“Enta da Stage” e o renascimento do hip-hop em Nova York.

Marcola
Kòifé | por Marcola
6 min readOct 25, 2020

A história da música, em muitos aspectos, é contada pelos números, sejam eles de vendas, views ou discussões. Lendas são criadas pelos algoritmos do Spotify ou, como se fazia antigamente, pela quantidade de discos vendidos. Mas é só quando tiramos esse véu que tenta, de todas as formas, cobrir o rap, que conseguimos entender a verdadeira história dessa música que mudou o mundo.

Black Moon. Foto: Chi Modu

No dia 19 de outubro de 1993, nas ruas, mentes e corações do Brooklyn, o disco “Enta da Stage” era lançado.

A partir da junção de DJ Evil e 5ft, na Bushwick High School — e que, posteriormente, tiveram seus caminhos cruzados pelo ex-dançarino Buckshot — nascia o Black Moon. Em 1992, o grupo lançou o single “Who Got the Props?”, que, logo de cara, assumiu a 86ª posição da Billboard Hot 100. Logo na sequência do single, o grupo assinou com a gravadora independente Nervous Records, que, até então, era especializada em house music, sendo Black Moon o primeiro grupo de hip-hop a assinar com o selo. Foi o pontapé inicial para que “Enta da Stage” pudesse ser concebido.

Mas, para isso, era necessário um produtor bom, e que pudesse transmitir, por meio daquelas máquinas, a mentalidade do trio. A solução foi uma dupla: Da Beatminerz. O irmão de DJ Evil, Mr. Walt, se juntou ao então trio, e a dupla conduziu toda a musicalidade do grupo, que ficaria conhecida na história do rap.

Após assinarem com a Nervous, Buckshot formou uma dupla com Drew Friedman — funcionário da Nervous — que mais tarde seria conhecido como Dru Ha . Juntos, formaram uma empresa de gestão chamada “Duck Down Management”, que seria a responsável por supervisionar o lançamento de “Enta da Stage”, trabalhando como co-produtores executivos do álbum. No final de 1993, após a conclusão do disco na D&D Studios, e um longo período de espera, “Enta da Stage” estava oficialmente nas ruas, esquinas, carros e rádios de Nova York.

O lançamento, comercialmente falando, foi modesto. Sem o status de “disco de ouro”, certificado pela RIAA, atingiu um patamar menor do que outros discos lendários que surgiram na mesma época, vendendo cerca de 350 mil cópias. Mas, como dito no início deste texto, para entender a verdadeira história do rap, precisamos deixar os números um pouco de lado. E é aqui que começa a nossa jornada pelas entranhas de “Enta da Stage”.

A ascensão da West Coast e o declínio de Nova York

Ao final dos anos 80, com o rap já bem estabelecido, a costa oeste dos Estados Unidos viu surgir um estilo de rap diferente do que havia sido criado em Nova York: o G-funk de Los Angeles, que tomou a coroa de Nova York como a cidade do rap nos Estados Unidos. Foi o início da era de ouro da Califórnia, puxada pelo NWA, seguido de Dr. Dre, Snoop Dogg e, alguns anos depois, Tupac, considerado por muitos como o maior rapper de todos os tempos. Discos como “Doggystyle” e “The Chronic” se tornaram clássicos na história do rap, e coroaram o trabalho de toda uma geração de artistas de Los Angeles.

Logo em 1991, o rapper Tim Dog lançou a faixa “Fuck Compton”, diss direcionada para o NWA, e que é considerada como a chama que acendeu a briga entre a costa leste e oeste dos Estados Unidos. A diss, acredito eu, foi motivada por esse ofuscamento que o rap de Nova York sofreu, em decorrência do sucesso do G-funk da costa oeste. Alguns atritos deram outra dimensão para a briga, como o lançamento do clipe “New York, New York” — em que o grupo The Dogg Pound “pisa” em prédios da cidade de Nova York.

Snoop Dogg e Tupac, 1996.

Outro episódio marcante foi o clima de guerra na premiação The Source 1995, em que ambos os lados se provocaram durante toda o evento. O ápice do conflito foram as mortes de Tupac e Biggie, em 1996 e 1997, respectivamente, que ainda hoje são atribuídas à essa rivalidade.

Mas voltaremos para Nova York.

O renascimento do rap na ‘Meca’ do hip-hop.

