A importância da Def Jux para o rap alternativo de Nova York
[Texto originalmente publicado no Raplogia, em 29 de janeiro de 2020]
Nos anos 2000, uma nova leva de rappers surgiu em todos os cantos de Nova York. Descontentes com os rumos que o rap estava tomando — cada vez mais comercial — , esses artistas começaram a se reunir pelas ruas do Brooklyn para fazer freestyle, que ocorria em batalhas épicas ao som de instrumentais cada vez mais aprimorados. Falar dessa geração e não falar da gravadora Def Jux é um sacrilégio. E falar da Def Jux sem falar de El-P é ainda pior. Portanto, é necessário contar a história de Jaime Meline, o lendário El-P.
O início e as rodas de freestyle no Brooklyn
Filho de músico de jazz, El-P é um dos maiores responsáveis pela evolução do rap alternativo nos anos 2000. Foram durante essas batalhas de freestyle no Brooklyn que ele que se tornou cada vez mais conhecido.
Extremamente avesso ao modelo de ensino, foi expulso da escola diversas vezes, até que cedeu à arte dos beats e das rimas. Ainda não haviam se dado conta, mas em 1997, El-P já havia produzido um clássico absoluto do que viria ser chamado de Indie Hip-hop: Funcrusher Plus.
Considerado um marco histórico do hip-hop independente, o álbum nasceu da junção de El-P, Bigg Jus e Mr. Len, que em 1992 formaram o grupo Company Flow. O grupo nadou contra a corrente do rap mainstream — produto das novas relações entre artistas, gravadoras e mercado — , trazendo um disco que mais se parece com uma roda de freestyle gravada em estúdio. 22 anos depois, podemos afirmar que Funchusher Plus é um dos grandes clássicos do rap.
Mas foi no ano 2000 que EL-P deu o grande passo na sua jornada: A fundação da Def Jux. Junto de Amaechi Uzoigwe, o artista novaiorquino criou o selo com o desejo de manter viva a chama dos seus primeiros trabalhos, tendo um lugar onde pudesse fazer seus raps como queria, cheios de referências a Philip K Dick e produções futuristas. Logo no ano seguintee, 20001, a gravadora foi processada pela Def Jam¹, que alegava ser um problema a similaridade dos nomes de ambos os selos. Mas foi também em 2001 que a Def Jux lançou a sua primeira obra-prima.
A veia fria da América
The Cold Vein foi o primeiro disco do grupo Cannibal Ox², composto por Vast Aire e Vordul Mega. Considerado um dos melhores discos de rap dos anos 2000³, é, certamente, o melhor trabalho já produzido pela gravadora. El-P foi não somente o produtor executivo do álbum, como o dono da produção sonora, que passeia por uma Nova York fria e pós apocalíptica. A sorte estava lançada e a Def Jux fincava seus pés como um dos nomes mais promissores da geração dos anos 2000. A importância do disco é tão grande que ele é considerado, ao lado de Madvillainy, como os dois maiores álbuns do rap alternativo de todos os tempos.
Apesar da grande repercussão do disco, o grupo não conseguiu manter a mesma consistência. Relatos de que Vordul Mega chegou a morar na rua depois do lançamento do álbum e a saída do grupo da Def Jux colocaram o Cannibal OX no limbo, mas o nome já estava gravado na história do underground.
Entender a importância desse disco é uma forma de entender que o rap não precisa ser linear como a maioria dos amantes acreditam. As influências e referências não seguem uma linha reta, mas funcionam como uma nuvem interligada de músicas, rimas, ideais e contextos. Por isso a estranheza em não ouvir samples de James Brown, Roy Ayers e os deuses da Blue Note — visto que, durante os anos 90, o jazz considerado “a mãe do hip-hop”⁴ — , em The Cold Vein, são as guitarras arranhadas do rock progressivo e os sintetizadores mal equalizados dão o tom dessa produção, mais parecida com uma versão sonora de Blade Runner⁵.
Um ano depois do sucesso estrondoso de The Cold Vein, a Def Jux apostou em mais dois trabalhos majestosos: Day Light EP e Deadringer, de Aesop Rock e RJD2, respectivamente.
Deadringer tem uma produção menos introspectiva e futurista do que a estética “oficial” da gravadora, mas não perde a essência de ser um contra-fluxo artístico. Por outro lado, Aesop Rock exibiu toda a sua genialidade em Day Light EP, com tudo de mais autêntico que o artista possui: sonoridade, métrica e o uso abusivo, no melhor sentido, de palavras jamais rimadas. Não pra menos, Aesop foi considerado o rapper com o vocabulário mais amplo da história⁶, superando até mesmo Shakespeare. Aesop foi, com certeza, a grande estrela da Def Jux, e Day Light EP é apenas mais uma amostra disso. Antes do EP clássico, Aesop ainda havia lançado Labor Days, um disco que trata da classe trabalhadora e suas batalhas diárias.
