Stephen Cohen: Relação entre EUA e Rússia atravessa o pior momento desde a Crise dos Mísseis

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Entrevista ao DemocracyNow — Tradução por Ricardo Gozzi, para os Jornalistas Livres

O secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, viajou a Moscou para se reunir com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e seu chanceler, Serguei Lavrov. O encontro ocorre em um momento de aumento da tensão entre Washington e Moscou. Na semana passada, o presidente dos EUA, Donald Trump, disse durante uma entrevista coletiva que as relações bilaterais com a Rússia haviam chegado a seu pior momento na história. Trump fez os comentários um dia depois de a Casa Branca ter acusado o Kremlin de tentar acobertar o suposto envolvimento do governo sírio no ataque com armas químicas que recentemente provocou a morte de 87 pessoas. A Rússia rechaça a acusação estadunidense a afirma que Washington se precipitou ao acusar o presidente da Síria, Bashar Assad, pelo ataque.

No Conselho de Segurança da ONU, a Rússia barrou uma resolução para denunciar o ataque químico e pedir a cooperação do governo sírio com uma investigação internacional. Ao mesmo tempo, Moscou acusou Washington de violar leis internacionais ao bombardear uma base aérea síria. Enquanto isso, Trump parece ter mudado de opinião a respeito da Otan, qualificada por ele durante a campanha à presidência como “obsoleta” e “custosa”. Sobre este assunto, Amy Goodman e Nermeen Shaikh conversaram com Stephen Cohen, professor emérito de política e estudos russos nas universidades de Nova Iorque e Princeton, e Jonathan Steele, ex-correspondente do Guardian em Moscou, chefe de reportagem do Middle East Eye e autor de “Eternal Russia: Yeltsin, Gorbachev, and the Mirage of Democracy”.

AMY GOODMAN: Como você interpretou a reunião entre os chanceleres Lavrov e Tillerson com a presença do presidente Putin?

STEPHEN COHEN: A liderança russa conhece o senhor Tillerson muito bem. Durante seis ou sete anos, lidaram diretamente com ele, inclusive Putin, na discussão de um dos maiores contratos de energia já assinados pela Rússia com uma gigante do Ocidente, no caso a ExxonMobil. Não haveria aquele acordo, de muitos bilhões de dólares se eles não achassem que o senhor Tillerson fosse um homem sério, competente e honrado. Agora, nós podemos ter nossas próprias opiniões sobre a influência das empresas globais de petróleo em questões internacionais, mas trata-se de uma relação bilateral muito importante. Portanto, quando Tillerson foi a Moscou em sua nova condição, eles sabiam estar tratando com alguém de imensa experiência, pois a ExxonMobil tem o seu próprio Departamento de Estado, seus próprios serviços de informação e um homem que eles acreditam que seria franco com eles. E eles tinham perguntas para o senhor Tillerson. Escutamos apenas ecos delas nas declarações públicas. Uma delas foi:

O que está acontecendo em Washington?

Que conversa é essa de que Putin é um fantoche?

Vocês estão realmente partindo dessa suposição?

A segunda, e é muito importante:

Quem é o responsável em Washington pela política em relação a Moscou?

Lembre-se que quando o presidente Barack Obama fechou um acordo com Putin no ano passado para uma cooperação militar na Síria, o Departamento de Defesa dos EUA sabotou o acordo bombardeando um acampamento militar sírio. E Putin questionou publicamente: “quem é o responsável pela política em Washington?” Então eu penso que estas são duas perguntas fundamentais que precisamos fazer. E a terceira pergunta, creio eu que feita por Putin a Tillerson, foi: “nós tínhamos entendido que vocês haviam aceitado a nossa posição, que mantínhamos havia anos e que o presidente Obama rejeitava, de que a escolha é ter ou o presidente Assad ou o Estado Islâmico em Damasco. Vocês disseram aceitar nossa posição. Mas depois desse ataque químico, vocês aparentemente recuaram. Nós precisamos saber agora qual é a posição de vocês, pois vamos basear nossos cálculos militares em relação à Síria no que você nos disser hoje. Encerro esta resopsta dizendo que Tillerson e o presidente Trump disseram uma coisa de extrema importância que acabou relegada a segundo plano: as relações entre EUA e Rússia talvez estejam em seu pior momento na história. Isto é importante demais. Atrai nossa atenção ao essencial. E Tillerson declarou: “não existe confiança mútua”. E isto não é aceitável quando o assunto é o relacionamento entre duas superpotências nucleares. E a mídia tradicional, que ouve o que bem entende e tem sua própria narrativa, deixou de lado uma informação muito importante. É uma notícia muito ruim, mas é uma notícia que precisa ser divulgada.

