Shane Black e Kiss Kiss Bang Bang (2005)

João Silva Santos
Jump Cuts
Published in
3 min readMay 22, 2016
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Kiss Kiss Bang Bang é genial. Gostava de conseguir articular melhor o que há de especial no filme, mas simplesmente não há palavras que façam jus à sua demência exuberante.

Black realiza pela primeira vez um argumento de sua autoria, e reúne um trio de atores mais ou menos desgraçados para darem a vida às três melhores personagens criadas por si — até à data, pelo menos. Robert Downey Jr., Val Kilmer e Michelle Monaghan protagonizam, respetivamente, Harry Lockhart, “Gay” Perry van Shrike e Harmony Faith Lane, três personagens cáusticas e egoístas cada uma à sua maneira particular, que se unem para desvendar o mistério por detrás de dois homicídios aparentemente sem relação um com o outro.

Ainda nos anos ’90, Black acabara de vender o guião de A Profissional (1996) por 4 milhões de dólares, um negócio que lhe valeu uma data de inimigos em Hollywood. Por alguma razão — ahem, dor de cotovelo — o júri da Academia dos Oscars viria a recusar a entrada de Black por este não possuir “créditos cinemáticos suficientes”. Esta rejeição pelos seus pares atirou Black para uma espiral de falta de confiança em si próprio e de bloqueio criativo, um poço de insegurança que viria a durar quase 10 anos.

Depois chegou Kiss Kiss Bang Bang.

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A génese do filme veio da vontade de Black em escrever uma comédia romântica, à laia das do seu mentor James L. Brooks, mas o encanto dos mistérios hard-boiled e da ficção pulp nunca deixou de fascinar o guionista americano. Estes dois mundos encontram-se em Kiss Kiss Bang Bang, empurrando o criminoso-tornado-ator-tornado-detetive Harry Lockhart para os braços de Harmony, a sua paixão de adolescência que reencontra numa festa de deboche em Hollywood, a meio de um assassínio sinistro.

Kiss Kiss Bang Bang é violento, cómico, e com emoção suficiente para encher o coração de qualquer um. Porém, Black não se fica pela superfície do seu enredo prototipicamente noir, desconstruindo o género cinemático de cima abaixo com uma narração hilariante que quebra a quarta parede desde o início do filme, culminando numa última cena que não funcionaria em nenhum outro lado senão numa história de Shane Black.

A crítica a Hollywood, aos produtores, e à própria indústria do cinema é sentida ao longo de Kiss Kiss Bang Bang; sempre que Harry menciona Los Angeles, sentimos a frustração de Black, e o peso no estômago de todos os sapos que engoliu na década anterior ao lançamento do filme. Apesar disso, Black não deixa que a sua amargura devore a narrativa, pois é em Kiss Kiss Bang Bang que o guionista tornado realizador encontra o pináculo de todos os diferentes elementos que vinha a desenvolver desde Arma Mortífera (1987).

O contexto natalício caracteriza o background quebrado dos nossos protagonistas, a dupla cómica de anti-heróis — que até então sempre roçara no lado hyper-masculino do espetro do heroísmo, por vezes caindo para o lado da misoginia inconsciente — torna-se numa reflexão genial acerca da heterossexualidade intrínseca ao arquétipo de herói dos filmes de Hollywood, e a violência contra as mulheres, tão presente nos anteriores filmes de Black, é aqui redimida pela ferocidade honesta de Harmony, talvez a personagem feminina mais completa que Black criara até então.

É perfeitamente possível deitar no sofá e digerir Kiss Kiss Bang Bang como um espetacular híbrido de ação/crime/comédia/romance, e ficar por aí. Mas também é possível absorver o filme como uma meditação da representação de géneros no cinema, como um confronto dos estereótipos sexuais que encontramos no meio audiovisual (felizmente, 11 anos depois, encontramos uma maior diversidade não só no grande ecrã como na televisão), ou como uma desconstrução do filme noir para a geração do novo milénio.

Kiss Kiss Bang Bang é genial. Pouco visto, pouco apreciado. Mas genial.

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