinto me admitia, num misto de sinceridade e galhofa, que passara a noite anterior com receio da plena resiliência de sua saúde. Afinal, tratava-se da véspera de um dia aguardado por ele há 72 anos — ou desde que nasceu, como o filho mais novo de Manoel Pinto Jr, o precursor desta longa história.

Em 1929, cansado de perambular com sua mulher e seus filhos em busca de trabalho em fazendas do interior do Rio e de Minas, o lavrador Manoel chegou ao Rio de Janeiro, à região que fica na margem nordeste da Lagoa Rodrigo de Freitas. Deixara em Nova Friburgo sua mulher, Eva, que servia às famílias ricas da Serra.

Onde se estabeleceu na cidade do Rio, Manoel encontrou — em vez de um ambiente prestigiado e valorizado, como agora é o trecho que fica entre o bairros de Copacabana e do Humaitá — apenas poucas casas pequenas e muitos terrenos baldios. Foi a antropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer, da Universidade Federal Fluminense, quem estudou a origem dos Pinto. Em seus trabalhos, ela relata que Manoel passou a trabalhar para a família Darke de Matos, dona de quase toda aquela área entre o Morro da Catacumba e a Fonte da Saudade. Primeiro, como faxineiro e jardineiro, depois, como guardião da mansão enquanto a matriarca Astréia viajava para Niterói ou para os Estados Unidos.

Com a valorização da área na década de 30, Astréia criou a Incorporadora Darke —lucrava com a expansão imobiliária e construções de novas ruas. Foi neste contexto que, em 1939, Manoel passou a trabalhar na abertura da Ladeira Sacopã, um sinuoso caminho íngrime que escala o Morro da Saudade como uma serpente desde a rua Fonte da Saudade, nome da importante rua que hoje batisma um pequeno bairro espremido entre a pedra, a lagoa e o túnel Rebouças.

Mais seguro com a situação no Rio, Manoel trouxe Eva e seus cinco filhos para perto de si. Descrita como mulher trabalhadora e agregadora, Eva ajudava no orçamento da casa com a venda de quentinhas para a multidão de operários que erguiam a emergente construção civil da região. Assim, estabeleceram morada no mesmo terreno onde, 75 anos depois, nesta terça-feira, 23 de setembro de 2014, seu filho Luiz cantava pagode e comia feijoada.

O casal Manoel Pinto e Eva Manoela da Cruz divide a moldura pregada à parede da cozinha do Quilombo Sacopã.

7 DÉCADAS E 5 ANOS DE INCERTEZAS

Não é uma linha reta, de paz e tranquilidade, que liga as obras da rua de 1939 ao pagodão de 2014. A história da família Pinto em um dos redutos mais grã-finos do Rio de Janeiro registra centenas de desvios e curvas tão imprevisíveis quanto as da própria Ladeira Sacopã. Logo nos primeiros anos no local, Manoel e Eva completaram com mais dois a prole de sete filhos. A maioria trabalhou desde jovem — com frequência, servindo às famílias ricas do bairro.

Três décadas se passaram, e os anos 70 trouxeram consigo as reais ameaças à família. A Prefeitura iniciou uma nova fase de urbanização na zona sul da cidade. Muitas favelas, como a da Catacumba, e famílias pobres sem registro adequado da terra onde moravam foram despejadas para a zona oeste da cidade, com a construção de conjuntos habitacionais da Cidade de Deus e da Vila Kennedy. Sem temperamento para enfrentamentos, era provável que o patriarca Manoel, ainda vivo, perdesse a propriedade onde crescera sua família.

Edifício Chácara Sacopã

Em 72, a ameaça ganhava concreto e massa corrida. O Edifício Chácara Sacopã fincou seus pilotis de sustentação dentro das terras ocupadas pela família pinto. Dois anos depois, mais disputa: subiu o muro de contenção do edifício Lagoa Azul, também dentro da área. E pior: a Prefeitura do Rio com auxílio da Polícia Militar iniciou um processo de desintrusão, nome que se dá a retirada de alguém que se apossou ilegalmente de uma propriedade.

Foi a senha para Manoel ceder aos apelos de seus filhos já adultos e ingressar na Justiça com uma longa ação de usucapião da área. O imbróglio passa então ao Judiciário, mas será através da música e da comida que a família Pinto vai conseguir fama e prestígio para montar sua fortaleza.

