As veias abertas da Bolívia : entre Evo, Jeanine, muros e a luta de um povo.

Marcola
Kòifé | por Marcola
8 min readOct 14, 2020

Desembarquei no Aeroporto Internacional de El Alto num dia qualquer de setembro de 2019. Lá fora estava uns 8 graus, o céu nublado, muita chuva e uma vontade absurda de fumar um cigarro. Foram quase 4 horas dentro de um avião apertado, mas suficiente para realizar meu sonho de conhecer outro país que não o Brasil — e a primeira vez que sentava num objeto voador como aquele.

Apesar de todos os meus compromissos — iria estrear uma exposição em La Paz naquela mesma semana — meu grande desejo era conhecer de perto o país de Evo Morales, onde o Socialismo do Século XXI ganhou ainda mais fôlego, numa guinada à esquerda em que a América Latina se envolveu no final da década de 90 e início dos anos 2000. Evo foi o primeiro presidente indígena da história da Bolívia, país onde 55% da sua população é ameríndia, mas que sempre foi governada pela elite branca, representando 15% da população do país. Evo foi uma força guiada pelo povo original daquele país, que sofria com uma das maiores taxas de pobreza de toda a América Latina.

Do aeroporto, tomei uma van que iria me conduzir até o hotel, no centro de La Paz. Eram vans simples, como as que predominavam em São Paulo durante os anos 90 — com a exceção de que vans bolivianas eram reguladas pelo estado. Prestei muita atenção em tudo que eu podia enxergar da janela para fora, como se estivesse conhecendo a rua pela primeira vez. Não era uma questão de visitar um país “diferente”, mas, sim, a magia de se conhecer outras fronteiras, algo raro para pessoas periféricas.

Após um descanso merecido, acordei bem cedo no outro dia para conhecer a cidade e entender, mesmo que de forma rápida, suas dinâmicas. As ruas eram tomadas pelas Cholitas, trabalhadoras tradicionais do país que vendem suas comidas, apetrechos, ervas para banho e tudo o mais que pudesse imaginar.

As cholitas não gostam de ser fotografadas — existem até relatos de agressão a fotógrafos — então mantive minha câmera guardada, em respeito, e segui meu caminho, conhecendo aquelas pessoas.

Era comum ver pela cidade diversas mensagens de apoio à Evo Morales — e algumas poucas de apoio à outros candidatos. A aprovação de presidente era alta, e as mudanças que trouxe ao país — ainda que com políticas questionáveis — trouxeram dignidade e condições melhores para todos.

Lembremos que era setembro de 2019, e faltavam menos de dois meses para as eleições que iriam reeleger Evo, mas que, numa guinada reacionária, colocou o país sob um golpe de estado que derrubou o presidente, e abriu caminho para que Jeanine Áñe — assumidamente racista — tomasse o poder.

Durante as andanças, decidi visitar um sebo, para adquirir alguns livros sobre a fotografia boliviana, bem como títulos sobre o socialismo, em especial à figura de Che Guevara, morto na Bolívia em 1967. Encontrei numa dessas pequenas bancas uma cópia de “Ñacahuasu — La guerrilla del Che en Bolivia”, alguns livros sobre a fotografia da cidade, entre outros títulos de meu interesse. Nessa banca, fui atendido pelo senhor Issac, que com sua simpatia me mostrou alguns dos livros que possuia. Foi ele o primeiro boliviano que conversei mais profundamente, devido a timidez e a limitação com o idioma.

Foi nessa conversa que tive um parorama sobre a situação boliviana, antes e depois de Evo Morales. Defensor do presidente, me contou sobre as melhorias que seu povo passou, mas sem perder de vista a completa emancipação da classe trabalhadora, me presenteou com uma cópia de “As veias abertas da América Latina”, no idioma original. Segundo ele, o livro seria capaz de me abrir os olhos ainda mais sobre a história da América Latina sob a ótica do imperialismo norteamericano. Emocionado, guardei o presente, o agradeci diversas vezes, retratei-o e segui.

E como quem abre as veias da América Latina, fui desbravando por meio dos muros e das figuras da cidade questões políticas tão presentes no país. Em muitos lugares da cidade, foi possível ver um grande apoio ao boliviarianosmo, aos cubanos e demais povos latino-americanos. Haviam, também, estátuas em homenagem a Che Guevara e Simon Bolivar, sempre lembrados pelos povos latino-americanos como os grandes libertadores do continente.

Numa das avenidas da cidade, enquanto procurava uma loja para comprar um chip 4G, avistei uma quantidade grande de cidadãos aglomerados. Ao chegar mais próximo, foi possível ver uma manifestação do Sindicado Casegual — Sindicato dos Trabalhadores do Fundo Nacional de Saúde. O protesto foi pacífico e a policia boliviana apenas observava, o que me chamou atenção de primeira, visto que no Brasil a polícia não permite que o livre direito de manifestação seja cumprido. Mas nem isso foi capaz de me trazer algum tipo de empatia com relação àqueles homens armados, cheios de escudos e proteções. Não era possível entender as reinvindicações dos trabalhadores, então fiquei apenas observando por alguns minutos aquele ato. Foi de certa emocionante ver aquelas pessoas — debaixo de chuva — protestando seus direitos como trabalhadores.

