David Ayer e Tempos Cruéis (2005)

Antes de ser Batman, Christian Bale era Jim Davis, um ex-militar psicopata à procura de emprego.

João Silva Santos
Jump Cuts
3 min readJul 7, 2016

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David Ayer é talvez mais conhecido por ter escrito o guião do filme Dia de Treino (2001), mas foi com Tempos Cruéis que começou a sua carreira de realizador, ainda em 2005. Agora, é um dos cineastas mais cobiçados de Hollywood, com Esquadrão Suicida (2016) aí à porta, e um negócio de 90 milhões de dólares com a Netflix também a espreitar.

Desde sempre que Ayer mostrou uma preocupação em desconstruir a cultura americana do “machão” contemporâneo, nomeadamente em contextos criminais. O seu cinismo inicial condenava estas personagens, enfatizando os seus defeitos com uma perspetiva moralista, quase religiosa. Tempos Cruéis é um claro exemplo desta atitude.

No filme, Jim Davis (Christian Bale) é um ex-militar que volta do México para procurar emprego em Los Angeles com o seu amigo de longa data, Mike (Freddy Rodriguez). Mas Davis sofre de stress pós-traumático, e acaba por sabotar todas as tentativas de endireitar a sua vida, estragando a de Mike no processo.

Tempos Cruéis não foi um filme muito bem recebido na altura, tanto pela crítica como pelo público, as análises positivas focadas apenas na interpretação de Bale. O ator é realmente fantástico como Jim Davis, eclipsando o resto do elenco com a sua presença feroz e instável.

No entanto, é o guião de Ayer que dá textura a estas personagens e às suas peripécias. Quase todas as cenas são construídas meticulosamente de um ponto de vista narrativo, e apesar de não serem estilizadas ao nível de um qualquer filme do Michael Mann, almejam ressoar a nível emocional como os melhores filmes deste mestre.

De facto, essa emoção deve-se largamente à relação entre Jim e Mike, cujos anos de companheirismo e aventuras são sentidos imediatamente após o seu primeiro encontro no filme. As caralhadas nas viagens de carro, as cabeçadas com gangbangers do bairro, as festarolas com cerveja e charros à mistura… Os melhores momentos de Tempos Cruéis são tão bons porque assemelham-se à nossa construção da realidade. Aquelas personagens são reais, desde os seus gestos, às suas conversas, às suas ações. Há um pouco de autobiográfico em Tempos Cruéis, e Ayer opta por não fugir dessa verosimilhança com as suas próprias experiências.

O filme pode passar por aborrecido em alguns momentos, principalmente no início, em que demoramos demasiado tempo a entrar naquele mundo e a conhecer aquelas personagens. As primeiras cenas desenrolam-se numa espécie de infodump tépida capaz de alienar aqueles à procura de um pouco mais de ação, e de menos conversa.

Apesar disso, são essas cenas mais delongadas que aprofundam a relação entre os dois protagonistas, de modo a que os seus momentos finais pareçam verdadeiramente chocantes, e não um conjunto de acontecimentos desajeitadamente orquestrados. Assim, à medida que a psicose de Davis vai piorando, somos capazes de melhor perceber o que move aqueles dois homens, desde a sua amizade ao orgulho hyper-masculino que os coloca nas piores das situações.

É com esta atenção à psicologia dos seus anti-heróis que Ayer explora a condição do homem americano em 2005, especialmente no que toca ao ego masculino, à pobreza da classe média, e ao desemprego no apogeu da administração Bush. A destreza com que gere estes conceitos varia entre o sublime e o cliché, mas nunca deixa de ser interessante, principalmente pela especificidade da realização de Ayer.

Tempos Cruéis é um debut sólido e despretensioso, sem nada de particularmente original, mas com um realismo extremo capaz de impressionar o mais cético dos cinéfilos. A ver.

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