Poesia contra-algoritmica

joão narciso
Jota

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**Contém a análise de um poema autoral.

Duchamp não poderia ser mais preciso: “arte não é o que você vê, mas a lacuna”. A arte nunca está pronta, sempre há um preenchimento possível, necessário, sobretudo na poesia. A poesia é uma teia de imagens, ideias e significados, é o caos da existência, a atividade empirica, ordenada e guardada em segredo. O poema é como a caixa de pandora na mitologia grega; espalha caos, trás a ambiguidade; libertando todos os males, exceto a esperança. Um poema bom pode ser lido e relido, mas a esperança se mantém presa, pronta para encontrar um novo segredo, uma nova ótica.

A arte luta com o caos, mas para torná-lo sensível. — Deleuze & Guattari, O que é a Filosofia?

A arte surge da experiência humana, da relação do homem com o mundo, ela é uma forma de entender, organizar, e principalmente, validar seus sentimentos e visões, uma fuga da esquizofrenia inevitável da existência. A comunicação, em oposição à esquizofrenia, está na base de todo bom poema escrito na linguagem da poesia, ou melhor, em qualquer coisa escrita em qualquer linguagem.

Estamos no século XXI, em uma sociedade submersa em um oceano algorítmico, tudo é prevísivel: as roupas que você quer comprar, a comida que você quer comer, a música que você quer ouvir, o filme que você quer ver. Tudo. Como isso é possível? Mágica!

Na verdade, não.

Como disse acima: sempre há uma esperança na poesia e essa esperança se encontra na impossibilidade de identificar todas as qualidades significativas e representativas do poema, sempre há alguém com alguma experiência amorosa diferente, com uma bagagem intelectual diferente, com o domínio de um idioma diferente e, que talvez, tenha lido algo sobre alguma corrente psicanalítica (rs) nova. Os fenômenos da vida, as experiências amorosas, familiares e lembranças. Essas experiências sempre nos aproximam da verdade do poema, nos tornam menos alheios ao poeta, nos aproximam muito, mas nunca nos colocam lá. É como o infinito de um cálculo diferencial, podemos nos aproximar muito, mas nunca chegar lá. “Lá” é o incognoscível, o “ding an sich” kantiano, uma derivação que integraliza, uma antiderivação, incontáveis possibilidades de correlações onde sempre há experança para o novo.

Estou falando sobre poesia, mas poderia estar falando sobre a vida, ambas se fazem nas qualidades inerentes, não nas quantidades alheias. Como Rodrigo Gurgel diz em um de seus vídeos sobre poesia: “[…] assim como nós não conseguimos entender tudo que se passa conosco, também nunca conseguimos entender tudo em um bom poema.”, ou algo assim.

Mas e se conseguissemos entender o que se passa conosco?
Já conseguimos em muitos casos, algoritmos escolhem nossas músicas, nossos alimentos e nossos filmes. Mas não os nossos poemas. A poesia é uma fuga da lógica, uma fuga da tecnologia possível, pelo menos até então.

Você já pensou como um algoritmo lê você?

Toda linguagem tem base lógica, toda lógica tem base matemática. Mas o que é lógica?

É a ciência que estuda princípios e métodos de inferência com o objetivo principal de determinar em que condições certas coisas se seguem (são consequência), ou não de outras. — Cezar A. Mortari (Introdução à lógica)

Se o universo é escrito na linguagem da matemática, como quer Galileu, a lógica é a forma que usamos para interpretá-lo. Vamos entender na prática, construíndo, da forma mais simples possível, um algoritmo de recomendação de música. Vamos utilizar uma quantidade pequena de dados para tornar o exercicio mais simples. Imaginemos o fluxo:

1 — Entro no aplicativo de música pela primeira vez
Digamos que o app não tenha nenhum de seus dados, o que é bem dificil hoje em dia (geralmente você acessa usando uma rede social, o que já trás um conjunto de dados reunidos).

2 — Pesquiso The Doors
Sua primeira busca na plataforma, o APP pela primeira vez entra em contato com seus gostos, mas nada relevante.

3 — Pesquiso Bob Dylan
O APP já consegue mais uma informação e agora sim, com duas amostras, podemos fazer correlações.

Começamos “reduzindo a linguagem em matemática”. Neste cenário temos dois valores, vamos atribuir símbolos:

  • Q (The Doors)
  • P (Dylan)

São apenas duas variaveis, pouca quantidade, mas é o suficiente. Agora vamos montar uma lógica de recomendação baseada apenas em dois dados.