No tempo em que lá fiquei, pude entender algumas dinâmicas, e um pouco do meu otimismo sobre o governo foi desfeito. Ora, como socialista, é meu dever defender a independência dos povos e sua auto-determinação, assim como as experiências anti-imperialistas em toda a Améria Latina. Outro dever, ainda mais importante, é o de sempre buscar a autonomia dos trabalhadores, a tomada do poder pelo proletariado e não perder de vista o socialismo real.

Pesquisando sobre o sindicato no Google, encontrei algumas informações sobre as greves conduzidas pelos trabalhadores no mês de setembro de 2019. Numa delas, um traalhador pede a renúncia do gerente do CNS, Juan Carlos Meneses.

“Pedimos a destituição do gestor por se tratar de uma pessoa que não tem capacidade para administrar uma entidade do porte do Fundo Nacional”

Entrevistas em entrevista para a Rede Unitel

Dias depois dos protestos, fui de teleférico até a cidade de El Alto, região mais alta da Bolívia, quase 4200 metros acima do nível do mar. O ar era seco e em pouca quantidade. Fumar era impossível, caminhar em alta velocidade era ainda pior. Subindo algumas ruas da cidade, fui presenciando alguns lugares com uma aparência mais pobre. Não acho que eram favelas, não como conhecemos aqui, mas eram lugares mais pobres. As ruas estavam vazias pois, apesar do sol forte, a temperatura era muito baixa. Numa dessas ladeiras, vi algumas mensagens de ódio contra indígenas, em forma de adesivos e pixações. A questão racial num país de maioria indígena mas colonizado por brancos é discussão recorrente em todos os países da América Latina, inclusive no Brasil. A marca da colonização é o ódio contra povos originais, ainda que donos de todas essas terras. O embranquecimento das populações da América do Sul trás, para racistas e xenófobos, o desejo de fazer parte dos povos brancos, europeus, aqueles que mataram milhões de seus ancestrais.

Foi um pouco conturbador, mas nada que fosse novo e dificil de se entender. Em contraponto, haviam, também, imagens onde podia-se ler “Estão nos matando”. Quem estava e ainda está matando os povos indigenas? Porque isso ocorria naquele governo? Porque esse tipo de mensagem podia ser visível? Muitas dúvidas na mente, mas, denovo, nada novo.

No topo da rua talvez o lugar mais alto que já estive na minha vida, e de onde não era possível ver nada acima da linha do horizonte, tive uma espécie de frenesi. Eu nunca tinha visto o mundo de um lugar tão alto. Dali era possível ver o Estádio Hernando Siles, como era possível ver um céu limpo e azul, casas, pessoas, e uma vastidão de mundo bem abaixo dos meus olhos. Haviam alguns casais de turista, outras pessoas, sozinhas, observando tudo aquilo debruçado nas grades. Não havia muito o que fotografar, mas fiz alguns registros para nunca esquecer daquela sensação.

Andei por aquele pequeno espaço, procurando mais mensagens, ou outros assuntos que pudessem ser fotografados. Observei uma pessoa passando, descendo uma das vielas que faziam o entorno daquele espaço. Foi só nesse momento que connsegui enxergar uma mensagem que estava num muro logo a minha frente, que, na composição certa, conta de forma breve muito do que aquela população passa nas mãos do estado, não só boliviana como de todo o mundo.

Desci de volta até a estação de teleférico e segui para La Paz novamente, viagem que durou, no máximo, 15 minutos. Dali 3 dias seria minha exposição, e estava ansioso pelo que aconterecia, qual seria a recepção dos meus companheiros para comigo e com as obras que eu apresentaria.

A exposição chegou, e, ao meu ver, foi melhor do que esperava. Tive muitos elogios as obras, e pude acompanhar de perto da reação das pessoas quando viam as minhas fotos. Tivemos espaço para falarmos sobre os trabalhos e o porque era importante estar ali. Neste dia, um jovem fotógrafo boliviano, de origem muito humilde, venceu o concurso de 2019, com uma série de fotografias sobre os povos originais do país. Além de mim, haviam outros expositores, todos latino-amerianos. Haviam chinelos, venezuelanos, argentinos, e todos commpartilhavamos da experiência de se falar e viver uma fotogarfia decolonial. Cada um ali tentou mostrar uma fração do seu país, da realidade em que viviam, e de como eles enxerngavam as questões sociais relacionadas as suas origens.

Após a exposição, fomos todos jantar. Enquanto aguardavamos uma van, conversamos sobre as bebidas alcoolicas que haviam no Brasil. Expliquei que bebiamos muita cerveja, mas que nas camadas mais pobres, gostavamos de algumas misturas mais baratas. Ensinei a todos ali como se fazer um bombeirinho — mistura de limão, velho barreiro e groselha — deixando os bolivianos e chilenos malucos com o drink de favela que tomo aqui no Brasil.

A van demorou a chegar, então retirei a câmera da minha bolsa para fotografar algumas coisas. Um dos ali presentes me alertou de que poderia er perigoso usar a câmera naquele lugar, no que um dos presentes respondeu: “Ele é brasileiro, você acha que ele tem medo de ser roubado?”. Sorri e concordei, afinal, construi a série “Paraísos artificiais” durante as madrugadas de São Paulo, o que me deixou cascudo para algumas coisas.

A van chegou, e fomos ao nosso jantar. A minha missão tava cumprida, a do povo boliviano há de se cumprir.

Mais algumas imagens da viagem.

--

--

Marcola
Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.