Demon’s Souls

lucasq
Juiz Cachorro
Published in
5 min readNov 15, 2015

Demon’s Souls é uma das coisas mais incríveis que eu já joguei.

Demon’s Souls não merece uma nota dez.

Tem um atalho — bom, na verdade tem muitos atalhos — mas tem um atalho em especial de Demon’s Souls, em uma fase chamada “Shrine of Storms” que não é um atalho. Ele é um erro do jogo. Pra chegar nele, você tem que rolar de uma beirada e torcer pra conseguir numa parte um quebrada do muro. Desse muro você consegue observar uma subdivisão entre a parte inicial da fase e também uma continuação que não tem como chegar pelo caminho inicial, então através dessa subdivisão você pode pular direto no caminho final para o chefe da fase.Esse atalho faz com que você passe 2/3 da fase de uma vez só, podendo ir direto ao fim dela — e ele não foi intencional. Ele foi um erro.

Hidetaka Miyazaki, nosso queridíssimo diretor da série Souls, quando soube que os jogadores encontraram esse atalho, não só disse que aquilo nunca foi planejado — como também disse que não seria um erro o qual ele consertaria. Isso aqui é interessante, a partir daí, algo foi agregado a obra por acidente, e não só isso — ela se encaixa em muitas projeções que a mesma faz, afinal uma das recompensas por conhecer as áreas do jogo e passar por tudo é conseguir atalhos. É importante notar nisso o quanto Demon’s Souls é não só sobre Hidetaka Miyazaki, mas também é sobre nós.

Não que ele seja sobre nós “naquele” sentido de Imersão ou de Personagem Sem Voz, ele é sobre nós num sentido de um relacionamento ser sobre tudo o que envolve as duas pessoas que fazem parte dele — ao mesmo tempo que Demon’s Souls sobre Hidetaka Miyazaki, sobre nós, Demon’s Souls é também sobre nós entendendo ele mesmo. Pegando outra história sobre o desenvolvimento do jogo : todo o sistema cooperativo e de invasões dele foi baseado em uma experiência pessoal do Miyazaki, onde um carro parou em uma colina devido a neve e começou a escorregar, o carro que estava atrás dele também ficou preso, mas o atrás desse empurrou ele até o morro, e assim os outros carros uns ajudaram os outros. Ele chegou a salvo em casa — porém nunca teve a chance de dizer obrigado para quem o ajudou, foi um momento temporário para passar por uma adversidade. O fato curioso não foi o acidente, mas o pensamento após — será que se, em outra ocasião eu conheceria aquela pessoa que me ajudou, nós nos daríamos bem? ou brigaríamos?

Obviamente, já sabemos que um dos sistemas de Demon’s Souls pode ser sobre o acidente nas colinas quanto pode ser sobre o que acontece depois. A sacada aqui é que dentro de Demon’s Souls nós vivemos em uma constante atmosfera da segunda situação , tudo já aconteceu aqui, o que resta é o fim do mundo, a nevoa, a desolação. Eis a pergunta : como seria se conhecêssemos isso tudo em uma ocasião diferente ? Assim como no acidente — nunca saberemos. No fim ele culmina em ser sobre nosso contato com algo que já está lá, é como dizem quando alguém tem uma “bagagem” depois de um tempo, e nenhuma relação a partir daí pode, realmente, ser a primeira. Nosso relacionamento com Demon’s Souls é o de um velho divorciado rico com uma bela moça em seus 25 anos que está atrás de seus sonhos, sendo essa a forma mais sincera desse relacionamento que já existiu.

Aprendemos a confiar e a entender tudo o que se passa na cabeça dele — o passado é muito importante, porém não existe uma maneira concreta de representar CADA MINUTO ou tudo o que aconteceu, só resta imaginar que antes do que conhecemos agora existia algo muito diferente, talvez mais próspero e bonito — mas nunca será o atual, o relacionado com nós, aquilo que tentamos entender desde o primeiro momento em que demonstramos disponibilidade. Nós somos derrotados, levantamos, aprendemos os detalhes, cada tendência, cada atalho, cada obstáculo, o que fazer — o que não fazer, o que é certo o que é errado, nós crescemos. Nós entendemos.

Essas pequenas coisas que nos tornam próximos de algo aparentemente oblíquo, as nuances de um combate, a particularidade das áreas — saber que existe um mundo que é a representação do mal humano, e outro mundo que é o mal natural, compreender tudo o que acontece com o reino de Boletaria, com cada personagem e suas rivalidades, preocupações e principais intenções e usar cada uma dessas coisas para o aproveitamento de um todo. Saber que cada mundo tem uma tendência, e que essa tendência depende muito do que você faz. Demon’s Souls vai dar algo em troca, algo muito satisfatório e bom para nós — mas só a partir do momento onde estivermos prontos para não só a aceitar aquele mundo como ele é agora, mas entendê-lo também. Desde o começo somos julgados não só como alguém capaz de fazer o que está sendo pedido, mas do momento que pisamos no Nexus (a área principal do jogo), somos também julgados como apenas mais uma pessoa — alguém que inevitavelmente vai conhecer seu fim, e ele não vai ser bom. E afinal, não é apenas a partir do entendimento que o nosso próprio julgamento sobre tudo aquilo pode ser feito ? Aí conseguimos, finalmente, absorver as coisas com mais clareza.

Mas como tudo tem data de validade — e eu não sei qual seria a do relacionamento com o velho, sinceramente espero nunca descobrir — uma hora isso iria acabar. Eu fiquei muito feliz nas 50 horas em que fui uma moça jovem em busca do amor de um velho divorciado, mas estava perfeitamente ciente que uma hora nós seriamos só mais uma lembrança da espada afundada na areia do deserto — e agora após passar pelo bem e pelo mal, sejam eles de origem humana, natural ou até imaginária, é a hora de botar ele — o velho, o antigo, Demon’s Souls para dormir.

Demon’s Souls, para todos os efeitos, é uma das melhores coisas que eu já joguei que eu nunca daria uma nota dez. Todos os seus erros são frutos de uma honestidade muito grande, que podem se transformar em alguma coisa maior como o atalho em Shrine of Storms. Nada impede de serem só erros também : tenho certeza que, dadas as circunstancias, os Dragões seriam melhores, e a luta contra os Maneaters não seria tão histérica. Ele não merece uma nota dez — mas esse talvez seja exatamente esse o charme dele. Poderia, em algum momento da história ter sido um jogo perfeito com seus seis mundos que eram planejados e sem nenhum erro técnico — mas ele não é, se fosse um, talvez ele não se chamaria Demon’s Souls, e não teria todas essas coisas que só Demon’s Souls tem.

Eu amei Demon’s Souls.

E exatamente por isso, Demon’s Souls não merece *de jeito nenhum* uma nota dez.

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