[S01E04] Especial narrativa parte 1 — Gone Home e a história não contada

Felipe Malafaia
jslo
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10 min readJan 19, 2017

Olá, caro leitor. Como vai?

Se já nos conhecemos, me perdoe pela pressa e cacofonia, mas pressione logo o Start. Hoje mais do que nunca, vale a pena! Se você não me conhece, muito prazer; Me chamo Felipe, um caixeiro viajante, só que de jogos. Isso porque eu gosto de bons jogos e estou aqui pra fazer você gostar também. Ou tentar pelo menos.

O que vou fazer agora, é tentar fazer você jogar um jogo. Vou te explicar porque ele é incrível o bastante para te fazer jogar ele e depois, se você quiser, eu posso te explicar algumas das parafernalhas que os desenvolvedores usaram pra te fisgar. Que tal? Parece bom? Então jogue suas malas no chão e vamos resolver alguns mistérios em Gone Home.

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“O ano é 1995, você está voltando de uma viagem que fez para o seu lar e sua família. Apesar da saudade você só conseguiu um voo que chegaria de meia noite, então para evitar que seus pais se cansem indo lhe buscar você liga para eles e deixa uma mensagem na secretária eletrônica dizendo que vai de taxi. Você chega em casa esperando a recepção calarosa de toda sua família para espantar o frio do temporal que ruge lá fora. Assim que você chega percebe algumas luzes acesas e se aproximando da porta um pedaço de papel:

É isso. Esse é o começo da jornada de Kaitlin Greenbriar para descobrir o que aconteceu com sua família, e principalmente sua irmã, durante um ano de ausência. O jogo lançado em 2013 (e relançado agora para consoles) pela Fullbright Company ganhou dezenas de elogios por ser um jogo intimista, realista, emotivo e bem distante do que o que estávamos (e ainda estamos) acostumados a pensar quando ouvimos “jogos de video-game”.

AVISO:
Eu gostaria muito de não tentar elevar e aumentar sua expectativa quanto a experiência que é jogar esse jogo, mas isso é muito difícil, principalmente se você é uma pessoa que gosta e se envolve com boas histórias. Esse é o foco do jogo, então muito provavelmente se você é uma pessoa que só quer dar uns tirinhos ou bater numa galera, esse não é um jogo para você. Nenhum demérito nisso, só não é para você tá? Tá.

A categoria de exploração de história, que segundo a própria empresa é a que enquadra o jogo, é a melhor definição para Gone Home. Principalmente o termo exploração, que é utilizado no mais amplo e perfeito sentido aqui; Enquanto caminha pela casa e interage com objetos (que são os únicos verbos de jogo em Gone Home) você vai encontrar fragmentos de tudo o que pode ter acontecido durante a sua ausência, explicações até mesmo de por que você está ali; então tenha a certeza que os objetos que você vê numa estante tem uma razão de estar lá, e o que eles te disserem vai contribuir para lhe ajudar a desvendar a verdade por trás do desaparecimento de sua irmã Sam. Nos cômodos escuros a vontade de procurar o primeiro abajur ou interruptor vem de uma mistura de apreensão por uma claustrofobia imersiva e a vontade de chegar logo no entendimento de tudo o que está acontecendo, já aconteceu ou até mesmo, vai acontecer.

Ao decorrer do jogo toda a trama brinca com seus sentimentos e expectativas. O tempo todo você vai se surpreender com as subversões (e até ironias) que vão ser jogadas na sua cara ou que vão aparecer quase que escondidas abrindo uma mera gaveta de um quarto escuro. Cá entre nós, não é que eu siga cegamente premiações e análises de sites, mas eu tenho que admitir que ver a cartela de premiações de Gone Home é (no mínimo) instigante para você dar o primeiro passo no jogo e eu garanto que depois do primeiro passo a vontade é de só parar quando chegar no fim (o que é da forma mais positiva possível não demora tanto).

