As meninas do Piauí:
a tragédia de um jornalismo justiceiro
por Maria Carolina Trevisan*, especial para a Revista Brasileiros e para os Jornalistas Livres
Uma cobertura sensacionalista para casos que envolvem adolescentes como agentes de violência funciona a favor da audiência sem limites e contra a compreensão dos fatos que levaram ao evento
A violência sofrida pelas meninas de Castelo do Piauí, a 199 quilômetros de Teresina, é uma atrocidade — e deve ser punida. Dar tratamento jornalístico para uma história como essa é delicado, especialmente porque as quatro vítimas e os quatro agentes das agressões são adolescentes (e um homem de 40 anos foi preso).
Entra, nesse momento, uma particularidade que precisa ser considerada: a Constituição Brasileira prevê que os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm prioridade absoluta. Esse direito tem que ser respeitado por todas as instâncias, incluindo os meios de comunicação. Nesse sentido, o jornalismo é instituição central das democracias e tem responsabilidade sobre a promoção, proteção e garantia dos direitos humanos.
“Art. 227 — É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Bandeirão confeccionado pela casadalapa para a Rede de Intervenção Contra a Redução da Maioridade Penal e Jornalistas Livres e aberto no congresso da UNE.
Uma cobertura sensacionalista para casos que envolvem adolescentes como agentes de violência funciona a favor da audiência sem limites, trabalha contra a compreensão da situação e, portanto, não colabora para a busca de soluções ou para a implementação adequada de políticas públicas. As matérias que exploram esses casos de forma irresponsável se aproveitam da comoção social, servem ao medo e aos interesses de quem se ancora em promessas mágicas para o fim da violência, que é uma teia complexa composta por diversos elementos.
A veiculação de informações sem contexto e, que não proponham uma reflexão, é potente motor para justiceiros e linchamento, ou seja, para a produção de mais violência. São notícias que reforçam a sensação de medo e o estereótipo de que os jovens com menos de 18 anos são os principais responsáveis pelo estado da segurança pública no país, o que está bastante distante da dimensão real. Não se pode ignorar que eles são as principais vítimas de homicídios no país (mais de 70% do total) e que das 56 mil vítimas fatais, 77% são jovens negros. É um dado fundamental para a compreensão de todo o quadro.
Com a movimentação na Câmara dos Deputados para votar com pressa a PEC171, que reduz a maioridade penal para 16 anos, é ainda mais imprescindível que o jornalismo assuma sua responsabilidade como peça-chave nos mecanismos que levam as sociedades a patamares mais consistentes de desenvolvimento humano e social. Por exemplo, é muito relevante informar que dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida, de acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Significa que a imensa maioria dos meninos e das meninas que cometeram atos infracionais praticou tráfico ou crimes contra o patrimônio. Não usaram violência e já cumprem pena pela infração. Outro índice importante para considerar é que o sistema penal de adultos não recupera. Tem taxa de reincidência de 47%, segundo a Pnad. Expõe pessoas a situações tão degradantes que saem de lá sem nenhuma perspectiva. A Fundação Casa registra taxa de reincidência de 15%.
O principal de tudo isso é que a violência não vai diminuir reduzindo a maioridade penal — ou aplicando pena de morte e “justiça com as próprias mãos”. As respostas para enfrentar um problema tão complexo passam mais por garantir direitos e menos por políticas de encarceramento em massa.
Direitos
Outro ponto importante para abordar em reportagens que tratam desse tema é que existe um grande Sistema de Garantia de Direitos. Se houve um caso gravíssimo como no Piauí, é porque esse sistema falhou. Faz parte do papel do jornalista investigar em que ponto o Estado deixou de proteger, promover e garantir os direitos desses adolescentes, tanto das vítimas e quanto dos agressores. O jornalismo existe para fiscalizar políticas públicas em todos os níveis.