Ainda sobre Labor Days, é importante dizer que o disco é considerado o maior clássico do Aesop Rock, e que a recepção do trabalho foi quase unânime em considerá-lo uma obra prima. Sites como allmusic, HipHopDX.com , RapReviews.com e Pitchfork atribuíram notas acima de 8 para o álbum — em alguns casos, atingindo a nota máxima de avaliação. E esse foi somente o terceiro trabalho do MC.
O rap contra a indústria
Dando um pulo na história, 2005 foi o ano em que 50 Cent já havia lançado dois clássicos do rap: Get Rich or Die Triyn e The Massacre, e era o rapper a ser batido tanto no jogo do rap como na indústria. Enquanto isso, Mobb Deep chegava ao nível mais baixo de sua carreira com Blood Money, e The Shinning — clássico do lendário J DIlla — era lançado 6 meses apósa morte do produtor. Correndo por fora, a Def Jux lançou Hell’s Winter, do rapper Cage.
Esse álbum fez um sucesso tão grande que foi considerado como um dos melhores de 2005⁷, algo incomum para um trabalho feito por uma artista e uma gravadora percencente da cena underground. Além disso, Cage trouxe uma visão completamente pessoal sobre sua vida, infância e visões de vida, como um “inverno frio”. O disco também esteve em listas importantes de lançamentos e reviews. E, mais uma vez, El-P comandou as MPC ‘s. O resultado foi uma obra lírica impecável.
Mr. Lif, outro artista da Def Jux, e conhecido como um rapper político, lançou, em 2006, Mo’ Mega, seu segundo álbum de estúdio.
O disco chegou à 27ª posição nas paradas da Billboard⁸, número bastante expressivo para um selo que era odiado pelos rappers “puristas”. Vários sites especializados deram boas notas ao álbum, colocando no alto o seu tom político e sua produção, também assinada por El-P. As faixas são um misto de boom bap fora da curva com basslines sujas, o que foi tornando, ao longo do tempo, a marca registrada da Definitive Jux.
É fácil dizer que o disco foi bem recebido dentro de um espaço seguro da cultura, onde artistas como Mos Def, Talib Kweli, Aesop Rock e outros rappers tentavam trazer de volta o espírito independente e livre do rap. Espirito esse renegado por uma indústria cada vez mais milionária, que muitas vezes, lidavam apenas com artistas que pudessem encher cada vez mais os cofres das grandes gravadoras.
Em 2008, um ano importante para o rap, dentro de uma das décadas mais promissoras do estilo, o rapper Del the Funky Homosapien se juntou à gravadora de El-P para lançar o seu quinto disco de estúdio, Eleventh Hour. Diferente dos álbuns anteriores lançados pela Def Jux, “Eleventh” foi totalmente produzido pelo próprio Del the Funky, o que mostra a liberdade criativa que os artistas sempre tiveram na gravadora, fugindo da necessidade de criar discos voltados para a indústria.
Esse álbum, apesar de seguir uma linha muito bem definida pele selo, segue uma estética que trás devolta o Funky dos anos 70. A maioria dos jornalistas da época elogiaram muito o trabalho, dando notas acima de 7 para o disco. O mesmo ficou na posição 122 da Billboard 200⁹, vendendo 6 mil cópias na primeira semana. Um número baixo, mas é sempre importante lembrar que se trata de uma gravadora voltada inteiramente ao underground e a criação livre de seus artistas. Os números tinham uma importância secundária e a lírica era o carro-chefe.
O fim da Def Jux, não do underground
Após todos esses anos de lançamentos, inovações e fortalecimento da cultura, a Def Jux anunciou, em 2010, um hiato — que, na verdade, se tornou o fim da gravadora. Durante uma entrevista para o site Ambrosia For Heads¹⁰, El´-P afirmou que, “a Def Jux se tornou uma bolha da qual não mais o representava”. Após isso, o rapper e produtor anunciou que deixaria o cargo de diretor artístico do selo. Mas, antes disso, a Def Jux deixou um último disco nas ruas, para selar o legado que construiu.
Em agosto de 2010 foi lançado King of Hearts, o disco póstumo de Camu Tao, que havia falecido no mesmo ano, em decorrência de um câncer de pulmão. A morte do artista foi muito sentida por todos os artistas do selo, e seu lançamento foi uma forma de homenagear Camu Tao.
El-P homenageou o amigo Camu Tao, em seu álbum Cancer 4 Cure, de 2012. Anos mais tarde, ele indiretamente retornaria ao tema em seu verso na faixa Thursday in the Danger Room, no álbum Run the Jewels 3, em parceria com Killer Mike.
