“ai, amiga” — texto de 2010

Ju Assunção
juliana.txt
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5 min readOct 15, 2019

Entre 2007 a 2010 eu escrevia muito, mas muito mesmo. Escrevia quase de tudo, poesia, contos, histórias reais, lembranças, artigos técnicos etc. Hoje em dia, relendo alguns textos, vejo como eu gostava principalmente de escrever diálogos inventados, ser indisciplinada com ortografia e usar figuras de linguagem excessivamente até a leitura ficar meio complexa. Confesso que tive de reler esse texto abaixo devagarinho para conseguir acompanhar minha própria narrativa de quase uma década atrás...

Quero ressaltar que esse texto abaixo foi escrito por mim em novembro/2010, logo depois uma época não muito boa da minha vida. Nessa fase, além de alguns problemas que aconteceram, eu comecei a questionar muito sobre certo/errado, ser bom/ruim, sobre valores morais e ética e tudo isso mexeu muito comigo e com quem convivia comigo. Questionei tanto, mas tanto, que eu diria que hoje em dia todo esse questionamento virou basicamente minha vida atual.

De qualquer forma, segue o texto abaixo na íntegra copiado sem revisões. Eu curti muito reler esse texto, espero que curtam também =)

ai, amiga, e foi isso. era tudo assim meio daquele jeito sabe? tinha muita regra e tal, regra que a gente não falava, mas a gente já sabia de antemão, só que era do jeito certo que, na verdade, era o errado pra todo mundo. só que você sabe que nem todo mundo presta atenção nisso de certo ou no errado, só querem saber quem se deu bem — ou mal — no final. e no meio também. aí, nem falo muito pra não causar blá blá blá em cima de quem se deu mal ou se deu bem…se é que alguém se deu bem nisso…bom, parcialmente deu sim. sabe como é, né, amiga? tá tudo de cabeça pra baixo, daquele jeito que você olha e diz in-con-for-ma-da: “que dó, né? por que não tenta fazer do jeito certo?” mas, ah, isso que não entendo, menina, como é que ela sabe o tal jeito certo, se o meu jeito certo é o jeito errado pra ela e a gente aqui de cima acha que o jeito dela é o mais errado, sendo que ninguém vai chegar em acordo algum?

segura o portão, isso, assim, vou desligar o forno, já volto.

pronto, então. onde eu estava? ah, sim, sobre o jeito certo e errado. então, é que…que? ai, espera, eu preciso te explicar minha opinião senão você não vai entender a história. é que assim, eu acho que o jeito errado é o jeito certo, só que o jeito certo é o jeito que ninguém faz, por isso é considerado o jeito errado, aí parece que eu faço tudo errado mesmo. tá me acompanhando? mas não é que eu esteja fazendo tudo errado, menina, é o que dizem, porque esse é o jeito que eu gosto e é o jeito que eu acho certíssimo. mas isso era o que eu pensava até ontem. é.

nossa, aquela não é a filha mais nova do zé? que cabelo é aquele? gente, como ela é rebelde, né?

isso, o certo e errado, então. deixa eu falar. então, como eu estava dizendo, aquilo que eu disse sobre o que eu sempre falei agora eu já não concordo mais, por isso, não vou mais dizer isso. ah, é, você sabe que é mentira você sabe que sou horrível pra isso. “isso” mesmo. mas então, o problema é que quando estava daquele jeito e tal, no errado que era o certo, era mais fácil, óbvio, porque não precisava pensar sozinha. isso, você tá certa, não achava que precisava pensar sozinha, né? é…ai, que enrolação tudo isso. mas aí vai e dá tudo errado, uma, duas, três, ah, umas vezes, aí você para e pensa: vai que o tal errado que dizem é o errado mesmo, assim, universal?

B’noite, dona marlene. tô bem, e a senhora? ah, a gente tá jogando conversa fora, sabe como é, né? a senhora viu a filha do zé? virgemaria, também acho! tá bom, dona marlene, fica com deus. B’noite pra senhora também.

ai, que mulher intrometida, né? enfim, amiga, tô desesperada. se esse jeito que eu gosto for o errado mesmo, então quer dizer que já estava tudo errado desde o início, né? mas mesmo pensando ao contrário do que eu disse antes, eu ainda acho que o meu errado é o certo de todo mundo e não consigo achar que o certo de todo mundo seja o meu errado, tá entendendo? a nilza disse para eu correr atrás e ver o que acontece. o dominguinhos disse que eu preciso ocupar a cabeça com outra coisa (aí ele disse que o forró que ele vai lá no cocaia ocupa até o rabo dele, estranho, né?). a terê disse que eu pareço tristonha e o seu beto disse que adora o minha visão crítica do mundo e as minhas pernas, mas não entendi o que ele quis dizer e disse isso para ele. ele me chamou de sonsa inteligente e afagou meus cabelos. que? dando em cima de mim? não, acho que não. me chamou de sonsa por isso? é, enfim…ah, não, não me importo de pensar sobre isso, consigo pensar em tudo o que eu quero ao mesmo tempo.

olha a moto, sobe mais aqui na calçada. ah, esses motoqueiros…senhor.

que? ah, mas você diz isso por que você guarda rancor quando essas coisas acontecem com você, amiga. eu só guardo memórias e memórias são bem piores do que guardar rancor, sabe? queria ser que nem você, que só de pensar você já fica vermelha de raiva. se eu pensar, eu lembro das coisas e…só. queria muito ter raiva, seria mais fácil. lembra da zezé? então, ela só conseguiu ir embora depois que ficou com, muita, muita raiva. eu lembro até quando você chegou aqui, com as crianças e o teu marido bêbado, estava com tanta raiva que só assim conseguiu mudar as coisas e olha que linda que você tá agora!

aliás, seu cabelo tá lindo? você fez lá na leninha?

não, não vou fazer o que a nilza disse, não, muito menos o que o dominguinhos disse também. ah não, também não vou lá na leninha pra pedir opinião. odeio opiniões sobre minha bolha, estão sempre certos pra eles e errados pra mim, mas como agora já não concordo mais, então não sei mais. também não, não vou ficar procurando algo parecido pra ver se vai substituir, não, isso vai piorar, é comprovado cientificamente que piora, eu vi no fantástico ontem. é, eu concordo, uma hora cai do céu [risos altos]

opa, vai acordar o neném da sílvia. hm? ah, eu sei porque eu a ouvi cantando nânaneném ali na varanda.

não, não, eu não ligo tanto assim como eu pensei que ia ligar, menina. menina, menina, se você soubesse o tanto que eu achei que iria ligar você ia cair durinha-da-silva. eu só fico pensando nisso porque tá entre as coisas que enraizaram na minha cabeça, que nem o bêbado do teu marido enraizou na sua. as outras coisas? hm, depois eu falo, preciso entrar pra colocar a mesa. não, menina, não incomoda, tô só falando assim porque o desespero de ontem me assustou um pouco, sabe? se sinto falta? hm. é, um pouco. ai, menina, não me olha assim, quando vira parte da nossa rotina a gente gosta, mas quando sai da rotina, do jeito que for, ninguém gosta. saudade deixa um gosto amargo na boca, tipo cuspe verde, já percebeu? por isso que tô com essa bala rosa na boca.

quer uma?

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Ju Assunção
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