Breath of Fire V : Dragon Quarter

lucasq
Juiz Cachorro
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12 min readJul 14, 2016

É um tipo de senso comum categorizar as coisas que possuem semelhanças umas com as outras — por isso que se fazem joguinhos que continuam com 1, 2, 3, 4, etc:estabelecer uma estética e princípios dentro de um universo é uma boa ideia nesse pensamento. Porém, tem uma coisa engraçada aí: graças a essa estética, esse princípio e suas regras, as pessoas (nem tão erradas, mas ainda erradas) começam a formar listinhas de tudo e categorizar as coisas, afinal, não tem como “Resident Evil” não ser “Terror” ou; onde já se viu “Metal Gear Solid” sem o “Snake”? Cria-se uma ideia de que uma “franquia” deveria seguir alguma coisa, seja lore, cânone ou gênero. 1, 2, 3, 4 não são mais apenas chances de se reinventar e tentar tirar o melhor do que se possui, são apenas mais um conjunto de regras estabelecidas por (pessoas de) fora que, se Deus for ruim, um monte de japoneses numa salinha de reuniões irão observar e falar:

“Encontramos o video game ideal.”

Isso é muito importante. Apesar de gostarmos — e as vezes até apoiarmos — a ideia de continuação seguindo aqueles Princípios Que Uma Série Consegue Determinar, também achamos que jogos que não dão a mínima pra isso são muito melhores. Vamos observar Hideo Kojima: Ele começou construindo algo com Metal Gear, expandiu e criou padrões com Metal Gear 2, Metal Gear Solid segue todos esses padrões e ainda sim é considerado uma obra fechadinha, que fez suas próprias coisas na época (e é incrível em tudo isso), aí teve Metal Gear Solid 2. Metal Gear Solid 2 foi criado para destruir tudo isso — porque alguém se importaria com o que aconteceu com personagem x ou y? Por que não fazer tudo em uma realidade duvidosa? O tema GENE já foi, vamos falar de MEME. Entender que em um ponto MGS deixou de ser só sobre uma listinha de acontecimentos e personagens para cobrir é importante; cada jogo se segura forte em seu tema e tenta falar alguma coisa, até nas ocasiões onde isso não parece ser o caso. Então, esse é um jeito. Nós não achamos que Metal Gear Solid possa ser concebido apenas como um jogo de stealth ou de ação ou qualquer coisa assim: ele provavelmente passou por muitos outros processos criativos e pensamentos antes de ser o “tipo de jogo” dele. É normal querer Metal Gear Solid, porém ninguém realmente quis Metal Gear Solid 2 — esse é o seu brilho.

Tem outro caminho, entretanto: ao contrário do que muitos dizem, o único Resident Evil “de terror” que existiu foi Resident Evil 1. Não é importante que Resident Evil seja “de terror”. Assim como Metal Gear e Metal Gear 2 eles também construíram coisas e conceitos em volta do nome (Biohazard), mas sabemos que Como O Cara Legal Que Shinji Mikami É que ele também não ligava muito para as coisas que não são tãaao importantes assim. Ele ficou só de fora, supervisionando tudo o que faziam durante RE2 e 3 para ter certeza de que tudo estava ocorrendo bem. RE 2 foi a primeira tentativa de tirar RE do “terror” — seu criador (Hideki Kamiya) tinha muito medo! E o 3 seguiu muito mais essa linha, tendo muito mais maluquice do que anterior, ainda que com toda aquela coisa que a gente estava acostumado. Umbrella e tal. RE 4 marcou a volta de Shinji Mikami como diretor (“Se Resident Evil for lançado em outro console que não o game cube, eu corto minha cabeça fora”) e depois de seus milhões de protótipos nós finalmente recebemos algo… curioso. Tem um monte de gente estranha falando espanhol, o tirinho agora é diferente, mas a movimentação funciona do mesmo jeito, apesar de que por outro ângulo. RE4 talvez tenha sido o maior esforço para tirar o melhor de algo que já existia — tirando tudo o que não era necessário para si e fazer algo que pareça completamente novo (afinal, a Umbrella explodiu e ninguém precisa lembrar mais disso) mesmo que seja “continuação” dos outros. A verdade é que o Shinji Mikami não ligava muito — foda-se aquilo lá de Umbrella, Wesker, Chris, é muito mais interessante pegar o personagem bonitão, dar uma desculpa e fazer uma história meio campy dele indo resgatar a filha do presidente com um monte de Bichão aparecendo. Além do pessoal falando espanhol. Un forastero! Resident Evil 4 é o esforço criativo de alguém que queria tirar o máximo de sua criação, com isso ele provavelmente tirou o máximo de video game na época também e, assim como Hideo Kojima, criou seu próprio conceito de “autor”.

