Graxa na Borracha

Marceli Mengarda
JornalRelevo
Published in
9 min readNov 10, 2017

A criação do carimbo e o surgimento da burocracia como a conhecemos hoje

Nenhum desses senhores é o protagonista de nossa história

Na ampla sala de visitas art deco do apartamento no centro antigo da pacata e histórica Ravensburg, ao sul da velha Germânia, o senhor elegante e simpático que nos recebe com pedacinhos de bratwurst e pequenos biscoitos de maisena (em alemão: Maisenen) conserva algo de sua famosa linhagem. Cruzando furtivamente o olhar azul esverdeado deste bem-vestido alemão, é tarefa difícil manter-se na missão que nos coloca às imediações do Bodensee: o Jornalismo Investigativo, mais uma vez, está prestes a colocar óleo de baleia no lampião da verdade para derramar luz sobre as relações escusas que levaram à criação do carimbo de borracha e, com ele, da burocracia como a conhecemos atualmente. Herr Mitarbeiter Büros, nosso anfitrião, não deixa de demonstrar que esse assunto ainda provoca muito incômodo e está a utilizar-se de todos os possíveis subterfúgios para resguardar a delicada história de sua família de mais uma onda revisionista. Ha-ha. Como se algo do tipo fosse possível.

A história começa antes mesmo de a história começar. Sobre as pedras úmidas das saunas e dos banhos do antigo Império Romano, pisavam pés descalços de poderosos e de pederastas (também poderosos pederastas). O pão e o circo eram garantidos por um sistema de governo que gabava-se de ser realmente um pouco difícil de entender, envolvendo um sem-número de processos e funcionários na tarefa de desenhar mapas e preencher boletos para o pagamento de impostos em mais da metade do mundo conhecido. No entanto, pouco se reconhece a influência decisiva dos sucessivos Völkerwanderungs em que bárbaros germânicos empurravam eslavos ladeira abaixo até chegarem à festa latina. Nessa época, em lugar de invasão bárbara, talvez deva-se falar em infiltração bárbara, tamanha era a discrição e a classe dos visitantes ao adentrar os limites do Império Romano. O plano, então, era claro – demonstração cabal da expertise que leva essa nação tão metódica e organizada a vencer todos os desafios mesmo enquanto dança e cantarola “Tieta” em praias do litoral sul baiano sob densa camada de protetor solar –, claro e muito simples: em uma demonstração intensiva das técnicas de irritação de uma criança de seis anos, os germânicos passavam horas a fazer os soldados romanos repetirem informações básicas, no atualmente conhecido processo de pagar de bobo (em alemão: Dummkopfzahlen). Nesse pastiche da idade antiga estão as sementes da burocracia moderna e, em tal circo, o mais conhecido jóker era o patriarca da família, Narr Büros. Nosso anfitrião pinça mais um pedacinho de linguiça enquanto mostra (sem o uso de luvas) os antigos vasos romanos em que se veem imagens claras do cobrador de impostos tendo dificuldades em preencher os boletos de um certo ‘cidadão’ romano, uma dificuldade que, fosse a Reader’s Digest famosa naquela época, certamente figuraria na seção “Ossos do Ofício”, em texto de algum cobrador com inclinações literárias. “A enrolação, a repetição ad nauseam de informações e processos, essa vontade intrínseca de irritar e tirar o outro do sério, tudo isso foi inventado pelos bárbaros germânicos, pelo meu tataravô. Os romanos levaram muito tempo para perceber isso, mas, quando se deram conta, tomaram para si a prática e a aperfeiçoaram de uma maneira que hoje você vê a Itália e tem uma noção muito clara da dimensão desse movimento”, desabafa. Mesmo com o protagonismo sendo extirpado da família alemã tal como os pequenos gêmeos Rômulo e Remo foram cruelmente arrancados de sua mamãe (não a loba, a outra), a história da burocracia ainda seria marcada pelo clã de diversas outras formas. Para isso, no entanto, temos que acelerar a fita VHS da História em alguns anos e rumar ao período entre guerras quando, numa Europa sob escombros, milagres eram necessários.

