Major Tom: a improvável e frutífera amizade entre Antonio Carlos Jobim e David Bowie

Mateus Ribeirete
JornalRelevo
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8 min readFeb 18, 2021

Nesta história alternativa, Tom Jobim sobrevive aos procedimentos médicos de 1994 e conhece David Bowie em 1997. O senso de humor afiado os une e tem como resultado dois discos. Ambos fazem, faziam ou teriam feito aniversário em janeiro.

Stone Lower

Não havia qualquer indício de relação, afinidade ou consonância entre Tom Jobim e David Bowie, os maiores ícones musicais de seus respectivos países no século 20.

O brasileiro, 20 anos mais velho e sinônimo da sofisticação tropical, consagrou-se como a amálgama entre clássico e o popular — distinção que não aprovava — criada na retrotopia de um Rio de Janeiro perdido. Gravado por (e com) Stan Getz e Frank Sinatra, propagou-se mundialmente ao compor algumas das canções mais famosas do planeta. Alfinetou o rock algumas vezes, embora com seriedade questionável.

O inglês respondia a um universo bem mais urbano, multimidiático e barulhento, em que o rock era a divindade; e os festivais, o ritual. Mas ele foi muito além desses dois elementos, influenciando diretamente cinema, moda e gêneros musicais diretamente oriundos de suas experimentações. Ao contrário do brasileiro, era performático e irrequieto: adorava protagonizar grandes espetáculos.

Ambos, no entanto, eternizaram-se de modo “anterior a fronteiras”, como diria Carlos Drummond. E seus caminhos se cruzaram no Rio de Janeiro, em 1997, quando passaram a elencar algumas coisas em comum. A mais urgente, artérias obstruídas: Tom já havia sido submetido a uma angioplastia; Bowie logo enfrentaria a sua. “Minha segunda angie certamente será mais tranquila que a primeira”, dizia aos risos o inglês na Churrascaria Plataforma, em referência à ex-mulher, Angie Barnett.

“Ali ele já falava inglês com sotaque carioca”, jura Sérgio Cabral.

Àquela altura — estamos em julho de 1998 –, é inegável que David Bowie e sua esposa, a modelo Iman, já tinham abraçado o Rio. O rockstar, a quem Jobim se referia publicamente apenas como “o ET”, veio ao Brasil pela segunda vez em 1997, então com 50 anos, na turnê do disco Earthlings.

Eternamente instigado, David Jones logo se interessou pelas homenagens ao aniversário de Tom, cujas marcas se espalhavam pela cidade inteira — em janeiro de 1997, Jobim havia completado sete décadas de vida. Bowie então tomou a iniciativa de ir atrás do maestro soberano.

Com medo de perder seu compositor mais consagrado, o Brasil havia começado a valorizá-lo mais do que nunca. Também pudera: depois de ver a morte de perto, Jobim permanecia em um longo repouso em sua casa no bairro do Jardim Botânico, aquela “sob o sovaco de Cristo”.

Desde a sequência de procedimentos médicos realizados para sobreviver às artérias entupidas, ao tumor na bexiga, à embolia pulmonar e à quase fatal parada cardíaca, em 1994, Antonio Carlos Jobim preferia a companhia das aves e dos sapos, seus vizinhos. “Está tão isolado da sociedade que voltou a conversar com o João Gilberto”, relatou preocupado Zuza Homem de Mello.

“Parei de beber, parei de fumar e o Fluminense caiu, vou sair de casa pra quê?”, lamuriava-se Jobim, em uma de suas cada vez mais raras entrevistas — algo inesperado para um sujeito famoso pela constante boa vontade com jornalistas que faziam as mesmas perguntas, mas esperavam diferentes respostas. Ele seguia se referindo à existência como “resto de vida” desde a morte de Vinicius de Moraes, em 1980.

Dramas publicados à parte, a verdade é que Tom aproveitava o retiro para se dedicar à pequena Maria Luiza, sua caçula, e ao já adolescente João Francisco, primogênito da segunda esposa, Ana Lontra Jobim. Conta-se que, por trás das bravatas de melancolia, Jobim permanecia o mesmo sujeito jovial, bem-humorado e curioso. Apenas menos social (e pesado, pois, em consequência dos novos hábitos alimentares e da atividade física, emagrecia gradativamente).

Nesse panorama, entra David Bowie. Antes dele, um músico japonês muito apegado ao Brasil, onde passava as férias em novembro de 1997.

