Quando os gangsters aprenderam a dançar com The Chronic

Marcola
Kòifé | por Marcola
7 min readApr 8, 2021

Na virada dos anos 80, Los Angeles passou por uma profunda transformação. A cidade litorânea, rodeada de mar, sol e música eletrônica parecia um oásis dentro da Califórnia — não apenas pelas características geográficas, mas também culturais e sociais. Esse ambiente de aparente calma contrastava com uma realidade violenta: no artigo “History of street gangs in the United States”, James C. Howell e John P. Moore relatam que, das 20 cidades com população acima de 100 mil pessoas dentro da Califórnia, 19 delas tinham sérios problemas com gangues, que chegavam às centenas ou até mesmo milhares, e seus membros passavam de 100 mil.

As causas são conhecidas: enquanto as comunidades brancas usufruiam do paraíso natural de Los Angeles, a população negra e periférica era submetida a um regime de gueto, onde sofriam as mais diversas opressões, tanto policiais como sociais — tudo sob o aval de Ronald Reagan, então presidente dos Estados Unidos e um dos maiores genocidas do século 20.

Nessa época, música e crime, de certa forma, eram coisas separadas, e o rap ainda não havia avançado ao lado oeste do mapa. Dr. Dre, por exemplo, era um DJ de música eletrônica e parte do grupo World Class Wreckin’ Cru — formado também por DJ Yella. Posteriormente, ambos os DJs se juntaram à Eazy-E, Arabian Prince e Ice Cube para formar o “grupo mais perigoso do mundo”: N.W.A.

A costa leste tinha a ver com a pobreza nas ruas, e o governo. Na costa oeste a gente queria festas e mulheres. Isso bastava.

[Arabian prince, no documentário “Hip-hop Evolution”]

Tudo mudou quando Ice-T gravou “6’ N the Mornin”, inspirada na faixa “Park Side Killers” de 1985, composta Schoolly D. Segundo Ice-T, esse foi o primeiro gangsta rap gravado na história. Ainda que o termo não existisse, esse foi o marco fundador do gênero.

A cena de gangues não tinha sua própria música em Los Angeles. Isso se explica pelo fato de que, até certo ponto, as gangues se resumiam a assaltos e venda de maconha, práticas até então comuns nas comunidades marginalizadas. Não eram, ainda, uma “forma socal”, um agrupamento grande a ponto de comporem seus próprios traços culturais. A explosão do crack durante os anos 80 nos guetos negros dos Estados Unidos virou a vida desses lumpemproletariados de cabeça para baixo. Traficantes passaram a ganhar milhões de dólares em uma semana, muitos usuários passaram a condição de moradores de rua, numa dialética violenta em que a sintese é fruto de um projeto político de extermínio guiado pelo estado americano.

Com essa mudança, as gangues passaram a se armar cada vez mais, tanto para combater outras gangues, como para defender o seu produto de assaltantes.

Johnny, um veterano da gangue “El Sereno”. Foto por Joseph Rodriguez. California, 1995

O surgimento do N.W.A se tornou um marco para a história do rap, principalmente o de Los Angeles, que se colocou na linha de frente contra a opressão racial. N.W.A, assim como o Black Panther Party, chamava para a autodefesa, a sobrevivência “por qualquer meio necessário”. A opressão policial aumentou e o grupo passou a sofrer durar represálias, como num show em Detroit onde, após cantar “Fuck tha police”, os membros foram presos e a população local colocou a cidade em chamas.

Nessa época, Isaac Hayes, Earth, Wind & Fire, Parliament/Funkadelic e James Brown eram os grandes artistas da música negra. Porém, a costa oeste ainda sentia a influência do rap de Nova York em suas composições e batidas. Até então, não havia de fato uma sonoridade para Los Angeles. Mas foram com essas influências citadas que Dr. Dre, em 1992, mudaria para sempre a história da música.

Snoop Dogg, George Clinton e Busty Collins (Funkadelic) no palco. Lendário.

“The Chronic” não é apenas uma crônica, como o próprio nome sugere. É também uma cepa de maconha híbrida de alta potência, muito popular na Califórnia. Por isso da folha de maconha estampando a capa. Mas o principal é que “The Chronic” trouxe novamente, nas palavras de Ice Cube, o clima das festas de bairro que reinavam entre os negros, a diversão, a musicalidade funk e, principalmente, o orgulho. Se tornou um hino não apenas das gangues — que, com o lançamento, virão que também poderiam dançar ao som do rap — mas de toda uma comunidade abandonada pelo estado. Um rap para chamar de “nosso”.

Lançado em 15 de dezembro de 1992, é ainda hoje a grande obra-prima da carreira de Dr. Dre — e talvez a maior vitória da Califórnia — antes do boom no mainstream, o surgimento de 2 Pac, a guerra com a costa leste e outros tantos acontecimentos marcantes da história desse povo que nasceu em meio a praias, violência policial e George Clinton.

