Fuzarca Feminista — Marcha Mundial das Mulheres participaram do 20 de agosto de 2015 — Fotos: Juvenal Pereira

A eleição perpétua

Farofafá
JORNALISTAS LIVRES

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Por Pedro Alexandre Sanches, do Farofafá, especial para JornalistasLivres

20 de agosto de 2015. O mar de gente vermelha partiu do largo da Batata, subiu as colinas que culminam na avenida Paulista e fez pensar pela enésima vez no clichê do clichê: o Brasil está dividido.

O chavão costumava ressurgir das catacumbas a cada novo ano eleitoral: o país está dividido. Agora a eleição parece ter te tornado perpétua, moto-perpétua, uma condenação coletiva: as bandeiras não se guardam mais, o Brasil está dividido 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano. Não há mais trégua.

Ao menos um subclichê foi aposentado (até quando?): já não se diz tanto que quem dividiu e divide o país é o PT, o governo, a Dilma Rousseff, o Luiz Inácio Lula da Silva, a esquerda, o cão chupando manga. Não está colando mais.

Nem o Partido da Imprensa Golpista (PIG-USA), que mente o tempo inteiro, consegue sustentar a potoca integral, quando está mais que evidente que a perenização da eleição é obra de perdedores furiosos, enlouquecidos, infantilizados na incapacidade de reconhecer o próprio insucesso. O bate-panela contra a presidenta mulher é imagem suficiente: “Eu perdi, mas não quero saber nem estou escutando nada do que você quer me dizer, sua bruxa vencedora!”.

Em 20 de agosto, já até perdemos as contas, Dilma venceu o sexto, sétimo ou oitavo turno da eleição perpétua. Tudo que os maus perdedores se esforçam por negar 100% do tempo se confirmou na marcha dos pobres (eu quero dizer pretos, pardas, índios, ciganas, sem-teto, macumbeiras, motoboys, desgarradas etc., tudo que se descole do pálido núcleo WASP abraZileirado pelo PIG-USA) dessa noite de quinta-feira fria e chuvosa de um agosto muito quente.

Para este observador-participante, a sensação-clichê de Brasil dividido se agudiza (como sempre) nas franjas da passeata, no canteiro de transição entre os caminhantes pobres (pretas, pardos, índias, ciganos, sem-teto, macumbeiros, ciclogirls, desgarrados etc.) e a pista não-interditada da avenida Rebouças. Nessa outra, carros ricos encalacrados num trânsito de noite de passeata fazem, via de regra, estrondoso silêncio. Na hora do lusco-fusco, do reencontro cara a cara, o ódio não transparece, as panelas não batem, as buzinas não tocam. No trânsito engarrafado, o brasileiro de boca espumante quase ressuscita (outro clichezão) sua tão incensada cordialidade atlântica.

Qualquer explicação é mera especulação, até porque uma maioria de vidros foscos não permite ver olhares e expressões faciais. Mas as perguntas são várias. Não demonstram ódio agora porque lá no fundo também são pró-Dilma, pró-democracia, pró-legalidade? Porque estão indecisos? Porque se amedrontam diante do nosso número afinal corpulento? Porque o ódio é menor que o medo pânico de nossa negritude — a negritude que, nas mentes doentes das classes ~altas~, traduz fantasias de assalto a mão armada, sequestro-relâmpago, estupro, esculacho?

“Os coxinhas são sem noção”, afirma Kleber dos Santos Santana, que apoiou a manifestação em apoio a Dilma Rousseff

“Ê ê ô periferia chegou”, limita-se a decretrar a negritude, a parditude, a brasilitude.

Choque de realidades à parte, a marcha segue e se agiganta, exibindo grau baixíssimo, posso dizer inexistente, de agressividade, hostilidade, violência ou pancadaria verbal. Evidentemente não tenho olhos para a passeata inteira, mas o máximo de beligerância e violência gráfica que vejo nos cartazes são vários “fora Eduardo Cunha” (PMDB), alguns “fora Renan Calheiros” (PMDB), um “José Serra, o pré-sal é nosso” (PSDB), um “Geraldo Alckmim fora da lei” (PSDB) para protestar contra a sanha sanguinária da Polícia Militar alckmista — não tenho todos os olhos, mas não vejo nenhuma menção, nenhuma, nenhuma àquele outro, o perdedor mineiro-carioca que não consegue assimilar psiquicamente a própria derrota (PSDB).

Dá-se uma festa democrática na subida da Batata ao espigão central. Mas, no geral, o humor não é de felicidade ou alegria, nem do lado direito nem do lado esquerdo da avenida Rebouças. Nem na margem rica nem na franja pobre. Nem entre paneleiros nem entre legalistas. Nem nos golpistas loucos em surto contra a própria derrota nem nos antigolpistas cansados e derrotistas (ainda que recorrentemente vitoriosos).

A realidade, ouso palpitar, é que estamos todos cansados, cansados, cansados demais. Exaustos, exauridos. A eleição perpétua talvez seja um passo indelével da evolução do rito democrático (será?), mas a sensação de hospício a céu aberto nos desgasta, desestabiliza e fustiga a todos, gregos de Alexis Tsipras e troianos de Angela Merkel.

Os maus perdedores operam pela divisão total do país (e desistem finalmente de acusar os petistas de fazê-lo), o PSOL e o PCO comparecem timidamente à passeata vermelha, marineiros em rede permanecem plantados em cima de um murão peemedebista online — mas somos todos, todas, todos e todas responsáveis pelo sanatório geral que instalamos na aceitação passiva da eleição eterna.

Somos tod@s responsáveis por nossos movimentos e paralisias. Neste parto interminável desde que Dilma venceu a eleição em segundo turno, blogueir@s e jornalistas progressistas quase sempre embarcamos acriticamente em toda e qualquer notícia golpista que o PIG disparasse, por mais sórdida e estapafúrdia que fosse (apenas dois exemplos grotescos: ventilação de rumores sobre uma iminente posse do sinistro vice-presidente da República, o peemedebista Michel Temer; repercussão ensandecida da garatuja conceitual criminosa da “intervenção militar constitucional”).

O Brasil segue e seguirá dividido, chutando para fora do armário uma ~cordialidade~ que nunca existiu, simplesmente porque nunca estivemos desdividididos nem deixamos de odiar uns aos outros.

Os odiadores da democracia, façam-no por convicção ou ignorância, não mudarão de ideia de uma hora para outra, no condão da fadinha (até porque ela não é nem quer ser uma fada). Não é a eles que pertence este texto, nem a linda e pacata passeata de 20 de agosto de 2015.

Mesmo daqui do lado dos que prezamos a robustez democrática, temos jogado gasolina aditivada na fogueira da insensatez que dizemos não ser nossa, para depois catarmos entre as cinzas os escombros de nós mesmos.

Que tipo de bebê poderá nascer desse parto inflamado, depois de 10, 11 ou 12 meses de gravidez? As marchas vermelhas pela volta da sanidade geral pode mover humores de um país dividido (até quando?), ou a eleição eterna seguirá célere no louco pique de prisão perpétua para todos?

Originally published at farofafa.cartacapital.com.br on August 21, 2015.

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