Aesop Rock, em seu álbum The Impossible Kid, de 2016, também homenageou Camu Tao, refletindo sobre como a morte do amigo o levou à um estado de paralisia emocional de 8 anos, e a uma tendência crescente de isolamento social:
Este 25 de maio marca 9 anos desde a morte do meu amigo Camu Tao, um evento que serve como uma âncora emocional e narrativa na música e na minha vida. Eu queria refletir sobre as coisas que mudaram desde então e tentar conectar alguns eventos que eu não percebi estarem potencialmente relacionados.
O anti-capitalismo no capitalismo monopolista
Resolvi fugir da ordem cronológica que segui durante o texto, devido a importância e beleza Fantastic Damage, talvez o maior clássico de El-P e um dos discos mais atemporais da Def Jux.
Assim como The Cold Vein, Fantastic Damage é uma obra pós-apocalíptica, baseada nas experiências pessoais de El-P, e fortemente influenciado pelos atentados de 11 de setembro¹¹, nos Estados Unidos. El-P produziu o disco todo e compôs todas as letras. O que se vê nessa obra é algo quase inexistente no rap até então.
O álbum, como El-P gosta de explicar, foi produzido num teclado de amostragem Ensoniq EPS 16+, 2 mesas giratórias Technic 1200, 1 mesa de mixagem Vestax 07, 1 mixer Korg Chaoss Pad, 2 agulhas Shure, 1 Oberheim OB12, 1 órgão elétrico Magnus e o DAW Pro Tools Digi 001 System Set. Essa foi a fórmula — junto de sua mente forrada de livros de ficção científica e samples de rock progressivo — , para criar uma atmosfera medonha, futurista, suja e com tons de devastação. El-P já havia feito isso em outros discos, mas a importância de Fantastic Damage se dá resumindo em uma linha: “My name is El-P, i produced and i rap too”. Mais do que se provar como um genial produtor, E-P se provou como um rapper de altíssima qualidade, formado nos subúrbios de Nova York e nas rodas de rima do Brooklyn.
O disco é aclamado de forma espiritual pelos grandes críticos de música. A pitchfork, um dos maiores sites especializados em música, deu uma nota 8,9 para o álbum¹², dissecando a obra de forma completa e com elogios sobre todos os processos do disco:
“Enquanto os hinos anticapitalistas sempre foram sua especialidade, as maiores realizações de El-P neste álbum são suas novas habilidades líricas, ao mesmo tempo emocionalmente ressonantes, conceitualmente criativas e consistentes.”
Legado
Com o fim da Def Jux, muitos artistas seguiram carreiras solo, como Aesop Rock, Vast Aire e o próprio El-P, em seu projeto Run the Jewels, junto de Killer Mike. Outros dos ex-integrantes do selo ficaram pelo caminho, como o próprio Vordul Mega. Fato é que, para sempre, a Def Jux será lembrada como uma das maiores gravadoras que o rap já teve, talvez comparada apenas pela Stones Throw¹³, em questões de estética, influência e a forma como artistas envolvidos eram vistos e livres para fazerem música.
O material do selo é enorme e impecável. Então, mesmo que não possamos ouvir novos lançamentos, a busca por essa época do rap é importante para entendermos a evolução do gênero e glorificar o trabalho desses caras que bateram de frente com a indústria — e venceram.
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Notas
[1] Def Jam gravadora norte-americana de de rap e R&B, por Russell Simmons e possuída pela Universal Music Group.É conhecida por revelar cantores do hip hop moderno, como Snoop Dogg, Ludacris, Ice-T e Chris Judge, e cantores como Rihanna, Ne-Yo e Kanye West.
[2] Cannibal Ox foi uma dupla de rap norte-americana, do bairro do Harlem, Nova York. Era composta por Vast Aire e Vordul Mega.
[3] Ver “Highest Rated Hip Hop Albums of 2001”
[4] Ver “Jazz is the mother of hip-hop”
[5] Blade Runner é um filme de ficção científica neo-noir honcongo-estadunidense de 1982, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young e Edward James Olmos. O roteiro, escrito por Hampton Fancher e David Peoples, é vagamente baseado no romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick.
[6] Ver “Aesop Rock: the rapper with a wider vocabulary than Shakespeare”
[7] Ver Top 40 Hip Hop Albums 2005
[8] Ver “Mr Lif Chart History (Independent Albums)”
[9] Ver “Hip Hop Album Sales: The Week Ending 3/16/08”
[10] Ver “El-P Explains How Def Jux Turned Into A Bubble That Didn’t Represent Him”
[11] Ver “The Corrections: El-P’s Fantastic Damage”
[12] Ver “Fantastic Damage: Review”
[13] Stones Throw Records é uma gravadora independente norte-americana com sede em Los Angeles, Califórnia. Sob a direção do fundador e DJ de renome mundial Peanut Butter Wolf, tem sido considerada como um dos principais nomes do círculo de hip-hop underground no mundo.