Se Q ∧ P →QP (se Q + P = QP)
Se The Doors e Bob Dylan então The Doors e Bob Dylan.

Ok, isso pode parecer estranho, mas vamos prosseguir.

The Doors e Bob Dylan possuem características inerentes dentro da plataforma; seja estilo, nacionalidade, época e etc. Então, através dessas duas variáveis conseguimos mergulhar em um mar de novas condições lógicas. Mas, novamente, vamos utilizar poucos dados nesse exercicio mental. Imagine que ambos artistas possuam apenas uma categoria interna: nacionalidade.

Vamos recomendar um terceiro artista baseado apenas nessas variáveis: P (The Doors) e Q (Dylan), e cada uma delas possuindo uma categoria: nacionalidade (N).

Esses dados foram obtidos diretamente de você, através do seu seu gosto musical. Agora imagine que a plataforma tem seu banco de dados milhões e milhões de artistas, todos com diversas categorias registradas (N, neste caso), assim com um simples cruzamento é possível recomendar um artista adequado.

1 — Vou percorrer toda minha lista de artistas
Algo que um ser-humano poderia fazer, se todos os artistas estivessem organizados em folhas de caderno, por exemplo. Dependendo da quantidade de artistas, isso seria impossível em tempo hábil (para um humano).

2 — Vou comparar e cruzar os nossos dados
Digamos que existam 3 artistas em minha lista de artistas catalogados (além dos que você buscou). Vamos representar a lista desses artistas com a letra C e sua posição, ou seja, sua exclusividade dentro dessa lista com o número de 1 a 3. Cada um representa um artista (banda) dentro da minha lista de artistas.

C(1) = Pink Floyd
C(2) = Rolling Stones
C(3) = Velvet Underground

Se C(?)N (se a nacionalidade do artista [posição entre 1 e 3] da lista, não importa qual seja) ∧ (isso significa conjunção, “e”) PN (a nacionalidade dos The Doors) ∧ QN (a nacionalidade do Dylan)→C(?)
A interrogação é uma variável, eu vou utilizar essa mesma expressão lógica na minha repetição, alterando apenas a interrogação por números de 1 a 3. Segue-se:

A) Se C(1)N PN QN C(1) | errado (contradição)

B) Se C(2)N PN QN C(2) | errado (contradição)

C) Se C(3)N PN QN C(3) | Somente essa está correta (tautologia)

Por que somente a última (letra C) está correta?

Se C(3)N, ou seja, se a nacionalidade (N) do Velvet Underground(C3) e (“e” como conjunção representado por “∧”) nacionalidade dos Doors (PN) e (temos outra conjunção) nacionalidade do Dylan (QN) então (“→” representa implicação, como o sinal de igual na matemática: 2 + 2 = 4, ou, dois e dois implicam quatro) implica em Velvet Underground (C3). As duas primeiras (letra A e B) são contradições.

Pera aí, como assim?

Quando digo A e B, conjunção, eu afirmo que ambos valores, A e B tem valores verdadeiros, ou ambos tem valores falsos, mas com certeza ambos possuem a mesma “qualidade”, caso tivessem valores diferentes, o correto seria postular A ou B (A B) ou A e não B (A∧qB). Isso significa que, só quando todas as condições forem satisfeitas (a nacionalidade das bandas, forem iguais), ocorrerá uma implicação; neste caso, a implicação seria a banda que nosso algoritmo deve recomendar, neste caso Velvet Underground, porque C(1)N e C(2)N (nacionalidade inglesa) não são iguais a PN e QN (nacionalidade americana).

Neste exemplo construímos um algoritmo utilizando dois conceitos básicos de programação de computadores: repetições e condições. Nosso algoritmo sugere recomendações pobres, baseadas apenas em nacionalidade. Se fizessemos análises psicossociais para entender melhor, subjetivamente, como um ser-humano se identifica com uma música, e aumentassemos o número de dados, acrescentando estilo do artista, data de estréia e etc., e adicionassemos conceitos estatísticos… vish! Poderíamos reduzi-las em proposições lógicas(podemos), fazer um grande cruzamento de informações e tomar decisões muito precisas, até mesmo com um certo grau de subjetividade.

