[S01E05] Especial narrativa parte 2 — The Walking Dead e o toque de Midas

Felipe Malafaia
jslo
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8 min readFeb 2, 2017

Olá, caro leitor. Como vai?

Hoje temos a segunda parte de um especial que estou fazendo aqui, então é o seguinte, os suspeitos usuais já sabem o que fazer certo? Exatamente, Pressione Start!

Caso você seja novo no bairro, indico muito que você leia a PRIMEIRA PARTE dessa nossa trilogia (ou mesmo leia a coluna desde o começo tá sendo bem bacana), quem sou eu? Eu sou Felipe Malafaia, sou um caixeiro jogante! O que é um caixeiro jogante? Bem, é uma profissão com a árdua e cansativa missão de jogar muitos jogos e selecionar os melhores para mostrar ao mundo. É bem melhor do que parece. Pois bem, meu trabalho é dividido em três partes, a primeira vocês já sabem: eu jogo muitos jogos e escolho os melhores. Em seguida eu mostro para quem quiser ver por que o jogo é tão bom e o combo termina com uma pequena explicação das ferramentas que os desenvolvedores usaram em você.
Que tal? Parece bom?
Então separe suas barras de chocolate e vamos fugir de alguns mortos-vivos em The Walking Dead: Season One.

Pressione Start

Lançado em 2012 The Walking Dead é um jogo do gênero Adventure que é baseado no quadrinho homônimo criado por Robert Kirkman e que ao contrário da série televisiva encontra sua fonte de inspiração muito mais nos personagens e nas tramas que eles estão envolvidos do que nos tropos de ação, sendo esse inclusive o maior destaque do jogo.

Acompanhe Lee Everett, que após sofrer um acidente se vê encarregado do que parece ser um sentido para sua vida, que por uma razão lúgubre estava desnorteada, essa nova razão se chama Clementine uma jovem criança que cruza seu caminho para quem sabe uma redenção. Você está pronto para encarar os seus demônios pessoais (e os de seus companheiros) numa jornada pela sobrevivência? Está pronto para enfrentar a natureza humana?

Ganhador de mais de 80 prêmios de “Jogo do ano” sendo elogiado como impecável nos aspectos psicológicos e emocionais da trama, The Walking Dead é uma verdadeira obra prima. Não se preocupe de não conseguir jogar o jogo, não é precisa muita tecnicidade para entrar no universo de TWD, todos os comandos são simples e fáceis exatamente para você se sentir o mais confortável para desfrutar da história. Por mais que você vá descobrir que confortável não é exatamente a palavra que define seu sentimento nas situações tensas em que você vai se encontrar ao decorrer dos 5 episódios da primeira temporada (já existe uma segunda temporada e uma terceira está em produção).

Os jogos da Telltale (empresa desenvolvedora) são produzidos em capítulos e vendidos separadamente! Ou seja, você pode gastar muito pouco com a primeira parte e testar se o jogo está no seu gosto! Espere um momento, eu disse pagar pelo primeiro episódio? Pode esquecer, exclusivamente na versão Mobile do jogo você tem acesso gratuito ao primeiro episódio! Mas você pode encontrar o jogos em muitas plataformas com valores relativamente baixos e muitas vezes eles se encontram em promoção (o que eu considero um ato de bondade para toda a humandiade) para ajudar eis aqui os links para as plataformas com maior venda (PS,PS4 e XONE flutuam na casa dos R$50 por todos os episódios):
Iphone, Android, PC, PS4, XONE.

Mas, porque?

Nós gostamos de matar zumbis, eles estão na nossa vida desde 68 com Romero e seu “Noite dos Mortos-Vivos” (ou ainda 1932 para os mais puristas) então já estamos acostumados com a forma que eles são retratados, talvez por isso tenhamos que admitir que com o passar do tempo eles não são mais os monstros que eram. O status POP que eles ganharam sobrepujou o horror que eles traziam, ao menos na grande maioria das vezes. Nesse cenário surgiu um quadrinho que não focava nos miolos explodidos por desert eagles douradas, mas nas picuinhas, nos bafafás, nos disse-me-disse que estouraram dentro do grupo de sobreviventes. O jogo tomou de assalto esse mote, adicionou o nhe’oryai (já comentamos sobre ele no texto anterior) e uma trama com personagens tão ricos e profundos que pegou todos de surpresa.

Foi um levante silencioso. A experiência mais próxima de TWD que o mercado tinha tido era Jurassic Park (desenvolvido pela mesma empresa), e ele era muito mal acertado em vários sentidos; O gameplay (que é a reunião e atuação dos aspectos do jogo, ou seja, jogar) não encaixava com a história, as cenas de ação sempre pareciam ser presas pela necessidade da interação do jogador com o cenário e com mecânicas mais usuais dos jogos (andar, atirar, pular, etc). Aprendendo com os erros e arriscando um pouco mais a Telltale resumiu o jogo naquilo que eles queriam mostrar; a história. Por essa razão os verbos do jogo se limitam a clicar em pontos brancos, falar com pessoas, andar e… Clicar em mais pontos brancos.