Em 2001 ninguém aceitou Metal Gear Solid 2, todos os meus amigos (mentira, só os errados) já reclamaram de Resident Evil 4 um dia. Isso veio de um sentimento que pode se resumir em “uma obra não é o que eu quero, então ela provavelmente é ruim” — ditado curioso que ainda é repetido em 2016, e se formos bons o suficiente não será em 2017. Casos como esse são bons pra fazerem pensar em como uma pessoa às vezes quer se colocar na frente de uma obra ou da vontade de um autor em fazer alguma coisa. Quer dizer, uau, imagina só se alguém ficasse reclamando da falta de “explicações” e “furos de roteiro” e “protagonista” de Metal Gear Solid 2, ou da “falta de terror”, “ter que parar pra mirar” de Resident Evil 4? Nada pode dar errado com isso, certo?

Ao contrário do que todas as pessoas que ainda tentam achar uma categoria mecânica em Resident Evil ou Silent Hill ou Dark Souls (se você está lendo isso em, sei lá, 2012 de algum modo, esteja avisado!) ou Metal Gear Solid ou Breath of Fire e todas as reuniões de japoneses empresários para fazer um briefing das coisas que estão em voga nesse momento dizem:

Breath of Fire V: Dragon Quarter é o video game ideal.

Dragon Quarter

Dragon Quarter é um desses jogos que também não segue o “canon” de sua série principal, ele é completamente diferente, acontece num cenário pós apocalíptico e tem um sistema de batalha bizarro que não segue o estilo antigo. Francamente, não tem como saber como a Capcom permitiu que algo assim fosse feito (mas é aquilo, ela permitiu muita coisa boa na época) mas o importante é ficar feliz por isso. Mesmo que pouco reconhecido, ele tem todos os méritos que um jogo de um nível bem alto deveria ter.

Em alguma época, em algum lugar, por causa de poluição, enfim — os meios pra esse tipo de história você já sabe quais são. Um dia os homens começaram a viver embaixo da terra (cerca de 1000 metros abaixo do solo!) por causa de contaminação, disseram. As pessoas não conhecem mais o Céu, rezam lendas que existia essa imagem azul e bonita toda vez que você olhava pra cima e ela era imensa; mas são só lendas, onde já viu isso de Céu? Não existe. Dentro desse mundo existem pessoas e pessoas aglomeradas em cidades (?) e organizações. Também tem monstros que geralmente são experimentos científicos que ficaram malucos e saíram por aí fazendo bagunça. No meio disso tudo tem um nome em especifico: os Rangers, um grupo designado a cumprir missões dadas pelos Regentes do governo (os líderes do sub-solo), geralmente envolvem transportar itens para a BioCorp — o pessoal que faz aqueles experimentos — ou manter a ordem e paz no mundo, contra os ataques de monstros que fugiram ou de rebeldes. Cada Ranger tem um rank indicado por uma fração, ex: 1/4,1/16,1/1024. Quanto menor o denominador, melhor você é. Você começa como um 1/8192.