Enfim, meu objetivo aqui não é explicar linguagem ou entrar no mérito da computação, apenas quis estabelecer um horizonte de como o universo funciona, como nós funcionamos e o quanto a nossa relação com a linguagem configurada em uma receita de bolo pode ser perigosa. Sim, memes, virais, a linguagem utilizada nas redes sociais está tomando um caminho rumo à receita de bolo, é uma lógica de engajamento.

Por que a poesia?

A poesia é universo por si só, ela tem sua própria lógica, sua própria fonte de informação: a experiência humana, talvez quantificável, mas não relacionável em tempo hábil (por enquanto?). Em um mundo de proposições, a poesia trás as premissas, mas que não pode, de forma alguma, ser remontanda em uma lógica puramente racional e inorgânica. A poesia nunca trás os mesmos sentimentos, da mesma forma, com uma mesma lógica. Ela é a relação entre todas as experiências sensoriais e intelectuais do poeta, com todas as experiências sensoriais e intelectuais do leitor. Essa relação pode ser racionalizada matematicamente? São quantidades e vivências tão particulares, não registradas, vividas fora da internet, dos sistemas de informação, que, ainda, não podem ser quantificadas.

Diferente de uma receita de bolo, um algoritmo, a poesia não trás uma resposta pronta, não é algo que você e eu leremos da mesma forma, com o mesmo objetivo e julgamento. Dessa se destaca a semelhança, a relação dialética entre o criador, que de certa forma é um interpretador que apenas remonta objetos já criados, e o leitor que o interpreta.

Existe um conceito na lógica hegeliana, do inglês likeness, que pode ser traduzido para semelhança, e é neste conceito, que pode tratar tanto de elementos primordiais quanto de elementos complexos, que busco relação de sentido da poesia a nível sistêmico:

A semelhança é uma identidade apenas daquelas coisas que não são iguais, não são idênticas entre si: e a semelhança é uma relação de coisas parecidas. Os dois, portanto, não caem em aspectos ou pontos de vista diferentes da coisa, sem nenhuma afinidade mútua, mas um lança luz no outro. A variedade passa a ser diferença reflexiva ou diferença (distinção) implícita e essencial, diferença determinada ou específica. — Enciclopédia das ciências filosóficas I — A ciência da lógica

A relação entre verso e significação é de semelhança e não de igualdade, aí se encontra a infinitudade do ser, a esperança dentro da caixa de pandora. Como a poesia não constata, ela não pode ser invalidada, ou validada, mas redescoberta na lacuna que o poeta deixa para o intérprete iluminar.

Explicando um poema

Um poeta não explica seus poemas, é como dar a chave para o seu cofre de segredos. Entretando, como não sou poeta, e creio que não serei lido o suficiente para ser minimamente interpretado, vou explicar um de meus poemas com objetivo de mostrar claramente essa infinitude. Eu poderia simplesmente fazer a análise do poema de outro autor, mas aí estaria preenchendo a lacuna. Eu quero mostrar as estruturas da lacuna que construí e ajuda-lo no preenchimento.

O poema que será explicado em seguida, o último que escrevi, foi escrito com o objetivo de explorar a semântica e a diversidade de interpretações, mas nem todos os seus significados serão ditos aqui.

Segue o poema e em seguida sua explicação:

O toque gentil entrou como flecha
O corpo tremeu como calcanhar,
Ele contemplou a sua desgraça
E de seus sentimentos heroicos

Do peito para os olhos
O desejo aumentou,
Dos olhos para peito,
O coração disparou

Com a medida que mediu
Foi logo medido,
Com a flecha que lançou
Se viu ferido

Os votos então foram feitos:
Ele empunhou a espada
Beijou sua lâmina
E a guardou na bainha
Pois não sabia o que era,
Mas sabia o que poderia ser
Sentia de forma muito consciente
Para saber o que dizer…

Então houve timidez serena
Houve doce silêncio,
Houve vigor juvenil

O vinho brilhava em suas taças,
De cor vermelha,
Como as vestimentas de Baco:
Se movia suavemente
Ao movimento das mãos

O sorriso brilhava em seus rostos
Revelando a juventude
Que no campo do tempo,
Alheios a nostalgia,
Nada fazem pelo eterno

Não houve espetáculo,
Não houve armadilha.

Não houve amargura.
Não houve poesia.

Amaram-se
Outra vez,
Não por fim.

Somaram-se
Mais uma vez,
Até o fim.