NERMEEN SHAIKH: Mas quando você diz que a Rússia quer saber quem é o responsável por formular a política em Washington, de quem você suspeita, já que não é Trump nem Tillerson? Quem poderia ser o responsável por formular a política estadunidense?

STEPHEN COHEN: De quem você suspeita?

NERMEEN SHAIKH: Diga-nos você.

STEPHEN COHEN: Bem, nós — quero esclarecer que não sou um teórico da conspiração, mas dispomos de alguns dados. Eu não votei no presidente Trump, mas pessoalmente sou favorável a sua promessa de campanha de que o desenvolvimento da cooperação com a Rússia seria, como ele chegou a dizer, ótimo. E se vocês me derem um minuto, deixem-me explicar por que acho isso ótimo. Eu penso — e o faço há 40 anos, desde que estudo as relações russo-americanas há 40 anos, tanto como professor quanto participando ocasionalmente –

que atravessamos o pior momento das relações entre Washington e Moscou

desde pelo menos a Crise dos Mísseis, em Cuba.

E indiscutivelmente o momento atual é mais perigoso, por ser mais complexo. Ao mesmo tempo, vemos em Washington o que considero acusações não fundamentadas de que Trump estaria de alguma maneira comprometido com o Kremlin. Desta forma, neste péssimo momento das relações russo-americanas, temos um presidente preso ao pior cenário imaginável. Não há precedentes. Vamos parar e pensar. Nunca antes um presidente dos Estados Unidos foi acusado essencialmente de traição. E é disso que falamos aqui, que ele ou pessoas a ele ligadas cometeram traição. Imagine, por exemplo, John Kennedy no meio da Crise dos Mísseis. E o público que tiver uma certa idade vai ser lembrar de que o governo Kennedy mostrou fotos tiradas por sistemas de vigilância. As evidências foram mostradas para nós. Não havia dúvidas de que os soviéticos estavam construindo silos de mísseis em Cuba. Hoje não nos é apresentada nenhuma evidência de nada. Imagine se Kennedy tivesse sido acusado de ser um agente do Kremlin soviético. Ele ficaria de mãos amarradas. E a única maneira que ele teria de provar o contrário seria iniciando uma guerra com a União Soviética. E naquela época, a opção era de uma guerra nuclear. Então a pergunta que surge naturalmente é: por que Trump lançou 50 mísseis Tomahawk em uma base aérea síria onde, Deus nos ajude com isso, algumas pessoas foram mortas, mas de valor estratégico mínimo? Estaria ele tentando mostrar que não é um “agente do Kremlin”? Pois numa situação normal, qualquer outro presidente teria feito o seguinte: iria às Nações Unidas pressionar por uma investigação para determinar o autor do ataque com armas químicas. E só depois dessa investigação seria decidido o que fazer. Mas fazer isso enquanto se está jantando com o líder chinês, que saiu profundamente humilhado, pois é um aliado da Rússia…

AMY GOODMAN: Comendo uma torta de chocolate, como o próprio Trump relatou.

NERMEEN SHAIKH: E primeiro ele se confundiu dizendo que atacou o Iraque, e não a Síria.

STEPHEN COHEN: Pois é, eu não pretendo sair criticando Trump se ele fizer alguma coisa certa. Temos de nos ater ao que temos. Por isso nos perguntamos: por que Trump fez isso? Teria ele recebido informações erradas ou duvidosas? Temos um longo histórico disso nos Estados Unidos. E é por isso que os russos quiseram perguntar a Tillerson quem é o responsável por essa política, pois essa narrativa não é verdadeira. E permitam-me acrescentar algo mais. É muito importante, depois eu paro. O número 2 no Kremlin hoje é o primeiro-ministro Dmitri Medvedev. Ele é considerado o integrante mais pró-Ocidente dentro do governo russo. E foi em cima dele que o presidente Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton basearam toda sua reformulação de política. E se conseguíssemos — ele era o presidente na época — simplesmente mantê-lo no poder? Eis que depois de tudo isso vem o primeiro-ministro Medvedev, alguém de quem todo mundo gosta, e diz: “Estamos à beira de uma guerra. As relações russo-americanas estão totalmente arruinadas”.

Portanto, se a facção pró-Ocidente do Kremlin diz isso,

será que eu preciso dizer o que os tais patriotas estão dizendo a Putin neste momento?

