Garantir ao genocídio da população periférica a mesma visibilidade e providências de assassinatos em áreas nobres

Vinicius Souza
JORNALISTAS LIVRES
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7 min readJun 2, 2015

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Diante de parentes de jovens mortos pela polícia, Haddad se compromete a criar um canal direto entre a periferia e a Secretaria de Direitos Humanos de São Paulo para ajudar a pressionar as autoridades estaduais e a Justiça em casos de violência policial

Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá, da -www.mediaquatro.com- especial para os Jornalistas Livres

No livro Diante da Dor dos Outros, que analisa a história das imagens de morte e sofrimento ao longo dos tempos, a ensaísta Susan Sontag decreta uma das grandes verdades dessa sociedade altamente midiatizada em que vivemos: “A atenção pública é guiada pelas atenções da mídia — ou seja, de forma mais categórica, pelas imagens. Quando há fotos, uma guerra se torna ‘real’. […] Esses exemplos ilustram a influência determinante das fotos para definir a que catástrofes e crises nós prestamos atenção, com o que nos importamos e, por fim, que juízos estão associados a esses conflitos”. Quem vive ou atua nas periferias das grandes cidades ou em outros locais com populações vulneráveis, sente isso na pele todos os dias. Quem passa em frente às bancas de jornal ou assiste aos noticiários televisivos, também deveria saber. Infelizmente, em geral não percebe isso na correria do dia a dia e acaba chocado com o assassinato de um ciclista na Lagoa da Rodrigues de Freitas mas não com o genocídio cotidiano daqueles que não têm voz, nome e muito menos foto nos jornais.

Secretário de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Suplicy, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, frente aos familiares de vítimas da violência policial

“A atenção pública é guiada pelas atenções da mídia — ou seja, de forma mais categórica, pelas imagens”

No último sábado, 30 de maio, dezenas de familiares e amigos de jovens mortos pela polícia, além de ativistas pelos direitos humanos, líderes comunitários, torcidas organizadas e uns poucos jornalistas, participaram de uma audiência pública convocada pelo movimento Mães de Maio e pelo Comitê Sociedade Civil Juventude e Resistência, dentro das atividades da Comissão da Verdade da Democracia “Mães de Maio”, instituída no começo do ano. Pela primeira vez, contaram com a participação das maiores autoridades do executivo municipal de São Paulo (o prefeito Fernando Haddad, o Secretário de Direitos Humanos e Cidadania Eduardo Suplicy e o Secretário-adjunto Rogério Sottili) para ouvir os relatos e demandas de quem sofre todos os dias “a dor da gente que não sai nos jornais”. E o lugar não podia ser mais emblemático: o Cemitério do São Luiz, no extremo sul da cidade, onde são enterrados muitos dos jovens vitimados por essa guerra de extermínio da população preta, pobre e periférica.

A coordenadora do movimento Mães de Maio, Débora Maria Silva, entrega ao prefeito a carta-compromisso com o fim do genocídio dos jovens negros e periféricos

Diferente das autoridades do executivo estadual, que simplesmente ignoraram a convocação do Conselho Nacional do Ministério Público para uma audiência pública na sede do MP há um mês, prefeito e secretários foram ao cemitério e ouviram as histórias e reivindicações antes de falarem. Em seus discursos, como políticos calejados que são, falaram mais de suas próprias realizações e projetos. O prefeito ainda enfrentou acusações de estar reproduzindo na Guarda Civil Metropolitana a mesma estratégia da Polícia Militar de repressão sobre grupos como os sem teto do centro da cidade e os dependentes químicos da Crackolândia. Se defendeu afirmando que tirou R$ 70 milhões da Operação Delegada (contratação de PMs para “fiscalização” do comércio ambulante) repassando para a GCM a segurança de escolas e postos de saúde e que as barracas armadas na região da Estação da Luz eram de traficantes, “usadas para crackear as pedras” e não de usuários.

“Nas duas primeiras semanas de março desse ano houve cerca de 25 mortes entre Jardim São Luiz, Jardim Ângela, Capão Redondo e Campo Limpo, sendo quase todas de jovens negros ou pardos”

Por fim, as autoridades assinaram uma carta-compromisso no qual o Comitê Sociedade Civil Juventude e Resistência explica que as melhorias para da cidade na atual administração, como troca de lâmpadas nos postes, acesso gratuito à internet em praças públicas e editais de cultura, “não param a bala em direção ao jovem negro e pobre nas periferias”. Segundo o documento, “entre os dez bairros que mais tiveram homicídios na cidade, sete estão na zona sul, com 263 mortes no ano de 2014. No ano de 2014, foram 963 mortes pela ação das polícias civil e militar no Estado de São Paulo. Nas duas primeiras semanas de março desse ano houve cerca de 25 mortes entre Jardim São Luiz, Jardim Ângela, Capão Redondo e Campo Limpo, sendo quase todas de jovens negros ou pardos”. Fazem parte dos compromissos assumidos: subsídio do Estado a organizações e coletivos que trabalham contra o genocídio da juventude; garantia de acesso aos equipamentos jurídicos; varas criminais descentralizadas; assistência financeira e atendimento psicossocial para as famílias vítimas da violência do Estado.