Ryuichi Sakamoto já havia se consagrado com o grupo Yellow Magic Orchestra, pioneiro na música eletrônica mundial, quando conheceu David Bowie no set de Merry Christmas, Mr. Lawrence (1983), longa-metragem protagonizado por ambos. Dirigido por Nagisa Ōshima, o filme retrata as tensões de um campo japonês de prisioneiros de guerra — e dispõe de uma bela trilha sonora, assinada pelo próprio Sakamoto.

Foi ele, um erudito, vanguardista e grande fã de Tom Jobim, quem intermediou o encontro com David Bowie, com quem mantinha contato esporádico. O anfitrião não reservava grandes expectativas, mas os três e suas respectivas esposas se reuniram na casa do compositor brasileiro em 3 de novembro, um dia após o criador de Ziggy Stardust se apresentar no Citibank Hall, no Rio.

Não faltou assunto: neorrealismo italiano; expressionismo alemão; raízes de palavras; ecologia. O que os conectava era o humor mordaz. Tom Jobim sempre foi conhecido pelas observações sagazes e pela capacidade de contar histórias absurdas com enorme seriedade. Bowie, um performer nato, logo se identificou com as tiradas do brasileiro, que, fissurado por double entendres, testava trocadilhos em português, inglês, francês e, agora, japonês. Quando o europeu anunciou que amava a “Bosta Nova”, conquistou seu anfitrião em definitivo.

Mas a grande virada de chave ocorreu quando David Bowie duvidou da capacidade de Tom Jobim de se comunicar com os pássaros — e, amigavelmente, desafiou-o a fazê-lo. Os três se levantaram e foram ao jardim, onde Tom deu início a um ritual a que se habituara havia décadas: piar inhambu-anhangá, o popular chororão. O maestro chamou um macho, então uma fêmea, que passaram a interagir entre si. Regeu-os.

Aquilo, apesar de não tão raro para a geração do brasileiro, era surpreendente para um inglês tão indissociável da cultura urbana. “He’s the man who rose from Earth”, sussurrou consigo mesmo um estupefato Bowie. A consonância entre os astros — literais e simbólicos — não só mudaria para sempre o “resto de vida” de Antonio Carlos Jobim, mas também ressignificaria a trajetória do starman.

Bowie se foi para concluir a turnê no Chile e na Argentina, mas logo retornou. No final de janeiro de 1998, ele e Iman, que moravam em Nova York, já aterravam no Galeão. O que seria um mero fim de semana para celebrar o 71º aniversário de Tom se estendeu até o Carnaval. Sem queixas por parte do casal brasileiro, que fez questão de recebê-los “under Christ’s armpit”.

A partir daí, Bowie e Iman participaram mais ativamente do cotidiano boêmio do Rio de Janeiro, a ponto de, passadas algumas semanas, nada mais ser notícia para os repórteres (que, de início, acompanhavam cada passo do artista, algo similar à visita de Brigitte Bardot à cidade em 1964). Tom e Ana pouco a pouco davam as caras — porque o tiro feriu, mas não matou.

As principais reuniões começavam na Churrascaria Plataforma ou no Bar Garota de Ipanema (antigo Veloso), ainda na hora do almoço. Bowie, já de camisa clara e chapéu-panamá, referia-se a Tom como “Antonio Carlos Choupin”, em parte como provocação ao amigo, em parte para ver se alguém o corrigia.

Para surpresa de ninguém, David Bowie logo se tornou protagonista de rodas de samba, choro e jogo do bicho. Ele aprendia todos os instrumentos com assustadora facilidade — dos mais belos à cuíca. Encantado pela música brasileira, desistiu de gravar o álbum que se chamaria Hours, cujas demos se espalhariam pela internet anos depois.

Tom se tornou uma espécie de irmão mais velho de Bowie, cujo meio-irmão (também mais velho) havia tirado a própria vida em 1985. Por sua vez, Sakamoto se tornou o primo japonês que todo brasileiro acredita ter. Naturalmente, surgiam perguntas, indagações e apelos para que essa amizade se transferisse para a música.

Tão óbvio que parecia improvável, a verdade é que Bowie e Jobim estavam sim ensaiando. Sem qualquer pretensão, revezando-se entre o piano e o violão da casa do brasileiro, composições antigas e novas se misturavam em noites incrivelmente abstêmias. Até que decidiram: gravariam um disco.

Como a bola estava quicando para ser chutada, eles jamais perderiam a chance de chamar o álbum de Major Tom, o astronauta criado por Bowie na canção ‘Space Oddity’ (1969) e esporadicamente mencionado em outras músicas.