Em um elegante schloss que ocupava mais da metade da vila de Friedrichshafen, a família Scheissen gozava de um prestígio político e poder econômico sem precedentes. Capitaneada por herr Weichen Scheissen, conhecido em todo o império austro-húngaro por ser mais liso que bagre, a família viu seus proventos aumentarem a despeito de todas as explosões na vizinhança. Isso porque pode-se afirmar do velho Scheissen que era um pouco frouxo de moral e encaixava-se na vergonhosa casta de pessoas que cobram o dobro na telha de eternit depois de uma forte chuva de granizo, por exemplo, alegando que o capitalismo é assim mesmo e que suas mães vão bem. A menina dos olhos do clã, no entanto, era a fábrica de sapatos. “Era como se o próprio Nicolau Flamel tivesse misturado borracha e algum segredo alquímico para confeccionar as solas que eles utilizavam”, Büros se surpreende ainda hoje com a renomada qualidade da borracha utilizada na confecção de coturnos, sapatos civis e, mais pros anos 1980, roupas de látex com aberturas bem localizadas da Scheissenschuhe. A história é implacável, realmente, e calhou de nessa empresa de matéria-prima de tão boa qualidade haver como funcionário da produção um certo Bildhauer Büros, o tão amado avozinho de Mitarbeiter. “A lembrança em minha mente de seu yodel matinal dirigido às montanhas austríacas, onde vivia uma sua antiga paixão de juventude, é tão vívida, é tão emocionante”, rememora um Büros de olhos azuis marejados, “eu desde então compro todos os discos de Volksmusikanten que vejo pela frente tentando encontrar aquele som, mas simplesmente não acontece. Aí eu acabo colecionando eles porque adoro as fotos da banda toda vestindo roupinhas iguais, tem umas que dá pra ver que eles tiraram no quintal da casa da Oma, acho um mimo”. Ele pergunta se gostaríamos de ver os mais de 830 vinis que guarda no keller, oferta que declinamos de maneira nervosa ainda que muito cortês, porque nossa missão aqui é clara e a durável sola de borracha dos sapatos da Scheissenschuhe ainda não nos diz muito sobre a criação da burocracia.

“Meu Opa foi um visionário”, afirma Mitarbeiter, desmanchando-se em elogios. Bildhauer Büros nasceu entre o feno e os animais da fazenda num dezembro congelante. Filho de um marceneiro com uma virgem, desde criança tinha interesse pelo ofício do pai, mas deixava muito claro que aquilo nunca passaria de um hobby: acreditava ter sido assinalado para viver coisas maiores, e preferiria viver a marcenaria posteriormente como redenção, junto à confecção artesanal de cerveja, quando largasse tudo depois de um ataque dos nervos (típica crise de burnout) ocasionado por muito trabalho, já que teria alcançado o alto escalão de uma empresa multinacional em idade significativamente jovem. Quis o destino, porém, que a marcenaria fosse justamente a chave para abrir as comportas de todas as dores e as delícias de sua vida. O jovem Bildhauer, com uma barba bem mantida e longos cabelos loiros, era sempre a sensação das festas. “Ele sempre inteirava o vinho para o pessoal, contava histórias de outros tempos, tinha realmente um grupo bem fiel de amigos-seguidores. Teve uma vez que ele surtou um pouco no centro comercial e chutou umas barracas, a galera passou alguns meses chamando ele de Steufel [um trocadilho engenhoso entre os termos Stiefel, ‘bota’, e Teufel, ‘diabo’], o Opa às vezes falava umas coisas que a gente não entendia direito, mas ele falava com amor. E de amor. Ele era uma pessoa muito do bem”, relembra Büros, antes de engolir duas bolachinhas de maisena com um golão de chopp weiss. Seu avô era o funcionário mais agitão da Scheissenschuhe, muito embora torcesse o nariz para o sindicalismo: “Ele dizia que isso aí era liderança de segundo nível, e ele nunca gostou de estar em segundo lugar pra nada”. No entanto, são somente os espíritos insurgentes como esse que promovem rupturas e inovação. Bildhauer, certo dia, entediado depois de produzir uma leva de botas que — trivia — tempos depois inspirariam uma famosa composição de Nancy Sinatra, ficou a bulir com um resto de borracha, esculpindo um desenho de pênis (em alemão: Schwanz), o qual, posteriormente, sujou com um pouco de graxa e aplicou nas costas de três ou quatro colegas. Um pequeno passo para o alemão, um enorme passo para a humanidade: surgia aí o primeiro carimbo de borracha. O surgimento de um item tão importante numa brincadeira juvenil realmente nos põe a pensar que a família Büros deveria ser iluminada por alguma força superior para dar prosseguimento à história da atual burocracia.