É aí que dois dos filhos de Manoel e Eva tornam-se os novos protagonistas desta trama. Maria Laudelina Freitas é o nome de batismo da falecida Tia Neném. O apelido virou lenda no número 250 da Ladeira Sacopã. Um imenso retrato dela serviu de moldura para a cerimônia desta semana.

Quilombolas dançam à frente do retrato de Tia Neném, falecida em 2006.

Tia Neném desde criança queria ser cantora. A beleza de sua voz é lembrada com a mesma nostalgia da sua capacidade de luta. Ao contrário da amiga Elza Soares, Tia Neném não seguiu carreira profissionalmente. Dona Eva, sua mãe, não gostava da ideia. Neném virou, então, cabeleireira e ainda ajudava Dona Eva na cozinha da pensão, que seguia fundamental para o balanço da família, produzindo quentinhas para alimentar os operários de uma segunda leva de urbanização no bairro. Porém, mesmo se dividindo entre as panelas e as tesouras, Neném nunca se afastou do microfone, do samba, do pagode e, consequentemente, das feijoadas.

Já era década de 80 quando Tia Neném, com apoio de seu irmão mais festeiro, o também músico Luiz, escreveu o capítulo que pode ser considerado o mais importante para a resistência da família no local até hoje. Neném e Luiz lançaram o espaço “Só na lenha Pagode”. O Samba da Sacopã virou febre entre artistas e descolados da zona sul do Rio de Janeiro. Em seu auge, entre 1983 e 1986, chegavam a ser comercializados por noite, 100 caixas de cerveja e 1.200 caldinhos de feijão, numa festa que ia até às 5h da manhã do dia seguinte. Naquela época, o Pagode recebia até 350 pessoas, o que requeria quase 32 pessoas trabalhando, contando a família e os músicos. As informações são de outro estudo importante desta história, uma dissertação de pós-graduação da advogada Patrícia Mendonça de Castro Maia.

Quase trinta anos depois José Cláudio, filho de Tia Neném, ex-jogador de futebol do São Cristóvão, tem certeza que o decreto do INCRA tem, em seu DNA, o som do pandeiro e a beleza das artes.

— A arte sempre foi um momento mágico para a nossa sobrevivência aqui. Minha mãe deixou a bagagem da arte. A arte é atípica. E o nosso resultado de hoje é da arte, é atípico. Se fosse pelo poderio econômico, a gente não conseguiria. Se não fosse a abertura da arte, a possibilidade de receber as pessoas, a gente não chegaria até aqui. O encontro deixou isso aqui mais forte. Depois vieram os intelectuais, professores da UFF, da UFRJ e da PUC. (José Cláudio Freitas, filho da Tia Neném)

NEM TUDO É FESTA NO PAGODE DO QUILOMBO

Se a confusão do repique e do tantã — aromatizada pela linguicinha e pelo paio — criava amizades dentro da propriedade, fora dela, o clima com a vizinhança só piorava. O desassossego criou fortes inimizades na ladeira. É o que revela outro símbolo importante da família Sacopã, Bráulio Nazaré, ex-remador da seleção brasileira, morador do local há 58 anos, do tempo em que “nem havia o Túnel Rebouças e que a Lagoa chegava até a Fonte da saudade”.Bráulio é considerado da família Pinto, mas é descendente natural de uma família ainda mais antiga na região. Nesta terça, Bráulio, que só consegue andar com auxílio de muletas, não cabia de felicidade em seu corpo forte de ex-atleta. Me aproximei dele após ouvi-lo gritar: “A família Sacopã é foda!!”

— Peço desculpas por essa primeira impressão. Mas minha família está aqui há 105 anos. Tentaram tirar a gente daqui inúmeras vezes.

— Quem tentou?

— Tem um condomínio aqui em cima chamado Chácara. Tem um outro prédio chamado 110 — esse grande aqui, que é feito dentro do nosso território. Tem um prédio chamado 250 e tem um senhor ali que é desembargador que é o calo do nosso pé. Ele é um racista e é doido para tirar a gente daqui.

Bráulio se referia ao desembargador Antonio Eduardo Duarte. Foi com surpresa que Antonio Eduardo atendeu a minha ligação telefônica nesta quarta-feira. Perguntei se ele sabia do que havia se passado na tarde anterior ao lado de seu apartamento, uma ruidosa festa de celebração de todo o movimento negro fluminense.

— Não… Passei o dia hospitalizado, cheguei agora há pouco. Diarréia…

— Queria saber sua posição sobre o decreto do INCRA.

— Não posso. Me retirei do caso porque meu condomínio é parte.

