Humpback no Pacífico

Dri Kimura
dri.ki
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2 min readSep 24, 2023

Trecho de A Louca da Casa, Rosa Montero

Permanecemos assim, sem nos mexer nem dizer uma palavra, durante mais de 15 intermináveis minutos. E, de repente, sem nenhum aviso, aconteceu. Um estampido aterrador agitou o mar ao nosso lado: era um jato d’água, o jato de uma baleia, poderoso, enorme, espumante, uma voragem que nos encharcou e fez o Pacífico ferver em torno de nós. E o ruído, aquele som incrível, aquele bramido primordial, uma respiração oceânica, o alento do mundo. Essa sensação foi a primeira: ensurdecedora, ofuscante; e imediatamente depois emergiu a baleia. Era uma humpback, uma corcunda, uma das maiores; e começou a surgir na superfície bem ao nosso lado, a apenas dois metros da borda, porque os cetáceos são seres curiosos e querem investigar os estranhos. E, assim, primeiro emergiu o focinho, que logo depois tornou a se meter debaixo d’água; e depois veio deslizando todo o resto, numa onda imensa, num colossal arco de carne sobre a superfície, carne a mais carne, brilhante e escura, emborrachada e ao mesmo tempo pétrea, e num determinado momento passou o olho, um olho redondo e inteligente que se fixou em nós, um olhar intenso vindo do abismo; e depois desse olho comovente ainda continuou passando muita baleia, um muro musculoso eriçado de crustáceos e de algas barbadas, e ao final, quando já estávamos sem fôlego diante da enormidade do animal, ergueu a toda altura aquela cauda gigantesca e afundou-se com elegante lentidão na vertical; e em todo esse deslocamento do seu corpo tremendo não fez qualquer marola, não provocou a menor salpicadura nem emitiu nenhum ruído além do suave cicio da sua carne monumental acariciando a água. Quando desapareceu, imediatamente depois de ter mergulhado, foi como se nunca houvesse estado ali.

[…]

Com a escrita é a mesma coisa: muita vezes você intui que o segredo do universo está do outro lado da ponta dos seus dedos, uma catarata de palavras perfeitas, a obra essencial que dá sentido a tudo. Você está no próprio limiar da criação, e em sua cabeça eclodem tramas admiráveis, romances imensos, baleias grandiosas que só revelam o relâmpago do seu dorso molhado, ou melhor, fragmentos desse dorso, pedaços dessa baleia, migalhas de beleza que permitem intuir a beleza insuportável do animal inteiro; mas, em seguida, antes de você ter tempo de fazer alguma coisa, antes de poder calcular seu volume e sua forma, antes de entender o sentido do seu olhar perfurante, a prodigiosa besta submerge e o mundo fica quieto e surdo de tão vazio.

Foto: Matt Hardy

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