CRÍTICA: Tangerine, de Sean Baker

Um coração quebrado é igual para todos.

João Silva Santos
Jump Cuts
4 min readJun 30, 2016

--

O espetador comum, sempre que procura um filme ou vai ao cinema, acaba por encontrar uma certa consistência no tipo de filmes que vê. Heróis masculinos a fazerem de vilões masculinos sacos de pancada, superheróis brancos a expulsarem alienígenas migrantes das suas casas, ou então princesas da Disney a combaterem esterótipos sem realmente os desmancharem.

É como se a diversidade do nosso quotidiano não estivesse representada no grande ecrã. A verdade é que não pensamos muito nisso (ou pensamos, e reviramos os olhos cansados do politicamente correto) porque para a maioria privilegiada, esse tipo de representação não lhe importa. Argumenta-se que a maior parte dos filmes não é sobre raça ou sexualidade, portanto que diferença faz o Steve Rogers ser homem, branco e heterossexual e não mulher, preta e homossexual? Hollywood perpetua este tipo de pensamento — ainda que tenha tomado algumas medidas positivas nos últimos anos — , homogeneizando o tipo de figuras com que o público se identifica só porque joga pelo seguro. E o resto do povo, não existe na sétima arte?

Por sorte, temos filmes como Tangerine.

Em Tangerine, Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez), uma prostituta transsexual, sai da prisão após uma sentença de 28 dias. A sua amiga Alexandra (Mya Taylor) conta-lhe sem querer que o seu namorado/proxeneta a traiu enquanto esteve presa, o que a leva à sua procura, causando confusão por onde quer que passe.

Tangerine desenrola-se em Hollywood, uma escolha desprovida de inocência que cospe na fábrica de filmes ao tornar duas mulheres transsexuais as protagonistas da sua história. Sin-Dee e Alexandra são duras, imperfeitas, malcriadas, e cheias de vida e energia; meras palavras não são suficientes para descrever estas duas personagens, que saltam do ecrã para a mente coletiva da audiência como dois seres humanos extremamente bem definidos. Raro é o filme que consegue criar personagens com um pingo de textura, recorrendo a maior parte das vezes a arquétipos facilmente reconhecidos pelo espetador. Tangerine, por outro lado, opta pelo diferente, mas não menos real.

Em particular, a interpretação de Mya Taylor ressoa emocionalmente ao simbolizar toda uma vida de luta e coragem pela igualdade, sem o esfregar na cara do público: Alexandra é a mais racional das duas protagonistas, aquela que mostra a outra face após uma bofetada. Há um momento em que começa a cantar, e de repente sentimos que o filme podia acabar ali, ao som da sua voz angelical, a carregar tanta tristeza que nem mil abraços a conseguiriam aplacar. Taylor é fantástica no seu papel, e Alexandra é uma personagem destinada ao cânone cinematográfico deste novo milénio.

Já Sin-Dee perde-se no histerismo irritante, que ainda que justificado pelo seu coração quebrado, não deixa de importunar a audiência com uma atitude violenta e egocêntrica em demasia. Talvez por isso a sua relação com Alexandra pareça tão humana: duas amigas com personalidades contrastantes, que se amam apesar das suas diferenças. Outro elemento menos bem conseguido da narrativa é o plot paralelo do taxista perverso Razmik, que tenta um comentário à política de raças de Los Angeles mas não é mais que supérfluo ao enredo principal, apesar de uma convergência desajeitada no fim.

O aspeto mais refrescante de Tangerine, porém, é o facto de não vitimizar estas duas personagens transsexuais; o enredo do filme centra-se apenas na sua relação e na demanda por vingança apaixonada de Sin-Dee. Existem alguns momentos mais tristes, mas todos eles são contrabalançados por um sentido de humor cáustico que acaba por definir o tom do filme. De facto, as melhores cenas são as que reúnem as duas protagonistas com o namorado de Sin-Dee (protagonizado por James Ransone), resultando numa mistura explosiva de humor e drama intenso.

Tangerine é diferente (e não só por ter sido filmado com três Iphones 5), com uma composição musical esquizofrénica, cores saturadas e personagens distintas e bem realizadas. O plot indiscutivelmente indie não se entrega bem às massas, e algumas ações de Sin-Dee roçam no insuportável. Mas é também um filme que nos permite conhecer personagens que não pertencem ao típico cinema de Hollywood, personagens que refletem o nosso dia-a-dia moderno (mais do que alguns gostariam de admitir), e se divertem imensamente com as situações e conversas em que se encontram.

Se estão fartos da oferta sem surpresas do multiplex mais perto do vocês, entreguem-se a Tangerine. Não desilude.

--

--