Sobre drogas, genitálias e conservadorismo na arte

Marcola
Kòifé | por Marcola
5 min readNov 7, 2019

A fotografia deveria falar por si só, mas nem sempre é possível. Certos contextos precisam de algo que deixe tudo mais claro e óbvio. Eu, que tanto amo saber a história de tudo, me vi sendo colocado a prova de contar as histórias das minhas fotografias. Escolho essa por dois motivos distintos, que convergem em um tema principal, que será abordado durante esse escrito.

Carnaval de 2017. República, São Paulo

A arte como agente que expõe a realidade — ou pelo menos deveria

O carnaval de 2017 foi o primeiro em que fotografei. Aquelas fotos do Selva SP no centro de São Paulo deixavam a minha cabeça a ponto de ejetar do corpo. Eu queria ser igual aqueles caras que, anos mais tarde, se tornaram os meus amigos e meus apoiadores. E foi com esse espirito de mostrar o que ninguém quer ver que eu fui pra rua. Cabelo descolorido, uma pochete com documento e minha A6000, que me dava a liberdade de ser tão invisível quanto eu queria.

Acho, realmente, que existe essa coisa de estar no lugar certo e na hora certa. E, assim que eu desci na República, essa cena aconteceu. E eu estava ali, no local certo e na hora certa.

Eles não me viram, ou apenas me ignoraram, ou melhor, o momento era tão sublime que nada em volta deles importava. E a magia do carnaval e da rua, é essa: a de que você pode ser quem quiser, livre de olhares, julgamentos e câmeras. E eu fiz a minha parte. Cliquei, guardei a câmera, segui em frente atrás de uma bebida e de uma nova cena para registrar.

No momento eu não dei atenção a foto, e geralmente, quando estou na rua, no clima, eu não dou atenção ao resultado das imagens. Isso só acontece durante a ressaca do dia seguinte, quando eu abro meu cartão de memória afim de verificar se aquela ressaca avassaladora valeu a pena. Nesse dia valeu.

Assim que eu publiquei essa foto, meu instagram teve uma enxurrada de notificações. Não que eu seja alguém muito conhecido por lá. Não que eu ligue pra isso. Fato é que, dentre comentários como “foda!”, “caralho!”, e outros tipos de elogios que fazem parte da linguagem moderna, alguns carregavam um misto de nojo e aversão, como “chocante”, “ah, mano”, “o que é isso?”, dentre tantos outros. Acho que isso me trouxe, de certa forma, um misto de alegria e gratificação, eu queria ser como meus ídolos, lembram?

Bolívia 2019: Conservadorismo e a arte como retrato de quem somos

Antes de falar de 2019, é importante falar de 2018. “Paraísos artificiais” venceu um prêmio na Bolívia, o primeiro da minha vida, em solo estrangeiro. Foi uma loucura imaginar que isso tenha acontecido com uma série tão impactante, mas aconteceu. Já em 2019, tive a oportunidade de viajar para La Paz — minha primeira vez em um avião — para expor esse trabalho na condição de vencedor do prêmio de 2018. Tudo muito lindo, bebidas grátis, comidas grátis, portunhol rolando solto, gente rindo, gente com cara feia, gente que não entendia nada e gente admirada diante das fotos.

Mas eu sentia falta de algo, até porque eu fiz questão de acompanhar o processo de montagem da exposição, a sequência das imagens, pois, sem isso, o trabalho seria apenas um amontoado de quadros soltos.

Num dado momento, uma pessoa responsável pelo museu vem até mim e diz: "Hola Marco. Estoy a cargo del museo y me gustaría saber y se importa si no exponemos una foto específica? Es solo que recibiremos visitas de jóvenes de 15 años y no creemos que sea genial para ellos ver “.

Olho a minha volta, de forma rápida, e a visão que eu tinha de minha exposição era essa:

Isso tudo dura menos de 20 segundos, e a minha única resposta possível, tanto pelo momento quanto pelo péssimo domínio do espanhol foi: "Tudo bem!".

Importante deixar claro que a organização da exposição, a quem devo muito, foi contra essa decisão, e que em nada tiveram parte dessa situação. Mas algumas perguntas me rondaram na minha volta ao Brasil, 2 dias depois, e acredito que ainda não tenho uma resposta para o ocorrido.

Será que um pênis de borracha é tão mais impactante do que uma porção de fotos de drogas? Ou melhor, será mesmo que ambos são tão impactantes assim? Será uma questão homofóbica, conservadora? O que será que essas crianças terão de explicação quando verem aquelas 4 carreiras de cocaína esticadas sobre uma mesa? Como vão explicar os meus amigos posando pra câmera com um beck na boca? Porque, ao que parece, essas questões soam naturais, um pênis de borracha não merece ser explicado, merece ser escondido.

A fotografia atual é composta por uma porção enorme de gente fazendo as mesmas coisas sem alma, basta que você role o feed do instagram por meia hora e verá meninas nuas fumando, retratos com fumaça, pôr do sol no mesmo enquadramento de sempre, homens fumando maconha em cima do carro e tantas outras coisas que não dizem lá muita coisa, com todo respeito a quem faz esse tipo de trabalho.

A fotografia, antes de mais nada, é um registro de uma fração da história, e ela é, para mim, muito mais história do que arte. O que tem sido feito hoje vai ser visto pelas próximas gerações como um registro histórico do passado, e é nisso que acredito. O meu trabalho não tem objetivo de fazer apologia a nada, a intenção é gravar esse pedaço da história da minha vida, dos meus amigos e desconhecidos em um frame de 24 megapixels. E só.

Existe humanismo em todos esses aspectos citados, inclusive nos que estão atrás de seus "paraísos artificiais", e, enquanto essa for a realidade de muitos, lá estarei eu para partilhar desse instante único.

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Marcola
Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.