A arte de Bildhauer logo ficou mais conhecida e, como sói acontecer com tantos inventores de nosso tempo, ele apenas começou a levá-la a sério quando percebeu que poderia chamar a atenção das fräulein, que trocavam um beijo tímido em sua barba loura por um desenho de Edelweiss que pudessem carimbar em seu enxoval. “Foi, sem dúvida, a melhor fase da vida do Opa. Ele passou o rodo em meia Ravensburg. Tinha essa tradição, forte, na Bavária, de vestir o Dirndl amarrando o nó do avental do lado esquerdo caso a moça fosse solteira e do lado direito se fosse comprometida ou não estivesse interessada. Tipo um Tinder old school, assim. O Opa chegava direto nas mocinhas com o nó do lado direito e, enquanto jogava charme pra elas, puxava a ponta do avental para desamarrar e dar chance a elas de colocar o nó mais pro meio que fosse. Um típico Heimkaputtmacher”, conta Herr Mitarbeiter, enquanto sorri de um jeito que permite apostar que os homens dessa família sempre souberam como tratar bem uma Frau.

Seu semblante torna-se taciturno, no entanto, ao mencionar a fase que veio depois, quando seu avô tentava estabelecer um negócio para vender sua nova invenção a crafteiros, estudantes do primário e funcionários estatais. “O Herr Scheissen, voltando de uma de suas viagens para a França, ficou sabendo dos planos de meu santo avô e decidiu que com o negócio de carimbos ele ia acabar”. Não foi difícil para o ardiloso capitalista acionar uma quantidade razoável de advogados e, já que detinha todos os direitos de uso e confecção da Borracha Mágica, pois de muito precavido tinha feito todos os registros cabíveis (é por isso que este pessoal continua rico), conseguiu tomar o conceito e a execução do carimbo de borracha para o seu plantel de empresas registradas e também algumas offshores. “Na época, todo mundo sabia que a ideia inicial tinha sido do Opa. Mas o velho Scheissen fez por onde, chamou Washington Olivetto, um time fodido de publicitários, chegaram aqui falando em novo conceito e de repente tava todo mundo comprando deles”, dói-se o meu querido alemãozinho. Mas a família Büros não tem esse nome à toa e, tal qual uma fênix ou um eu-lírico em letra de rap nacional, Deus tinha fechado uma porta para Bildhauer porque estava a abrir uma janela. Uma janela no estilo de construção germânico antigo, um pouco pequena, não abria muito porque ficava difícil isolar a casa das baixas temperaturas com um vidrão enorme, mas ainda assim, uma janela. Ele, é claro, tão logo viu a brecha pulou de um só salto e caiu como um Power Ranger à frente de uma explosão.

Utilizando os mesmos subterfúgios de seus bárbaros antepassados, deu início a uma série de procedimentos que acabariam por infernizar a vida da família Scheissen de tal maneira a levá-los à loucura. “Ele pedia três vias de documentos de registro de marca que não existiam, depois dizia que um dos parágrafos estava errado e seria necessário reimprimir. Naquela época a impressão ainda era um problema sério porque o tipógrafo da cidade era muito mal-humorado e só trabalhava se levasse daquele chocolate em formato de língua de gato, em suma, o Opa sabia que não ia perder aquela batalha. E os Scheissen ficaram loucos. O plano dele tinha fases cada vez mais agressivas, da terceira fase em diante ele já estava desamarrando o nó do avental das filhas do homem, passando trote, trocando coisa de lugar dentro de casa pra todo mundo achar que tava com demência”, Mitarbeiter ri ao contar e seu sorriso é a coisa mais bonita que já vi. A história oficial, como de praxe, conta apenas a versão que foi inventada pelo Washington Olivetto, mas o merecido final feliz para Bildhauer Büros chegou depois de alguma insistência e diversos prazos que precisavam ser cumpridos. Ele tomou controle das empresas Scheissen, renomeando-as Büro Kraut GmbH (porque gostava muito de repolho). Com todo o dinheiro, parou de trabalhar e, ainda que tivesse tido planos mais high stakes de abrir sua própria marca de cerveja artesanal, tomou a decisão mais correta e comprou um chalé em St. Moritz, onde passou o restante de sua vida entre passeios de barco no lago, bobsled e festas na casa de Günther Sachs, de quem ficou muito amigo. “Eles dividiam tudo, principalmente as dicas de conquista”, conta Büros com olhos fixados nos meus. Pelo frio que sinto na barriga a cada vez que me olha assim, garanto que ele andou lendo o manual de conquista do avô.

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