Aí tem toda aquela coisa, você sai com o seu companheiro (um 1/64) numa missão de assegurar o transporte de algo misterioso — o que importa é essa coisa misteriosa chegar na BioCorp. É claro que alguma coisa dá errado. Você é atacado por um dos rebeldes e se separa de seu parceiro; entre isso tem também o chamado de um Dragão, Odjn, para você, dizendo algo sobre ser o escolhido de alguma coisa. Logo após o acontecido você descobre que aquela coisa misteriosa que deveria ser transportada é uma garota chamada Nina e a primeira situação já é ajudar ela contra um monstro, a partir daí é claro que os dois criam laços. A rebelde também se junta a você e o dragão te deu um poder de se transformar em dragão, esse poder tem um contador.

O maior e principal objetivo de Dragon Quarter é alcançar a superfície novamente e ver o céu.

Recomeçando

A pior parte dele talvez seja sobreviver ao começo — após jogar uma quantidade razoável de horas, já longe das primeiras dungeons e estar relativamente alto no sub solo, resolvi procurar alguns comentários sobre o jogo, de pessoas procurando ajuda ou impressões num geral. O número de gente que desistiu logo no começo é assustador. Ele tem isso por ser todo esquisito e diferente de tudo o que tem por aí, o jogo espanta nos seus primeiros momentos. Diferente dos Breath of Fire anteriores e RPGs (há!) desse tipo num geral, você tem que ser eficiente, pensar em posicionamento, em que botões apertar ao atacar, ser engenhoso com os inimigos, saber quando desistir de uma luta e em algumas vezes de como desistir do jogo. Só de senti-lo já e uma experiência completamente única.

Porém, a primeira Dungeon talvez seja o melhor ambiente possível pra entender todas as minucias importantes dele. Primeiramente tem um sistema chamado SOL (Scenario Overlay): ele permite resetar o jogo completamente (!) ou recomeçar da última vez em que você salva. Toda vez que você recomeça pode voltar com experiência e armas e coisas coletadas num geral — desde que você as guarde — , então é um ponto interessante: como as coisas dificilmente mudam (geralmente só muda o inimigo perto de um tesouro valioso ou coisa assim) vale a pena manipular isso a seu favor, especialmente na primeira dungeon; ir coletando o que tem lá e se acostumando com cada tipo de comando que ele tem, também entender como fazer pra se aproximar melhor de cada inimigo e enfrentá-los. Tudo bem, não há nenhuma punição em recomeçar. A não ser que você morra. Se morrer começa com tudo pela metade, e sem itens. O melhor caminho possível é aprender aqui a evitar a morte a todo custo.

Repetição pode ser algo importante num jogo, mas o que interessa não é a quantia de coisas que dá pra tirar disso repetindo e sim como fazer isso do modo mais gostoso possível. Repetição para proficiência em algo, seja com o formato da fase, combate ou até modos rápidos de explorar (vai ser necessário) talvez seja a melhor forma de repetição. Para Dragon Quater, com toda a certeza é o melhor tipo de repetição. Poucos jogos gostam tanto de brincar com seus sistemas e exigem tamanha atenção por parte de quem está jogando, nem sempre incentivando, mas sempre deixando a possibilidade pra quem tem uma vontade verdadeira de se entregar a ele a fazer coisas novas e melhores: por enquanto vamos dizer que um dos jogos dessa seleta lista se chama Metal Gear Solid 3.

Tudo bem repetir quatro ou cinco vezes o começo: o subsolo não vai te receber de braços abertos mas vai estar tudo posicionadinho e criado com cuidado o suficiente pra promover o costume com todas as suas peculiaridades. É propositalmente claustrofóbico, mesmo. Não tinha outro jeito de ser, dizem. Afinal, tanta gente se acostumou a viver ali, somos só mais um.

ARTE

Um pouco depois desse começo você ganha o poder de virar o Dragão. Nessa forma tudo é mais fácil: vencer os inimigos e chefes leva muito pouco, dá pra passar pelo mais forte dos inimigos em apenas dois ou três ataques. Porém ele tem um contador. Toda vez que você se transforma, esse contador aumenta. Quando você ataca na forma de dragão, ele aumenta muito. Se for um ataque especial então, nossa! Quando o contador chega a 100%, o jogo acaba. Game Over. Tem que começar tudo de volta, sem opção de voltar ao save.

