“É a mão do capitão do mato que está atrás de cada homem fardado”

Vinicius Souza
JORNALISTAS LIVRES
Published in
4 min readMay 19, 2015

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por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá www.mediaquatro.com especial para os Jornalistas Livres

Ato ecumênico na Praça da Sé lembra os mortos pelas polícias, quase todos pretos, que se somam a cada dia desde a abolição inconclusa

Adolescentes espancados até a morte em instituições “socioeducativas”, bebês assassinados nos ventres das mães porque “filho de bandido, bandido é”, jovens “suicidados” dentro de presídios com inúmeros ossos quebrados, outros abatidos pelas costas por uma polícia chamada de “pacificadora”, negros executados nas ruas de bairros nobres por ter a “cor padrão”, corpos desaparecidos e enterrados em valas comuns exatamente como acontecia nos tempos da ditadura.

Menina vê as imagens dos mortos enquanto escuta Deize de Carvalho contar como o filho Andreu, menor de idade, foi torturado e morto no Degase do Rio de Janeiro

A fileira de horrores segue, segue e segue. A cada nova história, mais uma tragédia. E a cada dia, uma, duas, três, dezenas de novas histórias. É na luta para acabar com esse genocídio cotidiano que o movimento Mães de Maio, formado inicialmente por parentes dos 493 mortos oficialmente pela “reação da polícia” aos ataques do Primeiro Comando da Capital em 2006, organizou na última sexta-feira, 15 de maio, um grande evento em frente à Catedral da Sé, em São Paulo, com apoio de entidades como Anistia Internacional e Justiça Global.

Foram mais de quatro horas de relatos dolorosos de gente vinda de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de Santos e outras cidades para denunciar o descaso da justiça com as vítimas do Estado.

Uma violência e uma impunidade que geram revolta, morte e mais violência.

Centenas de casos arquivados há mais de oito anos sem qualquer solução, sem uma resposta, sem investigação.

Integrantes da Pavilhão9 também estiveram presentes

E casos de apenas algumas semanas, como a chacina de oito membros da torcida organizada Pavilhão Nove, todos apresentados na mídia imediatamente como envolvidos com o tráfico de drogas. Os supostos assassinos: dois PMs da ativa e um ex-PM. Quase todos pretos, como na música de Caetano e Gil que diz que o Haiti é aqui. Assassinatos que levaram mães pobres e periféricas a se tornarem investigadoras criminais, a coletarem provas, a peitarem juízes, promotores e delegados na busca por justiça. E que também já causaram a morte de tantas outras, como quase todas as Mães de Acari e duas fundadoras das Mães de Maio, sem ver os assassinos de seus filhos atrás das grades.

Faixa lembra as duas Mães de Maio mortas antes de verem os algozes de seus filhos na cadeia
O rapper Emicida deu seu recado sem cantar

Um ato que reuniu também artistas importantes, como o rapper Emicida, que se recusou a cantar. Ele preferiu falar sobre a cumplicidade da mídia e a cegueira das elites, que juntam dezenas de milhares de pessoas na Paulista com camisetas amarelas de uma das entidades mais corruptas do mundo, mas fecham os olhos (num apoio implícito) à matança de pretos, pobres e periféricos. Mas poesias e canções feitas especialmente para as Mães de Maio foram entoadas por pessoas como a cantora Yzalú, que acompanha esses dramas de perto há anos.

A fundadora e coordenadora das Mães de Maio, Débora Maria Silva, declamou o monólogo do curta Apelo (veja o filme completo em aqui), feito em parceira com Clara Ianni para a 31ª Bienal de São Paulo, ano passado. O bloco afro Ilú Obá de Min também tocou seus tambores e afoxés para denunciar em alto e bom som, em cortejo pelas ruas do centro da cidade passando em frente à Secretaria de Segurança Pública do estado, que “a polícia mata preto/pobre todo dia” e que “não acabou, tem que acabar, quero o fim da polícia militar”.

O bloco afro Ilú Obá de Min tocou e dançou toda a negritude da abolição inconclusa na frente da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo

Para fechar o ato, de volta às escadarias da Catedral da Sé, os manifestantes repetiram uma prática que se tornou tradicional nos eventos que lembram os mortos da ditadura militar no Brasil. Eles gritaram os nomes de dezenas de vítimas, mortas pelas balas da polícia ou pela impunidade dos agentes do Estado, seguidos da palavra presente.

Rogério, presente, Ana Paula, presente, Jonathan, presente, Bianca, presente, Thiago, presente, Andreu, presente, Leonardo, presente, Paulo Alexandre, presente, André Luiz, presente, Michel, presente, Igor, presente, Ricardo, presente, Marcos, presente, dona Dalva, presente, Rita de Cássia, presente, Dulcineia, presente, Edvaldo, presente, DJ Lah, presente, MC Careca, presente, MC Dentinho, presente, Mães de Acari, presente, Pavilhão Nove, presente, Carandiru…

PRESENTE! Nossos mortos têm voz, a voz dos que ficaram.

Mas até quando teremos de seguir clamando por justiça numa sociedade que pede abertamente, ou apenas aceita calada e amedrontada, cada vez mais prisões, violência, tortura e morte, desde que sejam “bandidos”, ou seja: pretos, pobres e periféricos?

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