É por isso que a palavra de Tillerson era tão importante.

NERMEEN SHAIKH: O filho adulto de Donald Trump, Eric, mencionou as tensões entre EUA e Rússia como evidência de que pessoas ligadas a Trump não conspiraram com Moscou para tentar influenciar as eleições presidenciais de 2016. “Se teve uma coisa que a Síria conseguiu foi validar o fato de que não há conexão russa”, disse Eric Trump numa entrevista ao jornal inglês The Telegraph.

AMY GOODMAN: Estamos também com Jonathan Steele, ex-correspondente do Guardian em Moscou, chefe de reportagem do Middle East Eye e autor de “Eternal Russia: Yeltsin, Gorbachev, and the Mirage of Democracy”. Jonathan, o significado da declaração do filho de Trump, a mesma coisa para a qual o professor Cohen estava apontando, é uma amostra do que acontece hoje em Washington? Donald Trump está tentando provar de uma vez por todas que não tem ligação com a Rússia?

JONATHAN STEELE: Acredito que se alguém se beneficou desse terrível incidente com gás em Khan Sheikhoun, certamente não foi Assad, e muito menos o governo russo. Os beneficiários foram as pessoas que estão se defendendo da alegação de que Trump de alguma maneira seria um fantoche de Moscou;

foi o complexo industrial-militar de Washington;

foi o que Eisenhower chamou de “deep state”,

o Estado por trás do Estado,

aquela aliança entre os militares, os fabricantes de armas e os serviços de espionagem,

verdadeiramente temorosos de que Trump de alguma forma saia de controle e realmente abra a possibilidade de boas relações com a Rússia e querendo que ele retome a tradicional rota de confrontação com a Rússia; além, claro, da oposição armada a Assad, que de repente obteve uma sobrevida, pois estava prestes a perder seu último território importante, nos arredores de Idlib, no noroeste da Síria. Eles já conseguiram um ataque aéreo e certamente estão esperando por mais, talvez serem defendidos pela Otan. E com certeza eles não vão ceder em Genebra. Então todos que se beneficiaram não estão nem ao lado da Síria nem ao lado da Rússia.

NERMEEN SHAIKH: Mas há quem alegue que Assad beneficiou-se ao advertir os rebeldes a pararem de combater o governo.

JONATHAN STEELE: Mas não com o uso de armas químicas. Por isso considero tão improvável que os sírios tenham recorrido a armas químicas. […] Como disse Lavrov em sua entrevista coletiva conjunta com Tillerson, o governo sírio convidou a Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq) a investigar, e ofereceu acesso à base bombardeada pelos Estados Unidos, mas exigiu, com toda a legitimidade, que os rebeldes deem acesso ao lugar onde o gás sarin foi liberado, para determinar se isso aconteceu por causa de um ataque aéreo ou se alguém em terra agiu sorrateiramente com o objetivo de desacreditar a Síria.

NERMEEN SHAIKH: Pergunto a Stephen Cohen o seguinte: se de fato tanto a Rússia quanto a Síria dizem nada ter a ver com este ataque de armas químicas, quem eles acham que é o responsável?

STEPHEN COHEN: Voltemos ao início. Foi isso que eles perguntaram a Tillerson. Eles apresentaram as informações de que dispunham. Putin então disse — talvez ele não devesse, mas todo mundo diz que ele é dissimulado quando na verdade ele é muito sincero e diz o que pensa: “às vezes eu troco os dias por causa do fuso-horário de Moscou. Foi uma provocação”. Ele usou a palavra russa, dá no mesmo, provokatsiya. Ele disse que alguém está tentando provocar uma guerra entre os Estados Unidos e a Rússia. Ele não disse quem. Mas Jonathan nos deu uma sugestão de que forças poderosas em Washington não gostaram da política de detente declarada por Trump, como costumávamos chamar, cooperação, e têm feito tudo o que podem para destruir essa possibilidade. Mas vamos falar como adultos. Muita gente já veio aqui manifestar profundas suspeitas em relação aos serviços secretos estadunidenses, mas de repente todo o Partido Democrata agora parece acreditar que, abre aspas, “relatórios de inteligência” são tão inquestionáveis que pessoas como eu, que simplesmente os questionam, devem ser consideradas defensoras de Putin. O que sabemos é que, já faz algum tempo, informações têm sido vazadas para o Washington Post, o New York Times, a CNN e todo o resto de maneira altamente prejudicial não só para Trump como presidente, mas para a política de Trump para a Rússia. Então eu não acho que o que Jonathan Steele diz deveria ser excluído como possibilidade, de que forças poderosas estão ali para garantir que não haverá melhoras nas relações com a Rússia. Agora deixe-me apenas mencionar uma coisa que talvez vocês não tenhamr notado: a única conquista do presidente Obama, a meu ver, além de um acordo com o Irã de congelar um possível programa nuclear bélico, foi o acordo feito com Putin em 2013 para destruir as armas químicas de Assad. Acho que todos vocês se lembram. E quando olhamos para trás, esse foi o grande feito do presidente Obama, porque a alternativa era ir à guerra. E isso só foi possível porque ele e Putin trabalharam em conjunto. Então isso serve de modelo para que o que poderia ser possível nas relações russo-americanas. E o que nós temos agora? Temos uma nova narrativa na mídia estadunidense de que Putin mentiu, de que Obama foi enganado, quando disseram que aquelas armas tinham sido destruídas. Mas isso é uma deturpação. Obama e Putin entregaram a questão das armas às Nações Unidas. A ONU dispõe de uma unidade especial de coleta e destruição de armas de destruição em massa. A ONU fez isso com as armas de Assad. E foram as Nações Unidas, e não Putin, que certificaram que as armas tinham sido destruídas.