Faziam-se pelo silêncio
E não mais pelo que diziam,
Não constatavam, sentiam
Sentiam.

Então como mágica,
Concebida no mais alto monte,
O beijo se desenrolou em pergaminho
Confinando o infinito e a imensidão,
Nele foi santificado e, imobilizado,
Ouvindo atentamente aquela oração:

Sem sujeito, era só predicado
Sem quantidade, era apenas qualidade
Sua sabedoria era ser nada
Seu amor era ser tudo.

Ele sentiu como se Deus,
Por um único minuto,
Cessasse a fome com o alimento
Resolvesse a guerra com a paz
Contivesse a doença com a cura
Acolhesse a cólera com igualdade,
Revivesse em menino saudável e livre,
Eterna criança que não conhece o açoite,
Sem Senhor e sem dor
Sem martírio ou cruz,
Esse.
E sê.
E se?

Glória ao Altíssimo na terra
Glória ao Altíssimo em mim!

Por um minuto os homens se veriam como homens
E no minuto seguinte nada voltaria ao normal.
Tudo seria como é:

Um eterno instante divino.

O beijo cessa como tragada jovem,
Forte e sensual,
Capaz de levar o tempo com os pulmões
E traze-lo de volta no minuto seguinte,
Ainda que o estrago esteja feito,

Ela se afasta devagar,
Com os olhos novos
E o sorriso largo
Enquanto ele,
Com as pernas fracas,
E o peito quente,
Tosse.

Explicação

Os trechos do poema estão em itálico, os comentários em negrito.

Tosse

O toque gentil entrou como flecha
O corpo tremeu como calcanhar,

Uma referência de Aquiles, o Herói invencível com um ponto fraco. O toque, sem sujeito, dando universalidade, toca o corpo, que tenso, treme e cai (no sentido figurado). A flecha também assume uma figura de amor, sendo produto do cupido.

Ele contemplou a sua desgraça
E de seus sentimentos heroicos

Ao ser tocado ele se sente vivo, novamente, e pode refletir — tão claramente que quase podia ver esses sentimentos na materialidade, como um objeto do mundo — sobre sua relação com o mundo externo, sem seus sentimentos heroicos (orgulho e vaidade) que o deixava cego.

Do peito para os olhos
O desejo aumentou,
Dos olhos para peito,
O coração disparou

O desejo surgiu no toque, que invonluntariamente acelerou seu coração e fez com que sua visão expandisse, aqui podemos brincar com a interpretração: a visão expandiu fisicamente, pois houve aumento de circulação com a aceleração do coração, e também metaforicamente, no sentido da frase “o amor é cego”. Brincamos com a ordem cronológica, pois no momento que o seus olhos expandiram e sua visão aumentou, conseguindo vislumbrar com maior nitidez o ente desejado, o sentimento faz o caminho contrário, aumentando ainda mais os batimentos. Temos um eterno retorno, enquanto durar.

Com a medida que mediu
Foi logo medido,

Com base no Evangelho do dia (Mateus 7, 1–5) que diz:
“Não julgueis, e não sereis julgados. Pois, vós sereis julgados com o mesmo julgamento com que julgardes; e sereis medidos com a mesma medida com que medirdes. Por que observas o cisco no olho do teu irmão, e não prestas atenção à trave que está no teu próprio olho? Ou, como podes dizer a teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu mesmo tens uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu próprio olho, e então enxergarás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”.

Nesse trecho acontecem duas coisas:
Primeiro introduzo o discurso religioso no poema, que segue mais a frente, e também retomo a relação de ótica estabelecida nos versos anteriores; sem entraves ele pode ver sua amante — se interpretarmos o sujeito que interage com o protagonista como amante — , e da mesma forma ela pode vê-lo, tanto espacialmente(medida), atração corporal, quanto subjetivamente, atração moral. Tudo o que o sujeito oculto cultivou, terás como retorno. Como explica o próximo verso:

Com a flecha que lançou
Se viu ferido
O sujeito oculto que tinha pra si uma imagem de setutor e senhor do amor; agora se vê atraído e vítima da sua própria sedução, como acontece na relação mitológica entre Cupido e Psiquê. Esse trecho é importante, nele faço uma referência direta à sedução fundamentada no capítulo “Os Sensuais” de Os Irmãos Karamozov (Ao verme, a sensualidade), mais precisamente no trecho em que Dmitri, que estava com a oportunidade de vingar-se de sua “amada”, em uma situação de poder e chantagem, diz à Aliocha:

Mas juro perante a cruz, por alguns segundos eu a olhei com ódio intenso, o ódio que só um fio de cabelo separa do amor mais intenso e apaixonado.

