ULISSES 2051”, por Amadeu Materazzi

Mateus Ribeirete
JornalRelevo
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7 min readAug 24, 2021

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Nova obra de “Ébano América” veio para ficar… em algum lugar, certamente. Crítico Amadeu Materazzi aponta onde.

Jornal RelevO, edição de abril de 2021

Em fevereiro, tive o curioso prazer de presenciar o lançamento do livro ULISSES 2051 (Ed. Prestes, 2021), de Ébano América, 32, pseudônimo de Carlos André Materazzi — o Carlinhos –, o qual, por algum motivo pouco relevante a este escriba, optou por não utilizar seu nome de batismo. ULISSES 2051 é um romance que, dizem-me, carrega um valor inestimável para a literatura contemporânea, de acordo com meu sagaz colega Afonso Ladeira, da Junta Comercial do Estado de São Paulo, e de outros ladinos defensores da literatura como instrumento de crítica à sociedade ou a tudo o que está aí e precisa ser dito. Dessa forma, como grande amante da literatura, dos clássicos e da cultura brasileira, incubi-me da tarefa de escrever sobre esse romance. Afinal, não poderia deixar de me expressar acerca da obra, não só pelo fato de o autor ser meu filho.

Ah, vale lembrar (ou contar uma informação inédita; quem não lembra sou eu) que América/Carlinhos, embora renegue — como já renegou abandonar a mamadeira apenas no Ensino Fundamental –, não utilizou nenhum pseudônimo em seu livro de estreia. Refiro-me a Moby Jeans (Editora do autor, 2018), uma sátira do clássico de Herman Melville e do capitalismo como um todo, em que a baleia é um bancário. Este saiu com seu nome original e pode ser encontrado em alguns sebos, até com frete grátis (por exemplo, o do Jaime, o Yakissebo e o Pentimento, todos em São Paulo)…

Sabemos que é sempre uma honra ver os próprios filhos trazendo algo interessante ao planeta. Também é legal quando eles lançam livros. Ironicamente (ou talvez como uma de suas críticas performáticas, como as que fornecia ao humilde público dos supermercados quando atirava-se ao chão para conseguir bolacha Trakinas), há 12 caixas de ULISSES 2051 atrapalhando nosso fluxo na despensa. Mas não quero trazer elementos extraliterários para avaliar uma obra que tem como mote a discussão do metatexto na tradição da literatura mundial. Tampouco busco traçar qualquer hipótese a respeito de um possível baixo número de vendas. Não sei absolutamente nada sobre as vendas de ULISSES 2051 (embora possa informar, até como sinalização de honestidade ao leitor — que poderá tirar as próprias conclusões –, que Carlinhos continua morando conosco).

Por sinal, na festa de lançamento (será “festa” a melhor palavra para definir uma congregação sem música, sem álcool e sem carne?), Ébano América fez um breve discurso de 14 minutos no qual literalmente questionava o cânone, “quem faz o cânone!?”. Aproveitou o tempo, o espaço e a atenção para criticar o serviço prestado pela empresa Sapeka Distribuidora (pago, mas não por ele), que supostamente “vacilou grandão” ao não fornecer canapés veganos naquele que deveria ser o dia dele.

Mas menos sobre o homem e mais sobre a obra. ULISSES 2051 extrapola a mítica da Odisseia de Homero e do Ulisses de James Joyce, o que o autor fez questão de deixar claro no título (sempre em caixa alta). Centrado em uma tarde no Leblon, por 693 páginas, América nos arremessa nos dilemas existenciais do paulista Marquinhos, um rapaz de 23 anos perdido diante de escolhas — de novo, no Leblon — que podem mudar sua vida para sempre.

A obra de Ébano América é dividida em três: “A terra (a praia)”, “O homem (a onda)” e “A luta (o retorno para casa)”, em uma estrutura que lembra muito os resumos de Os Sertões, livro que Carlinhos com certeza não leu no Terceirão, quando não passou em qualquer instituição federal — nem mesmo quando tentou Museologia (o que teria sido formidável, pois não lembro de nosso romancista vanguardista alguma vez pisar em um museu) — e, portanto, custou algumas dezenas de milhares de reais a seus genitores, os quais trabalhavam em jornada dupla para manter três turnos de bebedeira de um único militante universitário em instituição privada.

Sobre ULISSES 2015, isto é, 2051, a narrativa ganha fôlego principalmente nos momentos em que Marquinhos, esse paulistano-fluminense, vai à praia. O que também é curioso, pois o autor não pisa fora do quarto há seis meses, tampouco para devolver os pratos que sua mãe, desnecessária e imprudentemente, insiste em lhe servir toda tarde, às 15h — quando ele acorda –, com uma gentileza tanto hercúlea como sisífica (dois adjetivos que América parece ter acabado de aprender, tamanho o êxtase em compartilhá-los conosco ao longo das quase 700 páginas).

Em um exercício de realismo e metalinguagem (sempre ela…) semelhante ao clássico A Mulher do Tenente Francês, mas com menos intensidade, carisma, empolgação, tratamento original e, sobretudo, talento, América dá voz aos personagens e é também um narrador onisciente com certo desprezo às convenções literárias, principalmente aquelas que versam sobre beleza e bom gosto.