Quando você anda, executa turnos da batalha e outras coisas durante a forma normal o contador também aumenta, porém muito pouco. Dá pra chegar lá na metade do jogo sem ter gastado 20% dele. Dá para os chefes durarem mais de 1 hora. Ou 5 minutos. Aí vai de você: o que é melhor, economizar ou ir gastando de tudo vez.

O quanto você quer ver o céu?

heh, imagina só, um “jRPG” com tempo limite pra completar e ainda curto, li na IGN que o jogo só dura 10 horas, que decepção.

Olhando para o Céu

Obviamente que chegar ao final não vai ser uma tarefa fácil: e a cada área que se passa, mais alto se chega e mais claras as cores dos cenários ficam, cada vez a sensação maior de que algo tranquilo e bonito está por perto; os esgotos e lugares feios em tons de marrom e verde vão dando a lugar a formas que lembram pouco mais uma cidade de verdade, igrejas e mansões, com cores entre o azul e o branco. Quanto mais alto, mais fortes são as coisas que se enfrentarão, porém. Maior é a vontade de virar Dragão, maior é o anseio de saber se o Céu existe.

Essa pressão de tudo o que está em volta, o sistema do SOL, o contador do dragão — o conjunto de tudo o que forma Dragon Quarter, por falta de uma palavra melhor hoje podem ser chamados de “atmosfera”. É impossível não se sentir pressionado pela contagem, mesmo que ainda pequena, ela sempre vai estar ali te lembrando que a qualquer momento pode acontecer algo errado e ela subir bastante — você não sabe se vai conseguir voltar à última vez onde foi salvo ou se vai dar pra chegar ao final, e enquanto se pensa nisso ela continua subindo e subindo. Todo o resto colabora para fazer esse número parecer ser o mais opressivo o possível: as dungeons vão ficando cada vez maiores, as cidades aparecem cada vez menos, coisa errada acontece atrás de coisa errada na história, seu antigo parceiro aparece numa forma diferente, três chefes seguidos lhe desafiam — e você não tem tempo para respirar — contraste engraçado, considerando que os ambientes são cada vez mais agradáveis de se olhar. Conseguir manter compostura perante isso durante o tempo todo não é só um desafio — é coisa de quem é experiente já.

Mas a vontade de ver o céu, de levar alguém que com certeza precisa sair do subsolo continua.

É até engraçado que no fim é sobre as coisas bobas, até bregas — porém, verdadeiras — que esse esforço é em função. É pra levar alguém com quem formou laços até o mundo(se é o que o mundo existe) e o importante é acreditar até o fim. Não tem como saber como é nunca ter olhado para o céu, por causa disso talvez seja até difícil apreciar o ato de poder olhar para cima e ver o azul. Mas dá pra ter certeza de que a vontade de vê-lo pelo menos uma vez é extremamente humana.

Dá pra pensar as vezes que o responsável pela criação é um autor, assim como o Hideo Kojima e Shinji Mikami. A verdade é que nunca saberemos, esse foi o primeiro e um dos pouquíssimos jogos que o mesmo dirigiu, ignorando todas as coisas que tiveram antes do mesmo (o que Breath of Fire “era”, seu “lore”), fazendo o melhor jogo possível sem se importar em trazer tudo o que vai enaltecer apenas a si mesmo.

Pensando assim, talvez Dragon Quarter nunca tenha sido feito pensando em termos como “RPG” ou “por turnos” e “inimigos que aparecem no cenário”. Ele provavelmente foi feito para ser uma coisa só, visto pela ótica de ser um jogo sobre esse subsolo e a vontade de ir até fim — os seus sistemas, minucias e implicações vieram depois. Ele não se enquadra nesses termos porque não foi feito sob termos e isso reflete em cada momento que passamos jogando ele. Perceber isso e construir algo em volta disso é o maior triunfo de Dragon Quarter.

Mas ter olhado o céu é com certeza seu ato mais importante.

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