E então, ao vê-la, desiste dos seus planos maléficos.

Os votos então foram feitos:
Ele empunhou a espada
Beijou sua lâmina
E a guardou na bainha
Pois não sabia o que era,
Mas sabia o que poderia ser
Sentia de forma muito consciente
Para saber o que dizer…

Os votos são feitos, implicitamente, na consciência dos dois, que se aceitam, que concordam independente da situação ou ambiguidade, e novamente acrescentando o teor religioso concebido pelos votos.
Nos versos “Ele empunhou sua espada, beijou sua lâmina e a guardou na bainha” retorno aos Irmãos Karamazov, quando Dmitri, que desistiu de sua vingança, ao lembrar-se de sua“amada” indo embora, diz para Aliocha:

Então, ela se levantou e fugiu. Depois que ela partiu, eu tomei a minha espada e quis vará-la em meu corpo, por quê? Não sei! Sem dúvida, por entusiasmo; seria um grande absurdo, claro. Você compreende que a gente pode se matar de alegria? Mas eu só beijei a lâmina da espada e a guardei na bainha.

O sujeito do poema, ao fazer um acordo implicito com sua amante; empunha a espada, mas não utiliza, apena beija a lâmina e a guarda (uma metáfora forte), desistindo do “ataque”, saindo da defensiva e se entregando. O que causa esse efeito? A dúvida, agora, novamente, sem orgulho ou vaidade, ele reconhece que a imagem que tinha de si mesmo era apenas imagem, e a partir disso almeja mais, almeja os sentimentos que a linguagem não pode trazer ou representar, por isso ele não é capaz de dizer nada. Apenas sentir.

Então houve timidez serena
Houve doce silêncio,
Houve vigor juvenil

Esse trecho não preciso explicar, creio que sua leitura sincera basta.

O vinho brilhava em suas taças,
De cor vermelha,
Como as vestimentas de Baco;
Se movia suavemente
Ao movimento das mãos

Mais uma ambientação de significação importante: o vinho representa o desejo que brilhava, como uma chama imperecível. O vinho se movia com as mãos, o que significa que eles estavam com as taças na mãos. Ou, será que o movimento representado é em alusão as vestimentas dos dois, que se despindo, em direção ao ato sexual (a figura de Baco faz presença), movimentavam as mãos suavemente? Quem sabe as duas coisas.

O sorriso brilhava em seus rostos
Revelando a juventude
Que no campo do tempo,
Alheios a nostalgia,
Nada fazem pelo eterno

Jovens que não se importando com o passado (tempo), ou com o desenrolar do fatos (tempo), apenas desfrutam do presente (espaço) — campo do tempo — sem grandes pretensões.

Não houve espetáculo,
Não houve armadilha.

Não foi um show de imagens e egos, não houve segundas intensões, nem joguinhos.

Não houve amargura.
Não houve poesia.

Não houve interferência de sentimentos passados, experiências de outrora, e consequentemente, não houve poesia, que necessita da ambiguidade, do passado e da nostalgia.

Amaram-se
Outra vez,
Não por fim.

Somaram-se
Mais uma vez,
Até o fim.

Esse trecho é interessante, aqui baseio minha escrita no conceito de “dom-juanismo”, proposto por Camus no capitulo 2 de “O Mito de Sísifo”, que subsquentemente segue um debate sobre Dostoiévski e Os Irmãos Karamazov (capitulo 3, se não me engano).

“Por fim”, exclama uma delas, “te dei o amor.” Não surpreende que Don ria dela: “Por fim? Não” — diz ele — ,” outra vez. Por que seria preciso amar raramente para amar muito?

A citação acima explica-se por si só, como eles não se importavam com o passado, com a nostalgia, com os outros, com o eterno, podiam amar-se quantas vezes quisessem sem vislumbrar o fim e a propriedade, apenas o meio e a liberdade.

Faziam-se pelo silêncio
E não mais pelo que diziam,
Não constatavam, sentiam
Sentiam.