Ainda nas escolhas estéticas, transformar o capítulo 8 inteiro em um só parágrafo de fluxo de consciência é uma grandíssima ideia, principalmente para 1951. Setenta anos depois, o impacto é bem menor (em 2051, quem sabe volta a ser bacana, ainda mais se a ideia for impressa com dinheiro próprio). Mas, vá lá, funciona — como passar de ano na oitava série após uma centena de chances nas recuperações, um conselho de classe justamente indisposto e, por fim, o mais claro suborno à diretoria. Algumas figuras simplesmente têm costas quentes (e parecem não se dar conta disso). Refiro-me, claro, ao personagem Pietro, figura de destaque no romance, suposta alegoria ao “privilégio branco” de um autor notavelmente caucasiano (consta em sua certidão de nascimento, isto é, na de Carlinhos; talvez não na de Ébano América).

Bebendo da fonte dos pós-modernos franceses dos anos 1970 e talvez expelindo alguma coisa a partir disso (no urinol de Duchamp), América se lança a discutir a ideia de autoria sem apresentar outro aspecto importante do mercado literário: quem banca a impressão? Entre os questionamentos do protagonista, sempre Marquinhos, consta uma grave denúncia de crimes ambientais e da falta de conexão da natureza por parte do Ocidente. Marquinhos não sabe que suas palavras foram impressas em uma tiragem de três mil livros (se estamos falando de 693 páginas, trata-se de 2.079.000 páginas impressas, mais as capas, plásticos e caixas — deixo ao leitor a conta em termos de quilogramas de papel, tinta ou árvores que não escolheram o próprio destino). Marquinhos também não sabe que seu criador ainda não resolveu o problema das caixas na despensa (até o fechamento deste texto).

Outro ser bonito e inanimado que não parece escolher o próprio destino é Luana, a única mulher com falas na obra. Luana é uma “mulher empoderada e muito forte” (descrição do protagonista Marquinhos, em palavras que correm para o lugar-comum mais próximo como um transeunte foge para a marquise diante das primeiras gotas de chuva), mas sua oca existência em ULISSES 2051 se vê resumida a uma espécie de babá decorativa de marmanjo, como um triângulo de sinalização na estrada a indicar que 30 metros adiante jazem os restos de um Gol capotado. Não acredito que se trate daquilo que os jovens chamam de “spoiler” a informação de que Marquinhos e Luana terminam juntos (porque ela precisa entendê-lo), mas melancólicos (porque o mundo é assim). Até porque o autor já reiterou muitas vezes, em suas redes sociais, que enredos só têm valor em Hollywood, o que aparentemente é uma crítica. Para sorte de Carlinhos, ele não corre qualquer risco de ver sua obra deturpada no cinema americano.

Creio já ter me estendido. Até porque recebi um complemento de meu influente amigo Afonso Ladeira — aquele que havia elogiado o romance de Carlinhos. Ele estava, é claro, brincando comigo. Para ser sincero, no fundo eu sabia. A verdade é que nunca deixamos de acreditar em nossos filhos, agarrando-nos a qualquer fio de esperança para converter em foguete o que nunca abandonou a condição de detrito espacial. Principalmente quando eles crescem como a Dani, nossa filha mais velha, que nunca passou vergonha nos mercados (isto é, nem no supermercado, nem no mercado de trabalho), acabou de fazer residência hospitalar, paga o próprio aluguel e realmente tem problemas além da conexão com a internet. Infelizmente, a contraparte real de Ébano América não está apta nem a ganhar dinheiro com “pack de pezinho”, o que diminuiria o fardo familiar, se não pelo orgulho, ao menos pela humilhação remunerada.

ULISSES 2051 — que, pasmem, quase se chamou Uli$$es, não tivesse o autor recebido um ultimato de seu “paiblisher” (trocadilho de que ele não riu) — tem seus momentos. Em determinada altura, entre um cigarro e outro dentro de casa, cercado de semelhantes que ouvem o protagonista e só o contrapõem para fazê-lo parecer menos estúpido (enquanto todos constatam como a dificuldade é difícil), Carlinhos, isto é, Marquinhos, verborrágico como o velho doido do ponto de ônibus (ambiente desconhecido para autor e protagonista), conclui que, sendo a existência miserável, “a reprodução é a manutenção do erro”. Não é uma conclusão nova, muito menos um formato brilhante. Mas é algo. ULISSES 2051, por fim, às vezes é… algo. Algo que, antes de mais nada, preciso remover da minha despensa, do contrário — juro que não é da boca para fora — eu mato, realmente, literalmente mato Carlos André Materazzi, então o desmembro como Saturno no quadro de Goya. Ou finalmente corto sua mesada.

[no Jornal RelevO, edição de abril de 2021]

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Mateus Ribeirete
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edito o Jornal RelevO (jornalrelevo.com) e aqui estão meus textos esparsos. a maioria é antiga e/ou foi publicada em outros veículos.