De acordo com uma pesquisa feita pela ANDI — Comunicação e Direitos, as reportagens que tratam de adolescentes em conflito têm uma evidente tendência ideológica: centram-se em crimes graves, como se todos os jovens envolvidos em atos infracionais cometessem homicídios e estupros; focam na punição e não na falta de direitos, no abandono do Estado; colocam a pretensa impunidade como discussão principal, como se não tivéssemos uma legislação específica (ECA) para punir esses casos; ignoram o contexto de produção do fenômeno, como se fossem irrelevantes as condições de vida dessas pessoas; tratam apenas do ato em si e não dos desdobramentos do caso, reforçando a sensação de impunidade; limitam-se à questionar a legislação vigente; tendem à nítida defesa da redução da maioridade penal como solução para a violência.
A cobertura mais completa do caso de Castelo do Piauí foi feita pelo jornalista Orlando Berti, em um jornal local chamado O Olho. Berti é professor da Universidade Estadual do Piauí, mestre e doutor em comunicação social e vice-presidente da Rede Brasileira de Mídia Cidadã. É um repórter com olhar social. Por isso, conseguiu fazer uma série de reportagens sem cair no sensacionalismo.
Ao ler os textos de Berti, é possível entender que Castelo do Piauí é uma cidade com rara presença de políticas públicas. Não tem delegado, há poucos policiais, existe apenas uma escola de Ensino Médio na área urbana e nenhuma na zona rural**. Além da história de vida das vítimas, o jornalista procurou compreender de onde vinham os agressores e descobriu características muito similares ao perfil do adolescente internado na Fundação Casa. De maneira geral, adolescentes que praticam crimes contra a vida:
- são pessoas em total abandono pelo Estado e pela família;
- são dependentes de drogas;
- não estão na escola;
- têm baixa escolaridade;
- suas famílias (nos casos em que têm) vivem em situação de miséria;
- sofreram abusos e violências;
- foram testemunhas de crimes hediondos;
- praticaram trabalho infantil.
“Os cuidados tomados na série de reportagens foram, principalmente, em não afrontar as famílias”, conta Berti. “O clima de vingança na cidade é latente. Falar do assunto é tabu. Mas queria mostrar o outro lado, mostrar o lado de que é também vítima, tão quanto às quatro meninas, e ainda mostrar que é uma tragédia que ocorreu há anos e que vai voltar a ocorrer, pois há políticas públicas quase zero. A cidade é a tal capital da Cachaça, não tem delegado, são poucos policiais, muita evasão escolar, muitos e muitos problemas sociais. Quisemos incomodar e, que bom, incomodamos.”
São contextos em que a própria vida vale nada. E muitas vezes, a Fundação Casa acaba sendo a única chance de sobrevivência, gostemos ou não. É essa a realidade da segurança pública no Brasil voltada aos adolescentes.
A esse quadro somam-se a dificuldade de investigação e de Justiça, que muitas vezes buscam encontrar rapidamente um culpado e acabam por produzir injustiças — baseadas no preconceito e no racismo institucional dessas entidades. Essa caçada, quando unida ao jornalismo, culpa inocentes, que ficam estigmatizados para sempre, como no caso do menino acusado de assassinar o ciclista na Lagoa, exaustivamente abordado pela mídia.
Sendo assim, a luta por diminuir a violência passa por garantir direitos e não por encarcerar por longos períodos adolescentes que nunca tiveram oportunidade de valorizar a própria vida.
Não se trata de não punir. Trata-se de uma maneira de punir que leve a alguma chance de futuro e de paz. E de tentar prevenir para não ter que remediar.
O que previne a violência é uma mudança de mentalidade que crie condições para o mais amplo e possível exercício de direitos.
Maria Carolina Trevisan é jornalista, repórter do coletivo Jornalistas Livres, coordenadora de projetos da ANDI, pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre o Crime e a Pena da DireitoGV e Jornalista Amiga da Criança.
**Fonte: Ministério da Educação/2010
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