Como não diziam nada, não constatavam, não existia lógica aparente, proposições, apenas sentimento. Podemos notar uma crescente na sonoridade, os dois primeiros versos são suaves, mas nos dois últimos há uma mudança no ponto de articulação vocal, estabelecendo uma relação entre som e conteúdo, encerrando a estrofe com um anapesto (duas sílabas átonas e uma sílaba tônica) que aumenta o ritmo para o momento principal do poema que vem a seguir. Obs: aqui não vamos falar sobre fonética ou métrica, eu não poderia, mas ela é uma parte importante da poesia e deve ser observada.

Então como mágica,
Concebida no mais alto monte,
O beijo se desenrolou em pergaminho
Confinando o infinito e a imensidão,
Nele foi santificado e, imobilizado,
Ouvindo atentamente aquela oração:

“Como mágica, concebida no mais alto monte” novamente a religiosidade, em referência ao Monte Sinai e o contato de Deus com Moisés. O verso “O beijo se desenrolou em pergaminho” nos releva o beijo entre os, agora reveleados, amantes. O pergaminho é um registro, que se desenrola infinitamente, confinando o infinito e a imensidão naquele momento, isto é, quando jogamos algo no campo da linguagem, como um texto de pergaminho, ou na explicação de um beijo, estamos confinando todas as suas possibilidades em uma síntese simbólica, mas que nunca consegue reproduzir o fenômeno real, por isso é um confinamento, uma limitação.

O sujeito foi santificado no beijo, ou seja, transformado por Deus, separado do pecado. O adjetivo “imobilizado” é colocado para representar sua devoção ao momento, como santos que recebem orações e, que estatuados, são completamente atenciosos, mesmo sem escolha. Neste caso, a oração é o beijo.

Sem sujeito, era só predicado
Sem quantidade, era apenas qualidade
Sua sabedoria era ser nada
Seu amor era ser tudo.

Ele não se via mais como sujeito, responsável por sofrer ação ou estado, seu ego se dissipou, existiam apenas suas características, seus predicados, suas qualidades, sem quantidade, ou diferenciação de um e outro. Na verdade, não são “seus” predicados ou “suas” qualidades, são no máximo predicados e qualidades, sem sujeito, sem apontamento e sem unidade de medida (“com a medida que mediu…”). Contextualmente, é uma referência à lógica hegeliana que venho estudando e estava impregnada na minha cabeça.

“Sua sabedoria era ser nada. Seu amor era ser tudo.” não é invenção minha, é uma adaptação de um provérbio hindu o qual não me recordo a origem, ele não é expresso dessa forma, mas nesse sentido, significando a dissipação do ego.

Ele sentiu como se Deus,
Por um único minuto,
Cessasse a fome com o alimento
Resolvesse a guerra com a paz
Contivesse a doença com a cura
Acolhesse a cólera com igualdade,
Revivesse em menino saudável e livre,
Eterna criança que não conhece o açoite,
Sem Senhor e sem dor
Sem martírio ou cruz,
Esse.
E sê.
E se?

Depois de receber o beijo, ele consegue colocar seus pés no chão novamente e volta a se preocupar com a humanidade, com a sociedade, com os outros. Antes onde havia apenas espaço para a sensualidade, agora há espaço para o amor puro e a esperança. Nisso há um vislumbre de simplicidade, um grito lógico perante necessidades básicas. Assim como não há necessidade de fartura, não há necessidade miséria. O equilibrio se encontra na dissolução das duas oposições, onde antes haviam duas contradições, agora não haveria nada, pois indiferentes são imperceptíveis. Aqui, introduzo o conceito de Unidade e finalmente o texto chega no seu auge: o renascimento de Cristo e a referência de um dos meus poemas favoritos, de Fernando Pessoa, escrito sob o pseudônimo de Alberto Caeiro; Poema do Menino Jesus. Não vou explicá-lo, não é o objetivo do texto, mas você pode lê-lo aqui e depois voltar para o texto :) Ele, aqui, volta como menino, representando sua pureza e inocência, sem provação. Não há pecado para ser perdoado, não há martírio necessário.

Quando digo “Esse” brinco os verbos citados anteriormente:

Primeiro, com “Esse” aponto Jesus, sem dizê-lo.
Segundo, com “E sê” referencio Gênesis 17:1:

Eu sou o Deus Todo-Poderoso, anda em minha presença e sê perfeito.

Ele sentiu como se tudo aquilo fosse possível.