— E como vizinho? Gostaria de falar o que pensa?

— Não, não gostaria.

O tom lacônico do desembargador ao telefone até poderia ser decorrência do problema estomacal, mas, certamente, indicava muito mais. Indicava a perda — pelo menos momentânea — de uma antiga queda de braço entre o desembargador e os quilombolas.

Durante os anos 90 e a primeira década deste século, a brisa gostosa sob a sombra da Mata Atlântica preservada deu lugar ao medo sempre iminente da expulsão. O problema com a vizinhança — que reclamava do barulho e da atividade comercial na área — tornou-se também uma disputa com a Prefeitura. Tudo porque, influenciado pelas diretriz da ECO 92, o prefeito Marcelo Allencar criou, naquele mesmo ano, uma Área de Proteção Ambiental no Morro da Saudade. Agora a propriedade da família Pinto sera parte do Parque Municipal José Guilherme Merchior — até hoje, o parque é desconhecido dos cariocas, com pouca ou nenhuma iniciativa de visitação turística.

Arte sobre foto contida na dissertação da advogada Patrícia Mendonça de Castro Maia.
Arte sobre foto contida nadissertação da advogada Patrícia Mendonça de Castro Maia.

Agora dentro de um parque, a utilização da propriedade se restringia cada vez mais. Um mandado judicial de 1996 determinou a remoção das ferramentas da oficina de automóveis que funcionava então no local, dos
instrumentos musicais e da cozinha industrial. Até mesmo os portões do espaço foram lacrados. Alegando que as casas dos Pinto eram construções irregulares em uma área de proteção ambiental, um decreto municipal decidia pela demolição das casas.

Recorrendo sempre a instâncias superiores, a família Pinto brigou no Tribunal de Justiça do Rio e até mesmo no Supremo Tribunal Federal. Nesta jornada inglória, tinham sempre embaixo do braço o artigo 68 da Constituição de 1988. Agora, o texto serve como boas-vindas à propriedade.

Em 2002, a família Pinto venceu disputa por usucapião da propriedade. Em 2003, no entanto, o TJ/RJ reverteu a decisão. Ainda neste mesmo ano, o perde-e-ganha teve um novo capítulo fundamental. Logo em seu primeiro ano como presidente, Lula regulamentou, através do decreto 4887, o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.

Um dos passos essenciais deste procedimento era a certidão de autorreconhecimento quilombola. No começo do novo século, a família Pinto tinha orgulho (e também interesse) na afirmação de sua história, inclusive daquelas partes onde seus antepassados eram cativos, mas nem sempre foi esse sentimento que vigorou por ali. De acordo com o que Luiz — agora conhecido como Luiz Sacopã — disse para a antopóloga O’Dwyer, seus pais, Manoel e Eva, não gostavam nem mesmo de tocar no assuntoescravidão. Nascido na propriedade, Luiz descobria o passado de seus avós apenas através de conversas roubadas por detrás da porta. Talvez por isso, não se saiba ao certo quem foi o último escravo da família Pinto. Manoel, pelo menos formalmente, não foi, afinal, nascera em 1900. Provavelmente, os pais de Manoel e Eva nasceram sob a égide da Lei do Ventre Livre.

Em 2005, a família recebeu da Fundação Cultural Palmares o título de comunidade quilombola. Ainda falta, porém, a titulação definitiva da terra. O tão sonhado documento só poderia chegar após a publicação de uma outra portaria do INCRA, que assegurava como propriedade da Família Pinto uma área de 6,4 mil metros quadrados.

Foi esse documento do INCRA que o servidor Richard Torsiano trouxe debaixo de sua axila esquerda nesta terça-feira.

Richard, diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do INCRA, usou seu sotaque de Penápolis, no interior de São Paulo, para explicar por que estava com os olhos tão brilhantes naquela ensolarada tarde.

— Não há como não se emocionar com essa celebração que se faz hoje. Todo o cidadão brasileiro — estando ou não no serviço público — que conheça minimamente sua história tem que reconhecer o valor do seu povo. O povo negro, para mim, é quem deveria ter sido mais valorizado por sua história, porque foi nas costas do povo negro que esse país se desenvolveu. (Richard Torsiano, diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do INCRA)

Ele não perdeu o tom histórico da sua fala nem mesmo ao explicar toda a dificuldade que ainda a família Pinto deve enfrentar para receber a propriedade definitiva da terra.