Após os lançamentos de grande parte dos clássicos da West Coast, Nova York se viu no dilema de como recuperar a coroa do rap americano. Já estávamos a Era de ouro do hip-hop, e, apesar dos lançamentos de A Tribe Called Quest e De La Soul, a cidade de Nova York ainda não havia, de fato, encontrado a sua identidade. Foi durante este processo quase revolucionário que surgiram obras como “Illmatic”, “Ready to Die”, “The Infamous”, “36 Chambers”, “Only Built 4 Cuban Linx”, “Midnight Marauders”, e outras incontáveis obras-prima do rap. Essa mudança brusca na sonoridade da cidade foi alavancada por produtores como Q-Tip, DJ Premier, Pete Rock, Large Professor, e claro, Da Beatminerz, dupla que concebeu a produção de “Enta da Stage”, criando uma nova atmosfera criativa para a East Coast.

“Enta da Stage” e Black Moon na ponta de lança em Nova York

Mesmo sendo contemporâneos das obras anteriormente citadas, o álbum “Enta da Stage” é creditado como o primeiro ato de renovação em Nova York. Vários são os motivos que fazem deste disco um dos mais importantes para o renascimento do rap em Nova York. Em primeiro lugar, é necessário entendermos o contexto em que a obra foi lançada, como já foi citado em referência as brigas entre as costas leste e oeste, e a ascensão do G-funk. O disco do Black Moon, carregado de uma atmosfera sinistra, tinha, ao mesmo tempo, uma sonoridade mais bem trabalhada no processo de criação, samples e na forma de contar história. A dupla Da Beatminerz trouxe grandes contribuições para a música nova iorquina, com seu estilo sombrio e arranjado. Algumas faixas do disco logo se tornaram lendárias, como “”I Got Cha Opin”, “How many Mc’s” e “Buck em Down”. O uso dos baixos algo parecido com o que A Tribe Called Quest vinha fazendo, ganhou um estilo próprio, onde o instrumento se fazia como um elemento importante da bateria 4x4. Os samples de jazz tinham distorções que os tornavam sombrios, junto do flow de Buckshot, afiado e mortal. Estes componentes se tornaram quase que como uma obrigação em todos os discos que viriam posteriormente, sendo possível encontra-los nos álbuns de estreia do Wu Tang Clan, Nas e Mobb Deep.

Ele deu o tom para grande parte do hip hop seguinte. Os pensamentos suicidas de Biggie Smalls e a violência de Noreaga têm suas raízes aqui. O álbum marcou uma virada no hip hop.

(AllMusic)

O disco foi o percussor da chamada “Segunda Era de Ouro do hip-hop”, termo cunhado por Tony Green em seu livro “Classic Material”. Isso fica evidente na sua influência já citada em alguns dos clássicos lançados durante os anos 90. A dupla Da Beatminerz, após o sucesso na produção de “Enta da Stage”, foi convocada para conduzir as MPC’s em outros lendários discos do underground, como “Nocturnal” e “Dah Shinin”, ajudando a formar o super coletivo Boot Camp Clik. Além disso, produziram faixas e discos para DIlated People, Eminem, KRS-One, M.O.P, BlackStar, Flipmode Squad e outros grandes artistas de Nova York.

Buckshot se tornou uma lenda na cidade, um MC de primeiro escalão, se destacando como os grandes nomes de sua geração, junto de rappers como Nas Jay-Z, Noreaga, Prodigy, Ghostface Killah e outros.

Em 1993, Cheo Coker, jornalista da The Source afirmou que:

Enta da Stage é uma estreia deslumbrante que não desilude nem um pouco. O único termo que descreve adequadamente a combinação suave de ritmos de jazz-funky e vocais ferozes presentes no disco é ‘loucura elegante’. É bom ver que ainda existem pontos brilhantes de originalidade a serem encontrados em um gênero que está se tornando cada vez mais invadido por falsos rappers que querem ganhar dinheiro rápido.

Em 1998, a mesma The Source elegeu o disco como um dos 100 melhores da história.

Após o final da “Segunda Era de Ouro”, suegiram grupos como Company Flow, produtores como El-P, e já nos anos 2000, podemos observar o renascimento do rap underground nas rodas de rima do Brooklyn. Nada disso seria possível sem que Black Moon e seu clássico disco de estreia existisse. Apesar de ser colocado como um “clássico do underground” — já que seu alcance na grande mídia foi pouco — “Enta da Stage” não pode ser esquecido quando contarmos a história do rap, principalmente o de Nova York. É um grande exemplo de que, muitas vezes, o dinheiro e o mainstream não podem superar os grandes atores da historia oral do rap.

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Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.