Aproveitando a falta de vergonha de reciclar a si mesmo inerente a todo grande artista (Tom vivia se referindo às suas regravações como “inéditas de sucesso”), os dois testavam: Jobim cantava Bowie, Bowie cantava Jobim, ambos cantavam juntos. Após um mês de testes, chegaram a uma lista final. Bowie e Iman voltaram a Nova York por uns meses, então o músico retornou sozinho em março de 1999, agora motivado pelo compromisso profissional de gravar.

E a gravação foi rápida. Na casa de Tom Jobim, novamente convertida em estúdio, apenas uma semana foi necessária para capturar 16 músicas, 12 das quais seriam finalizadas para o disco. Bowie retornaria a Nova York ainda em março, agora sem perspectiva de voltar ao Rio, mas manteria contato constante com Jobim.

Em julho de 1999, Major Tom já estava pronto, com produção de Ryuichi Sakamoto, arranjos de Eumir Deodato e participações de Jaques e Paula Morelenbaum, Paulo e Daniel Jobim, Paulo Braga, Tião Neto e Danilo Caymmi, todos integrantes da Banda Nova que acompanhava Tom. A crítica, sem saber o que esperar, estranhou. Isso imediatamente aliviou a dupla, cujo trabalho precisou de alguns anos para receber o devido valor.

Em Major Tom, com quatro faixas inéditas e oito regravações, destacam-se uma completamente repensada ‘A new career in a new town’, do disco Low (1977); ‘Station to station’, do disco homônimo (1976); e novas versões para ‘Estrada do sol’ e ‘Children’s games’ (‘Chovendo na roseira’). Misturam-se as vozes, os gêneros, as línguas e os instrumentos num trabalho bastante inclassificável. Transformada em choro (e traduzida, com coro e tudo), ‘Space oddity’ é uma atração à parte.

A faixa final é por si só uma obra-prima difícil de ser descrita. Improvisando ao piano, Jobim contorna diversas passagens das carreiras de ambos os artistas — inclusive mesclando ‘Pelas luz dos olhos teus’ com ‘Merry Christmas, Mr. Lawrence’, de Sakamoto. Ao fim de seis minutos de transições imprevisíveis, esporadicamente acompanhadas pela banda — “ele parecia em transe”, relata Deodato –, a voz de Bowie apresenta a inédita ‘Sunday’, que eclode num desfecho agitado, caótico.

Antonio Carlos Jobim e David Bowie continuaram muito próximos, trocando telefonemas e, agora, e-mails. Bowie cobrava insistentemente, até que finalmente conseguiu tirar Jobim do Rio em 2002. Eles se encontraram em Nova York, onde Tom ainda tinha um apartamento. O brasileiro levou a família toda, e o filho João Francisco ali iniciaria uma longínqua amizade com o hoje diretor Duncan Jones, filho de Bowie.

Conversas, piadas e lembranças vinham e voltavam, mas os dois seguiam destinados a compor juntos. Afastados de qualquer pretensão, logo se viam atraídos ao piano, de onde saíram as dez músicas inéditas de Sea (2004), segundo e último álbum de Antonio Carlos Jobim e David Bowie, produzido por Tony Visconti e, outra vez, Ryuichi Sakamoto.

Minimalista e agressivo, Sea se tornou um clássico instantâneo. Tudo no disco exala brilhantismo, trafegando de Debussy a John Coltrane com fluidez assustadora. Ambos assinaram a composição das músicas e das letras, e uma lista de músicos brasileiros, ingleses e americanos foi pinçada para participações especiais. Apenas Bowie e Jobim participam de todas as faixas.

Bowie, que já havia trafegado pelos mais diversos gêneros, abraçava o jazz experimental. Não poderia haver melhor condutor. O inglês tirou o brasileiro de sua zona de conforto; o maestro e regente exponenciou as qualidades do performer. Em 2004, na mesma cidade onde, 10 anos antes, havia permanecido morto por quatro minutos, Jobim, 77, emanava saúde e, como o Cristo Redentor, abraçava a vida a seu redor.

Entre 2005 e 2006, eles ainda manteriam uma turnê mundial contemplando os dois discos, mas Tom Jobim, já praticamente octogenário, passou a ter dificuldades de acompanhar o grupo e solicitou uma merecida aposentadoria.

Passados 17 anos, Sea não envelheceu absolutamente nada — tampouco o fará. A improvável amizade se manteve fraternal até a morte de Antonio Carlos Jobim, em 2011. Até hoje, são calorosas as referências de David Bowie, 74, ao maestro soberano, a quem credita por “ter me ensinado absolutamente tudo” — até piar inhambu, hábito que o inglês (de camisa clara e chapéu-panamá) mantém cada vez que visita o Rio.

[No Jornal RelevO de fevereiro/2021]

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