Orange is the New Black — Oh, América

Onde as coisas deixam de ser laranjas e pretas, para serem pretas e brancas.

João Silva Santos
Jump Cuts
4 min readJul 5, 2016

--

Cada ano de Orange is the New Black costuma chegar com bastante fanfarra e humor. As tensões entre o nosso elenco favorito de prisioneiras não estão propriamente em alta, e durante alguns episódios vão alimentando uma sensação de camaradagem e amizade que poucas outras séries conseguem replicar.

Esta quarta temporada não é diferente. O primeiro episódio começa imediatamente onde o último acabou, com as prisioneiras a brincar no lago, e a Vause a ser esganada pelo assassino enviado por Kubra. Rapidamente tudo volta ao normal, com o buraco na cerca fechado, o assassino assassinado por Lolly, a nova melhor amiga de Alex. Com a normalidade vêm as gargalhadas, as referências à cultura pop, e os comentários raciais que tanto definem Orange is the New Black.

É fácil continuar a odiar a “nova” Piper toda white-gangsta, e apreciar o resto do elenco multifacetado com que Jenji Kohan nos tem premiado todos os anos, sem pensar muito no plot; viver apenas nos momentos individuais daquelas personagens. E apesar de alguns fios narrativos menos bem conseguidos (o ressonar da compincha de Red, a estadia de Burset na SHU, as aventuras neo-nazis de Piper), tudo parece em ordem na prisão de Litchfield — ou em desordem, bem vistas as coisas.

Não, o grande problema está na temática central da temporada, que tenta interligar a privatização de serviços públicos com brutalidade policial e tensões raciais; temas grandiosos e atuais. Infelizmente, fá-lo sem grande sucesso.

Primeiro, falha redondamente na apresentação dos novos guardas. Enquanto o colossal Piscatella é introduzido e desenvolvido como um severo mas respeitável agente prisional (apesar de nos últimos episódios se transformar numa caricatura detestável), os restantes agentes são meras marionetas para onde os escritores de Orange is the New Black conduzem o seu ódio contra o sistema. Não há um único guarda decente (excepto talvez a McCollough, uma mulher, e o Bayley, introduzido na passada temporada e com mais tempo para se afirmar), e depressa se estabelece um ponto comum entre todos: homens, brancos, violentos. Uns mais sádicos que os outros, mas sem qualquer ponto redentor, completos vilões Bond sem humanidade ou profundidade. Orange is the New Black gosta de demonizar o homem, mas normalmente fá-lo com uma complexidade admirável (ver: Pornstache, e mesmo o Healy), não com o desprezo absoluto com que trata estas novas personagens.

A sério, tentem lembrar-se dos nomes deles. Humphrey, o gordo e… o careca? Tudo o que fazem é abusar das prisioneiras, malhar cervejas e atirar comentários sexistas a torto e a direito. Claro que existem pessoas assim, mas introduzi-las desta maneira, completos desconhecidos, num estabelecimento prisional como guardas e veteranos consagrados? É puxar demasiado o cordel, e abusar da inteligência da audiência.

E depois matam a Poussey.

O momento, em si, é extremamente bem orquestrado: sob a direção hábil de Matthew Weiner, a série consegue esmurrar o estômago do público com uma violência emocional que só programas como Game of Thrones (onde episódios inteiros são dedicados ao desenvolvimento de personagens) conseguem igualar. E o episódio seguinte faz um bom uso da estrutura de flashbacks da série, relatando a noite em que Poussey decidiu ficar nos Estados Unidos, uma noite repleta de momentos fantásticos que lhe mostram o lado “mágico” da América, um país que lhe custou a liberdade e, então, a vida.

Porém, todo o clímax perde-se na grandiosidade dos temas que Orange is the New Black não tem a capacidade de articular com a destreza necessária. Esquece-se, por exemplo, da Soso, a suposta cara metade de Poussey, para dar relevância às suas melhores amigas, que apesar de estarem melhor definidas, não justificam o histerismo do motim prisional. Bayley, o guarda mais bem intencionado da série, é quem comete o homicídio, numa tentativa de tornar ambígua a face da brutalidade policial, mas dividindo de tal forma as simpatias da audiência que acaba por não dizer nada de substancial sobre o tema em si. Não foram os monstros que causaram o homicídio, portanto quem deve ser julgado pelo crime?

Pior ainda é a atribuição do momento final da temporada a Daya. Afinal de contas, ela esteve no limiar de toda a narrativa este ano, sem qualquer peso nas relações de outras personagens mais envolvidas nos acontecimentos, como a Maritza, que teria toda a legitimidade em pegar naquela arma e estourar os miolos de Humphrey. Claro, é complicado analisar esta decisão quando ela é mais um cliffhanger para a próxima temporada do que outra coisa qualquer, mas aí está o principal problema: promessas forçadas do que porventura pode vir a acontecer.

Esta quarta temporada de Orange is the New Black decidiu jogar fora o desenrolar orgânico da sua narrativa para aprofundar e desenvolver temas que sempre estiveram na ponta da sua língua, e embora essa ambição seja digna de respeito, é a sua execução que deixa para trás uma sensação amarga. No meio de tanta suposta ambiguidade moral, Orange is the New Black perdeu a complexidade colorida das suas personagens e trocou-a por marionetas binárias, pretas e brancas, que obedecem unicamente às vontades dos escritores e produtores da série, e não às necessidades do enredo.

Não é assim que se constrói uma narrativa. Não é assim que se desenvolvem personagens. Não é assim que se aprofundam temas tão importantes para o nosso mundo contemporâneo. Não é assim, Orange is the New Black.

Não é assim.

--

--