A expressão “menos é mais” deve ter sido pendurada numa faixa gigante no escritório e até mesmos os desenvolvedores ficaram com medo de mecanicamente o jogo ficar vazio e repetitivo.

No primeiro teste com portas fechadas o medo sumiu.

A aposta era simples e objetiva, os quebra-cabeças e desafios deixariam de ser plataformas, buracos com espinhos e se tornariam os personagens e as intrigas nas quais eles estavam inseridos! Ness e as intrigas nas quais eles estariam envolvidos. Não era mais sobre acertar um salto sobre um buraco, o desafio agora era analisar o melhor possível que tipo de pessoa que te cerca e no momento certo usar a psiquê dessa pessoa a seu favor. Os personagens se tornaram os puzzles. Ainda existem diversos desafios que somente você enfrenta aos moldes dos antigos adventures, como encontrar itens no cenário que combinados vão abrir o caminho para o próximo cenário, ou até mesmo enfrentar alguns zumbis. Mas sem todo o universo narrativo construído ao redor esses segmentos de jogo seriam somente chatos e clichês, seriam cenas de uma novela que você já viu. Falando em novela, você já percebeu o quão próximo a uma novela os jogos da Telltale são?

Novelas são obras culturais extremamente importantes no Brasil, não somente por isso as vezes é complicado de ver quais obras utilizam tropos e formas das novelas em si (afinal, estamos tão acostumados a novelas que não analisamos elas). Cristiane Costa em seu ensaio “Eu compro essa mulher: romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas” destaca que os arquétipos e modelos desenvolvidos e aperfeiçoados nas novelas são uma fórmula de sucesso. Vamos passar rápido por três pontos básicos e você já vai entender:

  • Linearidade complexa:
    Espera-se que em novelas exista uma trama relativamente simples e linear, que normalmente possa ser explicada por qualquer pessoa como por exemplo “O dia-a-dia de uma jovem estudante pobre numa escola para ricos”. Essa simplicidade no entanto quase sempre se desdobra em pequenas tramas extremamente complexas, e principalmente HUMANAS. É muito raro ver uma intriga em novela que seja causada pelo meio e não pelo pessoal o que nos leva ao segundo ponto.
  • Hiper Realismo-sentimental:
    Novelas devem tratar os sentimentos como a coisa mais importantes de todas. Por isso muitas tramas giram em torno de vingança, redenção, busca pela felicidade. Não que os personagens sejam resumidos a seus sentimentos, mas eles são marcados com eles para facilitar a aproximação do real.
  • Aproximação do real:
    As novelas agregam um intuito de atingir maior público para sua audiência, com isso trazem uma quantidade enorme de personagens (um número entre 50 e 100) para que todos possam se sentir representados e não pense que são personagens en passant, todos os personagens são desenvolvidos, interligados e de uma forma ou outra aparecem no episódio.

A história de TWD é simples (a sinopse é uma linha), mas os desdobramentos que acontecem por contas dos personagens criam uma trama com relações complexas.

Os sentimentos são extremamente explorados, sendo a paternidade desenvolvida por Clementine um sentimento que poucos podem dizer provar integralmente e assim, algo inédito de se sentir

Quando a troca de desafios passa de encontrar itens e resolver quebra-cabeças para soluções quase diplomáticas diante de conflitos pessoais, e esses conflitos pessoais não são preto no branco, existe um desespero real de “o que fazer para não me queimar com “X”.

Então você tem uma história bem contada, com personagens profundos e conflitos interessantes. Tudo isso não seria tão efetivo caso duas coisas não acontecessem. A primeira é o que chamo de Princípio de toque de Midas que consiste em basicamente dar ao jogador o poder de transformar e direcionar a história. Em uma bifurcação você realmente sente que está decidindo o rumo da história (você se surpreenderá quando descobrir que são relativamente poucos caminhos principalmente em comparação com jogos focados nisso como visual novels).

O segundo fator, e esse mais técnico, é uma frase que é colocada na tela que faz você perceber a dimensão de sua escolha:

“Kenny will remember that” marca no mais profundo íntimo da sua alma. Lidar com esse fato não é um desafio mecânico do jogo, você deve questionar a sua moralidade sobre o ocorrido; você liga para o que Kenny pensa? você acha que Kenny é importante para a sua sobrevivência? A moralidade envolvida nas decisões é cativante e uma das marcas mais fortes da narrativa de TWD.

“Não é sobre o que o jogador vai jogar, é sobre o que ele vai experienciar e sentir o momento do jogo”
Sean Vanaman (Creative lead da Telltale)

E então? Curtiu o jogo? O que está achando desse especial sobre narrativa? O próximo texto será para fechar esse arco e, spoiler, vai ser sobre X-COM 2!

Se você gostou MUITO do texto recomende-o e compartilhe-o por todo o globo e rede mundial de computadores!

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Felipe Malafaia
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Game Designer, Designer UX, multimidia creator e dono do universo… Um desses é verdade. @CESAR