Portanto, se alguém mentiu

– e acho que ninguém o fez –

ao dizer que Assad não tinha mais armas químicas, foi a ONU.

Não foi Putin.

Então, o mínimo que podemos fazer, se estamos à beira de uma guerra, como o número 2 da política russa diz, é dispor de informações corretas.

AMY GOODMAN: Por fim, qual a probabilidade neste momento de uma confrontação direta entre os Estados Unidos e a Rússia?

STEPHEN COHEN: Se eu soubesse a resposta, eu iria ao Jóquei e resgataria grande parte do dinheiro que perdi ao longo dos anos. Mas eu diria perto demais, possível demais. As outras novas frentes da Guerra Fria estão todas esquentando. Isto é, na região do Báltico, os pequenos Estados bálticos e a Polônia, onde a OTAN está se reforçando muito além do razoável; na Ucrânia, onde o governo apoiado pelos EUA em Kiev está se desfazendo; na Síria, é claro. Há muitas tropas por lá. Não sabemos quantas. Eles as chamam de tropas de operações especiais. Mas provavelmente há mais do que nos contaram haver. Os aviões estadunidenses estão voando por lá. A batalha por Raqqa, que simbólica ou real, é a capital do Estado Islâmico na Síria, está se aproximando. Os dois lados querem vencê-la: a coalizão estadunidense e a coalizão russo-sírio-iraniana. Numa situação ideal, elas cooperariam entre si e tomariam a cidade juntas. Mas ao competirem pela captura da cidade, haverá aeronaves estadunidenses e russas voando muito perto entre si. Em relação à falta de disposição da Rússia para abandonar Assad, creio haver uma questão mais profunda. A Rússia não está interessada na pessoa de Assad, e diz isso com frequência. Uma hora Assad irá cair, mas a Rússia prefere deixar essa decisão nas mãos do povo sírio. Na avaliação da Rússia, Assad representa o Estado sírio. Há Estados extremamente personificados em algumas regiões mundo, e é disso que se trata. Se Assad for morto ou preso, o Estado sírio se desfaz, assim como aconteceu no Iraque, assim como aconteceu na Líbia, onde simplesmente assassinamos os líderes daqueles países. Se o Estado sírio se desfizer, o Exército sírio se desfaz — e são os soldados sírios os responsáveis pela maior parte do combate em terra contra o Estado Islâmico. Muitos soldados sírios desertariam.

Então o que eu pergunto a todos os estadunidenses que vilanizam Assad é:

se o Estado sírio for destruído, quem vai combater os terroristas na Síria?

Vocês vão pedir à Rússia que envie tropas? Nós vamos enviar nossas tropas?. Então, para a Rússia, a questão é essa. Não se trata de Assad. Eles iriam no máximo chiar se algo acontecesse a ele ou à família. O que importa é o que vai ser do Estado sírio. E é por isso que a Rússia vai ficar ao lado de Assad até que haja alguma espécie de vitória militar. Depois vem o que chamamos de processo de paz, e então Assad estará por conta própria.

Nota

1 Entrevista publicada originalmente por DemocracyNow em https://www.democracynow.org/2017/4/13/stephen_cohen_this_is_most_dangerous

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Originally published at jornalistaslivres.org on April 21, 2017.

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