E encerra com um questionamento que transmite dois significados:

“E se?”, questionando “como assim, ser? como ser?”, e também “e se não houvesse fome? e se não houvesse doença? e se fosse diferente? e se?”, sonhando com as possibilidades apresentadas anteriormente.

Glória ao Altíssimo na terra
Glória ao Altíssimo em mim!

Em meio ao devaneio, surge a percepção da Unidade entre ele, Deus e o mundo, unidade entre vontade e realização.

Por um minuto os homens se veriam como homens
E no minuto seguinte nada voltaria ao normal.
Tudo seria como é:

Um eterno instante divino.

A ideia aqui é basicamente: se todos os homens sobre a terra estivessem de barriga cheia, fossem saudáveis, amassem e fossem amados, falassem e ouvissem… durante um instante que seja, nunca mais o mundo voltaria a ser feio, alheio e opaco; os homens perceberiam que o mundo, e a nossa existência, são apenas uma passagem em um espaço-tempo turbulento, frio e antigo. Guerra, fome, vaidade e doença não fazem sentido lógico neste cenário; se todos estivessem em uma situação material minimamente igual perceberiam as grandes vantagens do trabalho coletivo, de dar e receber. De viver.

De certa forma, essa é a construção do Estado: o mantemos porque colhemos seus beneficios ao longo do tempo, em uma relação de troca, entre dar e receber. No poema, nos aproximamos mais de um Estado Divino, pois como as mudanças são tão rápidas e tão gerais, não se trata apenas de uma transformação material realizada por Deus, mas também uma revolução filósofica nos homens, pois dada a natureza de tamanha mudança dentro de um tempo tão reduzido como 1 minuto, inspirado por sentimentos de amor, sua relação de causa e efeito é vislumbrada sem grandes complexidades. A lógica está dada.

O beijo cessa como tragada jovem,
Forte e sensual,
Capaz de levar o tempo com os pulmões
E traze-lo de volta no minuto seguinte,
Ainda que o estrago esteja feito,

O beijo cessa, abruptamente, encerrando todos os pensamentos. Aqui encontramos tudo o que aconteceu anteriormente em uma simples analogia com o tabaco e com a ação de fumar (sim, homenageando Fernando Pessoa seu mais célebre poema “Tabacaria”): tragamos, com força, vigor e sensualidade (revelando o poder da imagem) trazendo de volta a sensualidade do sujeito explicada anteriormente, a tragada (o beijo) nos liberta de todos os pensamentos, eliminando o tempo durante um curto período, mas que retorna quando soltamos a fumaça e nos vemos novamente na realidade, ainda que o estrago esteja feito: no caso do tabaco, um estrago físico, no caso do amor, um estrago existencial.

Ela se afasta devagar,
Com os olhos novos
E o sorriso largo
Enquanto ele,
Com as pernas fracas,
E o peito quente,
Tosse.

Tento encerrar o poema com simplicidade e enviá-lo para infinitude. Ela demonstra alegria, paixão (será superficial?) e ele, com as pernas fracas (causadas pelo amor ou pelo tabaco?), e o peito quente (quente pela pulsão do amor ou pela fumaça quente do tabaco?), tosse.

A tosse pode significar muitas coisas. Se eu fosse um crítico avaliando esse poema no futuro com certeza levaria em conta a relação entre o poema, a tosse e o coronavirus. E digo mais: a figura que se relaciona com o sujeito no poema é uma ideia ou uma mulher? Uma erva ou entidade?

Vou me limitar as explicações já dadas, e, por hora, guardo a chave de meus segredos.

Sei que o texto ficou longo e abrangente, mas foi necessário dar algumas voltas para explicar o que quero dizer: sempre é possível tirar algo a mais de um poema, sempre é possível tirar um algo mais da vida, fugir do padrão, sair da lógica, do previsível, do quantificável, da preguiça. Vivemos o futuro, computadores podem fazer quase tudo o que fazemos com uma velocidade exorbitante. Cada dia nos parecemos mais com eles, carregando repetições vazias, condições involucras, fórmulas prontas e manifestações figurativas, politicamente, socialmente e esteticamente. Só mudam-se os dados. Pense na dificuldade de colocar esse poema e toda sua subjetividade em formulações; em construções matemáticas e lógicas, como fizemos no começo do texto. Difícil.

Não por acaso iniciei o texto citando Duchamp. De certa forma, tudo tem um lado poético, não é?

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