É um desafio enorme falar de Gone Home sem sentenciar você com um spoiler, mas eu posso (posso mesmo né, produção?) dizer que Gone Home é muito facilmente uma das melhores obras narrativas já criadas na última década (o New York Times concorda comigo inclusive). A história de Sam é delicada, humana e atrelada a nós mesmos como jogadores de uma forma tão única que só um jogo poderia apresentar e aí que está o principal chamariz. Se não significar nada pra você, esqueça as premiações e avaliações e foque no principal. GH ainda assim é uma obra incrível e única que só é possível nos videogames, uma aproximação por filme seria possível, um livro poderia chegar perto, mas a plenitude de sentimentos e reflexões trazidas por essa obra jamais seria alcançada se não houvesse a sua interação. E essa interação depende de você.

Gone Home pode ser comprado para Windows,MAC e Linux por R$36,99, para XONE por R$39,00 e para PS4 por R$61,50.

2º aviso do texto:

Okay, vamos lá então. Apesar da minha crença de que deu tudo certo (e que você jogou o jogo) eu vou tentar evitar o máximo de spoilers. Vamos começar falando de uma coisa simples: Gone Home não é um jogo comum. Ele fez parte da geração de estreia dos que viriam a ser chamados de, Walking Simulators e que algumas vezes não são sequer chamados de jogos. A definição de “game” é bastante controversa, academicamente falando inclusive. Então vamos fazer o seguinte, como prometido eu vou explicar exclusivamente alguns dos pontos de Gone Home fazem ele ser o que é. MAS, como extra eu vou dar minha palhinha sobre a afirmação “ISSO NÃO É UM JOGO”, que vai estar no final do texto. Okay? Promoção de última hora para o freguês fiel.

Mas, porque?

Por mais que o seu sucesso tenha gerado filhos, Gone Home é único. Principalmente quando falamos em narrativa e as formas de apresentar a mesma podemos traçar alguns paralelos como Dear Esther, Firewatch e Stanley Parable ainda existe em Gone Home uma proximidade que é desenvolvida através da silenciosa exploração que fazemos pela casa dos Greenbiar em Arbor Hill. Claro que esse laço é formado pela pura curiosidade inicial, a nota deixada na porta por sua irmã (que até aquele momento você nem sabe que é sua irmã) é o convite inicial para você começar o jogo. Seu entusiasmo no início do jogo é essencial para o funcionamento dele, assim como as informações que você tem da história. Se você já souber qual o tema e a mensagem que quer ser passado ali, muito provavelmente vais acabar deixando algumas informações que podem lhe parecer inúteis já que não são diretamente ligadas ao caso, mas que enriquecem o universo.
Se você já jogou qualquer outro jogo (até mesmo pique esconde) e criou uma pequena história com motivações daquilo estar acontecendo já dá para se ter uma noção do valor que isso agrega a brincadeira. Atrele isso a uma investigação e um laço de intimidade com toda a família que vai crescendo a cada carta lida. Esse é o segredo da narrativa de Gone Home, ela só existe porque você faz ela existir. A caixinha de lenços ao lado do abajur pode parecer somente um item qualquer, mas assim que você explora a casa e descobre que seus pais tem enfrentado alguns problemas na relação, você consegue encaixar os lenços no universo ele não é só uma caixinha. A história daquela caixa não lhe foi contada, mas ainda assim você deduz a razão da existência dela. Esse é o segredo especial da Narrativa de GH.

Isso só é possível porque o jogo é imersivo a ponto de você, como eu fiz no parágrafo anterior, viajar na história não contada de objetos. E a imersão é fruto de diversas decisões de design. Você pode saber um pouco mais sobre você (Katie) no início do jogo porque assim que a tela se abre, está escrito na etiqueta de sua mala.

Você não recebeu muitas instruções de como o jogo funciona, somente uma tela dizendo que WASD ou as setas direcionais controlam o personagem e que o seu mouse serve para direcionar sua visão e interagir com objetos. Você caminha para frente e ao chegar na porta um mensagem de “trancada” aparece no meio da tela (“Ahá! Então é assim que o jogo se comunica comigo!”).

Já que a porta está trancada você decide andar por aí e encontra uma mesa com uma xícara e um jarro. Se você aponta a bolinha branca para o jarro não vai receber nenhuma mensagem de volta, mas se você aponta para a xícara recebe a ordem “grab cup”. Com isso você aprende que nem todos os objetos podem ser segurados e analisados por Katie. Mas a chave para abrir a porta não está ali, então você continua sua busca.