Membros da torcida organizada do Corinthians, a Pavilhão Nove, levaram uma grande bandeira com os rostos dos oito torcedores mortos por policiais há dois meses

A grande novidade, no entanto, extrapolou as exigências da carta, a maioria fora da competência da prefeitura já que a PM é de competência do governo estadual. Além de pedir a imediata abertura de um canal com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania para relatar novos casos de vítimas na periferia, o prefeito assumiu pessoalmente que se empenhará em dar visibilidade aos crimes. “Aconteceu uma tragédia, se a gente tomar as providências na hora em que aconteceu, nós temos a chance de punir os responsáveis e inibir que a prática se perpetue. Porque é assim que acontece na Vila Mariana, quando acontece a morte de um jovem lá. Vai todo mundo pra cima pra apurar a responsabilidade. Resultado: tem uma morte por ano, quando tem. Tem bairro que não tem nenhuma. Por quê? Porque todo mundo cai em cima pra saber o que aconteceu. Daí o Estado lá responde. Por quê? Por causa da visibilidade, porque vai pra Rede Globo, porque vai pros jornais de grande circulação. Aqui é estatística. É “x” a mais. Vai só contabilizando. No final do ano você vê se aumentou ou diminuiu, mas ninguém tem nome, tem sobrenome, ninguém tem casa, ninguém tem mãe… É assim que funciona aqui”, explicou o prefeito.

“Quando acontece lá, e eu digo por mim, porque eu moro lá, eu fico sabendo: foi o fulano da casa tal, filho de tal fulano. Funciona assim. Só que como a reação é imediata, a cada ano essa indignação produz resultado positivo. Porque ninguém admite mais. Eu acho que a gente tem de usar esse padrão para a periferia. Se a gente atuar na hora e no dia. Quando aconteceu o último genocídio num final de semana que mataram 12, eu falei: Suplicy, vai pra lá, porque você vai estar dando um recado claro de que nós vamos acompanhar a situação. Nós temos de criar um conselho de direitos humanos em cada localidade com participação do poder público e da comunidade, porque quando acontecer a gente pactua que vai estar todo mundo junto na hora, na hora que acontecer. E eu garanto que se o Suplicy vier, se o Rogério vier, se eu vier, quando acontece, a gente chama os holofotes pra cá e cobra satisfação, cobra providência, cobra apuração e cobra responsabilização”, completou.

“Nós temos de mobilizar essa energia, e a minha e a do Rogério, pra abrir as portas dos gabinetes e estruturar uma rede de proteção para que as coisas tenham consequência”

Segundo Haddad, com a abertura de um canal direto com a SDHC, denúncias de crimes, especialmente as chacinas ou envolvendo policiais, terão maior repercussão midiática e, consequentemente, menor chance de impunidade. “O Suplicy é um senador de 24 anos, de três mandatos, é o secretário de direitos humanos mais conhecido do Brasil, tem porta aberta em qualquer gabinete da República, tem autoridade para pedir audiência com quem quer que seja”, afirmou. “Nós temos que usar esse patrimônio, porque o mandato dele é popular, ele foi eleito três vezes senador, então vem de vocês a força que ele tem. Nós temos de mobilizar essa energia, e a minha e a do Rogério, pra abrir as portas dos gabinetes e estruturar uma rede de proteção para que as coisas tenham consequência”.

Débora deu seu recado bem na orelha do Haddad. E a comunidade vai cobrar os compromissos assumidos

Resta saber se essa promessa vai se concretizar mesmo e quando. Do contrário, a situação pode ficar como a dos moradores da Favela do Moinho, esperando há mais de ano pelas benfeitorias que não chegaram a tempo de enfrentar novos incêndios, como o que ocorreu semana passada. Ou dos movimentos de moradia do centro, lutando constantemente para manterem as ocupações nos prédios abandonados que apesar das promessas de campanha do então candidato seguem não sendo desapropriados para a reforma urbana. Ou a construção de creches que não acompanham a velocidade dos discursos. Ou o fim da Operação Delegada, que continua fazendo vítimas, inclusive fatais como o caso do ambulante morto com um tiro na cabeça pelo PM contratado pela prefeitura. E tantas outras coisas.

A primeira prova do compromisso já tem data marcada: 14 de junho. É quando deve acontecer a próxima reunião/audiência pública da Comissão da Verdade Mães de Maio, no Grajaú, também extremo sul da cidade e palco da mais recente chacina na região. O secretario Suplicy já esteve lá. Vamos ver se as portas realmente serão abertas e as consequências para os assassinos dos jovens negros e periféricos começarão a aparecer de fato. O prognóstico não é dos melhores. Na última quarta-feira, 27 de maio, quando o menino Lucas Custódio, negro de 16 anos, foi morto no Grajaú por um policial envolvido em outras quatro “mortes decorrentes de ação policial”, a coordenadora das Mães de Maio, Débora Silva, ligou para a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania pedindo apoio. A ligação aparentemente “caiu” e até agora não há uma resposta oficial da prefeitura ou da secretaria.

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