— Nós precisamos avançar para a regularização fundiária efetiva, através de uma articulação com a Prefeitura e com a Câmara de Vereadores, porque aqui ainda é um parque. Neste parque, nós vamos ter que operar um processo de desafetação para titulação definitiva da comunidade. (Richard Torsiano, diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do INCRA)

Trocando em miúdos: a família ainda não tem a propriedade do terreno, mas agora tem um sentimento assossegado de que não será retirada dali. Um reversão da situação, num país como o Brasil, nunca pode ser descartada, mas é profundamente improvável.

A festa para celebrar o momento não foi modesta, mais de 300 pessoas apareceram, embora sem presença da imprensa comercial. Todo o Movimento Negro foi chamado. Representantes de mais de 20 comunidades quilombolas do interior do Estado participaram. Era uma tarde histórica para aquelas pessoas. Nas palavras de Bráulio, “o dia mais feliz” da vida dele. Na cerimônia de entrega do documento, as falas eram interrompidas com ruidosos aplausos ou ainda com saudações de origem africana. O dono da festa, Luiz Sacopã, se manteve saudável e emocionou a todos com o seu discurso.

É um prazer enorme recebê-los aqui neste momento em que o impossível acontece. Eu me lembro que, há aproximadamente dois anos, nós estávamos sendo aqui acorrentados por uma iniciativa judicial. Ficamos dentro do nosso quilombo durante dez dias, cerceados de nosso direito de ir e vir. Jamais poderia passar pela cabeça de todo esse povo quilombola que hoje nós estaríamos aqui para celebrar esse grande feito que, simplesmente, significa uma vitória do fraco contra o forte. Mesmo com a força da especulação imobiliária, com seu poderio econômico, com seu tráfico de influências e maracutaias junto à ala podre do Judiciário, eles perderam.

— Hoje, meu povo, emocionadamente, eu posso dizer: aqui eu nasci, aqui eu criei e aqui eu morrerei! Obrigado!

(Luiz Sacopã, líder do Quilombo Sacopã)

Richard, do INCRA, encerrou os discursos, antes de entregar a Luiz Sacopã a cópia da página 73 da terceira seção do Diário Oficial da União do dia anterior. Grafado com caneta marca-texto estava um parágrafo, que "reconhece e declara como terras da Comunidade Remanescente de Quilombolas do Sacopã (família Pinto) a área de 0,6404 hectare, situada no município do Rio de Janeiro.”

Já era perto das 14h30. Não havia mais como segurar, o povo negro e os não-negros que também lutam pelo povo negro queriam comemorar. Impedidos pela justiça de promover pagode sob aquelas telhas de amianto desde 2011, a Comunidade Sacopã matava a saudade do jongo, das danças africanas e, especialmente, do pagode e da feijoada.

A feijoda do Sacopã é cozinhada no forno à lenha.
Os Filhos de Gandhi celebraram com os quilombolas.
Emocionado, LUIZ SACOPÃ cantou sambas e pagodes clássicos e também apresentou os sambas escritos por ele para o seu bloco de carnaval.
MAYUMI SONE é presidente do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio e foi celebrada como peça fundamental da luta dos povos quilombolas no Rio de Janeiro.
IVONETE SILVA DE MENDONÇA, presidente do Conselho de Entidades Negras do Interior do Estado do Rio de Janeiro, destacou a luta dos não-negros na causa negra.
LUIZ SACOPÃ recebeu das mãos do diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do INCRA, RICHARD TORSIANO, a cópia do Diário Oficial da União de 22/09/201
A risonha Dona Uia, quilombola de Búzios.

— Para mim, hoje é um dia feliz. Saber que é mais um passo que estamos dando. Estamos sendo mais reconhecidos e estamos perto da titulação. Eu sou de Búzios e vim de Búzios para ajudar. Para a gente, é uma alegria muito grande, hahahaha!

— Qual o seu nome?

— Me chamam de Uia, mas meu nome mesmo é muito feio: A-ri-val-di-na! Mas como? Eu não sei o porquê! Então já cresci com o nome de Uia! Hahahaha!

A feijoada estava deliciosa, mesmo que não tenha caído muito bem na barriga do repórter.
— Vem, vem para a foto! Só as princesas quilombolas!
“Neste momento, não tenho nem explicação para poder expressar o que estamos sentindo. Eu acho que a gente só vai mesmo se situar amanhã ou depois, quando olhar pro Cristo e pensar: “nós estamos aqui, estávamos e vamos estar”.
(JORGE ANTÔNIO MONTEIRO, morador da localidade há 60 anos, um dos responsáveis pelo feijão)

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