Está tudo muito escuro nesse canto, com os trovões e a forte chuva do lado de fora é até meio assustador continuar assim… Você olha em cima do criado mudo e vê um lâmpada. A mensagem “Ligar lâmpada” junto com o alívio de ver as coisas claramente.

Dentro do criado mudo aprendemos duas regras básicas do mundo. A primeira é que objetos agrupados não possuem interação, como é o exemplo das lâmpadas e a decoração de natal.

A segunda regra é um detalhe, maestral, descoberto quando você descobre a chave sob o pato de natal (❤), que é a opção “colocar de volta”. Por que maestral? Explico: Na vida real você não toma itens em mão e joga eles em qualquer lugar! Você os coloca de volta exatamente do mesmo jeito para não ter que arrumar depois. Você toma cuidado para não quebrar as coisas porque afinal, é a sua casa!

Pode parecer algo pequeno e que na verdade pouca gente sequer percebe que está lá, mas é exatamente por esse e outros pequenos detalhes quase imperceptíveis que a imersão de Gone Home é tão intensa e por essa imersão tão intensa é que temos uma narrativa exploratória tão marcante e incrível.

“Isso não é um jogo!”

Como prometido, eu vou dar uma palhinha sobre a afirmação acima. É comum que ao jogar GH o jogador não se depare com pontos comuns da maioria dos jogos de hoje em dia como:

  • Conflitos/Batalhas/Resolução de desafios.
  • Modificação clara da história por parte do jogador

São dois pontos válidos para o que tínhamos como definição de jogo de 30 anos atrás. Imagine comprar um cartucho pro seu Atari, encaixar ele no console, ligar e você somente observar um personagem andando da direita para a esquerda com um fundo que troca de cor para simular o passar do tempo*. Realmente, esse jogo seria horrível e malemal poderia ser chamado de jogo. Mas não pela falta de Conflitos ou história, mas pela falta de um fenômeno que chamo de nhe’oryai(TL: Guarani mbyá: “Espirito da brincadeira”).

Sim, é um termo que tomei emprestado de uma de nossas línguas originais, é a junção de Nhe que significa “espírito”, e Oryai que por sua vez significa “brincadeira” ou “brinquedo”. Particularmente acredito que já é a hora de existir uma movimentação que possa determinar melhor o que são jogos e o novo status que os games carregam; eu explico:
Games não são mais sobre somente bater em inimigos. Existe uma relação mecânica, psicológica, social e interativa do jogador com o jogo. Essa relação pode sim facilmente vir da encarnação do jogador num samurai, mas, também pode vir da interação do jogador com uma simulação de interface lhe dando acessos a vídeos de uma mulher falando para uma câmera. Ambos podem ser chamados de “games”, por que lançam ao jogador uma proposta de participação de um universo virtual que vai lhe permitir alterar a estrutura do jogo e isso inclui também alterar a visão do jogador sobre o jogo. Minecraft é um jogo que lhe permite alterar o mundo “fisicamente”, qualquer outro jogo que lhe forneça ferramentas para alterar a história (como pode se alinhar os jogos da Telltale) ou a forma com que você vê a história, todos as 3 categorias são cobertas pelo “nhe’oryai”, que só e unicamente é gerada por jogos; Por mais que um filme lhe dê a opção de escolher o seu final, não existe o sentimento de estar presente no universo, você não é nenhum dos personagens, você não viveu aquela história. E essa é a marca dos novos jogos, não são somente “Alien Vs Marines”, nunca antes tivemos uma aproximação tão grande de vivenciar histórias na nossa pele.

Steve Gaynor, escritor e co-fundador da FullBright company (criadora do Gone Home) palestrou na GDC exatamente com o tema “Por que Gone Home é um jogo”, são 50 minutos (em inglês) de muitas noções interessantes de design, usabilidade, roteiro e game design, vale ver: http://www.gdcvault.com/play/1020376/Why-Is-Gone-Home-a

E aí? Se interessou pelo jogo? Jogou e veio aqui saber um pouco mais? Comenta aí!

*Existe um jogo relativamente parecido chamado “Desert Bus” lançado para Sega CD.

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Felipe Malafaia
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Game Designer, Designer UX, multimidia creator e dono do universo… Um desses é verdade. @CESAR