Morria ali a influência da costa leste, como também nasceu, nesse dia, o estilo musical que predominaria no rap durante boa parte dos anos 90 — até o surgimento de Black Moon, Nas, Wu Tang Clan e o retorno de Nova York ao trono do hip-hop.

A primeira coisa que chama atenção em “The Chronic” é a sua produção. Diferente da maioria esmagadora dos discos de rap, o álbum produzido por Dr. Dre tem pouquíssimos samples. Muitos dos refrões do disco foram reproduzidos de faixas famosas da música funk, como se pode ver em “Fuck Wit Dre Day” e “Let Me Ride”, inspirados na faixa “Atomic Dog” de George Clinton e “Swing Down, Sweet Chariot” do Parliament-Funkadelic, respectivamente. Além disso, a maioria dos instrumentos foram tocados, como teclados, baterias e sintetizadores. Foi a maneira que Dre encontrou de se aproximar ainda mais de James Brown e Funkadelic. Nascia ali o sub-gênero G-funk, ou Gangsta Funk.

Aliado ao ainda novato Snoop Dogg, que anos depois lançaria o clássico “Doggystyle”, Dre faria de “The Chronic” a sua estréia solo no rap. E o começo não poderia ser melhor: o disco está na 30º posição da lista de álbuns definitivos do “Rock and Roll Hall of Fame”, eleito o 137º melhor álbum de todos os tempos pela Rolling Stones, disco de ouro na Inglaterra e 4 vezes platina no Canadá e Estados Unidos. Além dos prêmios, algumas das faixas figuraram como trilha sonora do aclamado game “GTA: San Andreas”. Isso ainda é pouco diante da influência que o disco causou no rap, sendo o G-funk o subgênero mais influente na cena por mais de 7 anos. Lançado pela Death Row, a obra tornou a gravadora de Suge Knight o grande nome dos anos 90, trazendo dezenas de outros clássicos produzidos sob o gênero musical criado por Dre.

Isso se deve não só a produção única, a qual já mencionei. Diversos outros fatores tornam “The Chronic” gigante e lendário. Na transição entre as décadas de 70 e 90, Los Angeles viu a ascensão do tráfico de cocaína e crack, e a cidade que, até então, era o paraíso de sol, praias e música eletrônica, se tornou um lugar extremamente perigoso. Um dos reflexos dessa mudança foi a postura dos gangsters e da música da cidade. Enquanto o som eletrônico perdia espaço para o gangsta rap, as gangues passaram a ter sua voz ouvida por meio das rimas do N.W.A, Ice Cube e outros rappers. Mas foi em “The Chronic” que, ao fundar o Gangsta Funk, o panorama da música negra da Califórnia mudou completamente.

Snoop Dogg em clássica fotografia de Chi Modu. O número “187” significa “assassino” nas ruas de Los Angeles, alusão o código penal da cidade.

O disco foi mais do que um álbum sobre criminalidade. Ele uma celebração em meio a violência desenfreada, num bairrismo que dividiu a cidade entre Crips e Bloods. O álbum foi composto por muitas camadas, sendo o crime, o funk, a dança, as armas, os tiroteios e as garrafas de Fourty algumas delas. Não era como as letras e sonoridade de KRS-One, da “Bridge Wars” e da violência revolucionária de N.W.A. As batidas de Dre reviveram o que George Clinton, James Brown, The Bar-Kays e outros monstros da música funk fizeram. Não era como ouvir rap balançando a cabeça. “The Chronic” levou à outro nível o relato sombrio do dia a dia dos negros envolvidos na criminalidade e pobreza causada pelo capitalismo americano.

Uma das provas disso é o C-walk, dança criada entre os anos 70 e 80, em Compton, que ganhou vida com o surgimento do G-funk. A dança foi criada pela gangue Crips, e era usada para mostrar filiação, provocar os inimigos e, acima de tudo, celebrar. A dança se tornou tão importante que ganhouo mundo todo sob os pés de Snoop Dogg, Xzibit eIce Cube, registrada no DVD “The Up in Smoke Tour”, lançado no ano 2000.

Ice Cube e W.C dançam o “C-walk”, durante a turnê “The Up In Smoke Tour”.

Depois do boom que o disco causou em 1992, a Death Row e o G-funk alcançaram um sucesso poucas vezes visto no rap. Estamos falando de “Doggystyle”, “2001”, “Dogg Food” e “All Eyez On Me”, discos produzidos nos anos 90 pelas mãos de Dr. Dre e outros produtores que beberam da fonte do “funk gangster”, chegando em 2016 com o lançamento de “Still Brazy, pelo rapper YG, que foi uma revolução sonora do G-funk. Todos esses discos foram aclamados pela mídia, recebendo uma série de prêmios, mostrando que o rap sob as bases de Funkadelic ainda é relevante, importante e celebrado como um dos gêneros mais bem estabelecidos da história do hip-hop.

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Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.