Uma loira, uma ruiva e Christopher Hitchens entram num bar

Marceli Mengarda
JornalRelevo
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5 min readApr 18, 2018

Se tem uma coisa que não entendo é mulher não saber fazer piada… Há ao menos um ano, este periódico tem se esforçado para estar, mês a mês, quebrando os tabus — além da inserção de imagens, referências e menções ao pênis onde é possível, os leitores deverão lembrar-se da edição de junho de 2015, com belíssima capa da Isabella Lanave (não podemos afirmar que a diretriz para a escolha das capas não gire um pouco em torno de “vai causar
problema com pontos de distribuição mais pudicos?”), em que havia apenas
textos e imagens produzidos por mulheres. No editorial, a mensagem foi em tom de confessionário: não havia como negar a diferença numérica em toda a tradição do jornal que dava larga vantagem à produção de homens. Mesmo sem saber se a pouca representatividade das mulheres devia-se à simplificação grosseira que há na classificação de “literatura feminina” (se você repete esse termo três vezes defronte ao cinzeiro, aparece sêmen seco na
sua roupa e você de repente passa a sofrer por um amor impossível), o RelevO comprometeu-se a prestar mais atenção e evitar colocar só a cabecinha das escritoras em suas edições. Desde então, as mulheres têm tido uma presença
mais consistente e, não raro, com produções que se destacam quando comparadas com homens que fazem isso há mais tempo e com mais espaço (Camila Von Holdefer, estou olhando para você). Nessa segunda empreitada-de-humor, no entanto, fui surpreendida com um pedido editorial bem simplório: tem alguma mulher engraçada para indicar para essa edição?

Gostaria de estar fazendo piada quando afirmo que a primeira que me veio à cabeça foi a Dona Máxima, personagem do Fausto Fanti em Sinhá Boça. Primeiro porque, sendo um vídeo, não ajudaria em nada no pedido, o que já não deixa de denotar alguma falha elementar em meus processos de raciocínio lógico (será que é porque sou mulher?); depois, porque não é uma mulher. Pensei: ah, qualquer coisa eu podia escrever um texto engraçado também, e o leitor entenderá por que, logo em seguida, recorri às ferramentas de busca da web. O que se seguiu foi mezzo deprimente, mezzo desesperador:
contra todas as apostas, pasmem, existem muitas mulheres produzindo humor no mundo: Tina Fey, Amy Poehler, Dani Calabresa, Sarah Silverman, a ferramenta de busca da web pode dar mais nomes.

O problema estaria, contudo, na escala não oficial de intensidade do humor (e, aqui, apresento uma classificação consideravelmente individual, na esperança de me livrar de quaisquer críticas nas Cartas do Leitor do mês que vem): no primeiro nível dessa escala, tem a piada que desencadeia apenas uma expressão facial confusa de franzir de sobrancelha, uma espécie de pedido de confirmação ‘é pra ser uma piada? faltou alguma parte? realmente,
falando das desventuras de se ter um uno mille, a essa altura do século?’. Logo acima, o que convencionou-se chamar “esboçada” — aquela risada de canto de boca que deixa ver as covinhas a quem as tem, e que é difícil de segurar durante a novena do terço da misericórdia (ESSA misericórdia ninguém parece ter com a gente mesmo). Mais além, uma risada gostosa, que pode ou não fazer barulho, sabia que tem gente que ri pra dentro e fica um pouco em dívida com esse nível da escala do humor porque ninguém consegue identificar direito se alguém se chacoalhando e aspirando o ar em espasmos nervosos significa que a piada foi boa? O quarto e último nível é aquele em que a risada precisa sair mesmo que você esteja bem naquele momento tomando um gole de refri, o “me guspi todo”, o nível de você-tem-que-assistir-
esse-vídeo-do-Lasier no fim da festa, o nível voadora da Dona Máxima. Aí encontra-se o humor, por vezes referencial, por vezes autodepreciativo, que nunca envelhece. E era um exemplar que atingisse esse último nível (do meu senso de humor escrotão, lembrai) que eu gostaria de indicar para essa edição. E foi difícil.

Ainda caí em alcovas da web, nas trocentas matérias citando a Tina Fey que diz não aguentar mais responder as trocentas matérias perguntando o que ela acha de ser mulher e humorista ao mesmo tempzzZZZ — com um trabalho exemplar (oi Tina gostaria de publicar algum dia em nosso jornal independente sem fins lucrativos?), ela foi a primeira head writer do Saturday Night Live, um show conhecido por ser meio ‘clube do bolinha’ (John Belushi, estou olhando para você), ainda em 1999. Agora, já de saco cheio (ops expressãoheteronormativa), ela bota o pau na mesa (ops expressão heteronormativa) para dizer que seria muito bom se, para começar, o salário das mulheres fosse equiparado ao de ao menos a expressiva porcentagem de homens sem graça da mesma indústria.

Patinei por alguns minutos no quase canônico texto de Christopher Hitchens de 2007, Why women aren’t funny, que soa muito como um tio bêbado num encontro de família dizendo que, apesar de ele ser culpado por não conseguir completar o valor do aluguel com o próprio salário, bom mesmo era quando a tia não trabalhava porque aí ela tava sempre com a casa arrumada. Apesar de não conseguir discordar com Hitchens em seus argumentos de que a maioria das mulheres ainda achar que é necessário assumir alguma das personas “eu me odeio tanto!” “puxa como é difícil ovular e menstruar todo mês!” “você acredita que precisa fazer a unha toda semana?” — ele usa hefty or dikey or jewish, termos menos legais mas como o cara é um AGENTE DO CAOS da crítica, vamos deixar quieto –, é difícil não discordar na maioria dos argumentos restantes. Ao assumir visões extremamente biologizantes do fenômeno, postula que as mulheres não precisariam ser engraçadas porque quem precisa ser engraçado para poder transar é o homem (carece de fontes). No entanto, o argumento se desenvolve para estabelecer que a mulher para de ver graça nas coisas quando dá à luz, porque a mulher depois que é mãe vira um ser muito responsável e sisudo, enquanto o homem ele não precisa ser sério nem jamais assumir responsabilidades, a vida para o homem é uma eterna adolescência!!!!! Nesse ponto é que uma das bases do humor, que seria justamente a de debochar da autoridade, acaba virando um subterfúgio que só pode ser desenvolvido por homens. Infelizmente, e peço muitas desculpas
por isso, a coisa mais engraçada que eu consegui trazer para essa edição foi
mais um cara tentando disfarçar “ser babaca” com “ser engraçado”.

Para usar de um pouco de agência do caos aqui também, é biologicamente impossível que alguém com o mesmo sistema nervoso não consiga fazer
humor referencial e, por vezes, autodepreciativo. Mulheres, estou olhando para vocês. O espaço está aqui e, por mais que um de nossos bastiões (expressão heteronormativa?) seja o de oferecer um panorama da produção
contemporânea feminina, aí incluída mesmo a que não nos fez guspir de
tanto dar risada, é inadmissível que não conheçamos essa última — você
tá aí escondida? Talvez ninguém nunca tenha visto muita graça, ou ninguém tenha te perguntado isso, ou as piadas dos seus amigos estejam ainda restritas a “daí aquela vez eu tava no motel com aquela mina” (caso em que recomenda-se reconsiderar as amizades). Pode ser que ser engraçada tenha sido desencorajador durante toda a sua vida — pois volte a fazer coisas engraçadas e treine bastante e depois envie esse material ao RelevO. Queremos um mashup da edição de julho com a de novembro.

Texto publicado na edição de novembro de 2016.

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