Brasil tem seu primeiro caso de antidoping acadêmico: entenda

Mateus Ribeirete
JornalRelevo
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4 min readOct 9, 2017

Essa é apenas uma das consequências pouco ortodoxas da nova Confederação Brasileira de Medicina. Presidente da instituição é um ex-jogador de futebol doidaço

RIO DE JANEIRO — O que Elza Tedesco esperava era uma mudança severa no rumo da medicina. O que ela ouviu foi “Na–na–ni–na–não!”. Seu projeto, adaptação da tese de doutorado defendida em 2013, prevê uma renovação logística que permitiria expandir a vacinação nacional a zonas de risco e famílias na margem da miséria. A anulação de seus planos não era esperada pelo mais pessimista dos cardiologistas. Elza, 34, havia consumido um medicamento à base de cortisona para evitar a possibilidade de um choque anafilático. Picada por uma abelha no dia do VI Congresso de Medicina do Rio de Janeiro, ela não quis correr riscos. Sem saber que a cortisona havia sido banida pelo novo regulamento, a pesquisadora teve seu trabalho anulado após uma coleta de urina realizada nas dependências da UFRJ confirmar resultado positivo no exame antidoping. Com toda a pesquisa engavetada e sua eventual execução proibida pelos próximos três anos, Elza Tedesco se transformou no primeiro caso de antidoping acadêmico na história do Brasil. “Eu ainda não consigo acreditar. Não sei nem por onde começar”, ela afirmou, aos prantos. Outros 14 médicos tiveram seus trabalhos suspensos por uso de cocaína.

Desde sua fundação há cerca de um mês, a Confederação Brasileira de Medicina mais tem atrapalhado do que colaborado. Os problemas surgem de cima para baixo, afinal, como diabos um ex-jogador de futebol foi parar na presidência da instituição segue como uma pergunta sem resposta — ao menos uma resposta digna. “Cara, pra ser sincero eu nem lembro”, contou Carlos Alberto, o Pepeco, que brilhou no ludopédio carioca dos anos 90, quando defendeu as camisas de Vasco, Flamengo e Botafogo. “Tava num desses churrascos universitários. Era uma chácara bem distante e um médico doidaço de loló me ofereceu o cargo. Eu tava bem cozido também, aí achei uma boa”.

Sem grandes ideias para contribuir com o órgão, Pepeco apelou para sua área de atuação. Após convocar uma mesa redonda com um massagista, dois roupeiros e três grupos de pagode, a nova ordem chegou à medicina brasileira. Agora todo hospital público e privado em solo nacional conta com o acompanhamento de árbitros que podem expulsar profissionais, além de anular cirurgias sob a justificativa de impedimento. Naturalmente, as medidas têm sido interpretadas como caóticas, e a cadeira de Pepeco é contestada diariamente. O fato de a presidência ser classificada como cargo vitalício não tem animado especialistas, tampouco o rombo nos orçamentos: para manter o padrão logístico atribuído por Pepeco, a CBM já acumula cerca de R$ 450 milhões em dívidas. Não há qualquer previsão de retorno senão pelo perdão fiscal.

Elza Tedesco pode ter sido a primeira, mas muitos casos semelhantes estão previstos. Alfredo Empáfia, responsável pelo RH do órgão, é um dos poucos defensores do novo procedimento. “Vocês não têm ideia do quão divertido é documentar essas coisas… Ontem mesmo, uma pesquisa de tratamento ao câncer de útero foi descartada porque o acadêmico vinha usando uma substância de crescimento capilar. Não só estou vendo a história ser escrita, como a estou catalogando”, ele declarou, claramente emocionado. Situação e oposição têm tratado o caso como emergencial, e o porta-voz do governo chegou a descrever a CBM como “epítome de um país totalmente perdido entre o estado e o privado”. O próprio governo decidiu apoiar uma eventual CPI, já levantada por boa parte dos deputados federais. Encurralado, Pepeco se defende: “nós vamos trabalhar forte, e se Deus quiser sair com um resultado melhor no mês que vem”.

Bolas dentro

Por sua vez, a implantação de um árbitro auxiliar atrás da mesa de atendimento de cada médico tem sido elogiada. Cabe ao oficial determinar se o paciente está simulando lesão, podendo comunicar ao árbitro principal, o qual deve puni-lo com repreensão ou suspensão. Remover a camiseta sem pedido do doutor também garante cartão amarelo ao infrator. Ainda assim, muitas situações pitorescas têm surgido. “Semana passada, fui punido por não usar caneleiras”, afirmou um neurocirurgião que preferiu se manter anônimo. Duas operações de alto risco foram adiadas naquela tarde, fato responsável por uma morte (e meia, dependendo do seu ponto de vista sobre eutanásia).

Animados com os momentos de sucesso, reitores de universidades espalhadas pelo país se interessaram em aplicar a ideia, visando a uma redução do número de centros acadêmicos, tidos como verdadeiras colmeias de THC. Posteriormente, recuaram ao concluir que o antidoping acadêmico extinguiria a grande maioria dos cursos de Ciências Humanas. Em outra reviravolta, sentenciaram que a mudança derrubaria dois coelhos com uma só cajadada, e desde então têm discutido o projeto mais a fundo. A questão ainda não foi proposta oficialmente, mas tramita em debates entre reitorias de alto escalão.

Quanto aos exemplos de êxito, no entanto, ainda há grande resistência. “Até um relógio quebrado acerta a hora duas vezes por dia”, afirmou Nestor Vital, ex-presidente do Conselho Federal de Medicina e proprietário de um relógio Gucci, desolado com a situação. “É impossível determinar como uma catástrofe desse tamanho pode ocorrer em um país tão rico”. Perguntado sobre esperança, ele foi enfático: “só queria trocar algumas palavras com o Pepeco. Acho que ele me entenderia, porque nós podemos chegar num meio-termo”. Infelizmente, por excesso dos calmantes a que vem recorrendo, Vital não tem acesso às reuniões da CBM. Aguardamos o segundo tempo desse embate.

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Mateus Ribeirete
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edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.