Uma analise materialista-dialética de “Roteiro para Aïnouz, Vol. 2”

Marcola
Kòifé | por Marcola
11 min readNov 30, 2021

Don L, um dos maiores rappers que temos hoje — mas que não vem de hoje — lançou essa semana o aguardado disco “Roteiro para Aïnouz, Vol. 2”. E, para desespero do público liberal e ancap do rap, além das minorias cada vez mais reacionárias e divisionistas, o “comunista que curte carros” trouxe nessa obra sua visão sobre o comunismo, seus líderes e suas experiências, e como o povo brasileiro pode se beneficiar da ciência imortal do proletariado. Armado das influências de Lenin, Ho Chi Minh e Mao Zedong, além de outros grandes revolucionários, Don L sintetizou a grande necessidade não só do Brasil mas de todos os povos do terceiro mundo: derrubar o capitalismo.

Esse texto não tem o objetivo de avaliar nem explicar o disco — o qual gostei muito — mas, sim, baseado no materialismo histórico e dialético, criados por Marx e Engels, situar algumas das questões que o rapper trouxe no disco em seus respectivos contextos históricos.

Interlúdio

A história, dizem, é contada pelos vencedores. Portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, americanos e outras nações contaram a história do mundo a seu modo, ou seja, um modo racista, classista e colonialista — o chamado “Eurocentrimo”, tão bem criticado pelo egipcio Samir Amin. De bárbaros a sujos, os povos de todo o mundo foram retratados das piores formas, tendo suas culturas e modos de vida massacrados e subjugados. Marx e Engels desenvolveram um método de análise da realidade e da história humana, que se baseando no modo de produção das sociedades e partindo do perssuposto de que “a história da humanidade, até aqui, é a história da luta de classes”. Marx e Engels, a partir do seu método, jogam luz sobre como infraestrutura (que corresponde a um dado nível de desenvolvimento das forças produtivas e à relações de produção da sociedade) específica dos modos de produção influenciam a superestrutura: as leis, a cultura e a ideologia. A dupla sintetizou muito bem essa idéia em seu clássico “A Ideologia Alemã”.

As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.

No Interlúdio de “RPA 2”, isso fica explícito com o testemunho de um pastor, que diz:

“Você tem que entender que, enquanto você não for capaz de contar a sua história, sua história vai virar uma piada na boca do diabo, sua história vai virar uma peça teatral, pro diabo apresentar e fazer você chorar.

No século 20, foram muitos os revolucionários, historiadores e teóricos que tentaram acabar com a piada na boca do diabo. Clóvis Moura, um dos maiores sociólogos de nossa história, destruiu a tese do “negro dócil”, trazendo luz às lutas dos povos indígenas, africanos e seus descendentes contra a escravidão. Partindo de uma análise marxista, Clóvis nos conta uma história de luta, resistência, tentativas de insurreição, e como esse processo foi o fator determinante para o fim da escravidão no Brasil — assim como o avanço do capitalismo na Inglaterra — mostrando que a Lei Áurea foi nada mais do que um documento, que tinha por função dar uma roupagem liberal aos fatos.

Clovis Moura.

Vila Rica

na trilha pra vila rica
​a tomar todo o ouro que eu preciso
​saquear engenhos no caminho
​matar os soldados do rei gringo

Clóvis Moura ainda se faz presente na faixa seguinte, “Vila Rica”. Don L fala sobre Canudos e os quilombos, sendo Palmares o mais expressivo. O autor conta em sua obra “Quilombos — Resistência ao Escravismo”, que os quilombos eram “a unidade básica de resistência negra e indígena”. Além dos quilombos, haviam outras formas de resistência à escravidão, como o assassinato dos senhores, o suicídio, o banditismo quilombola, o saque de fazendas, armas, ouro, mantimentos e as guerrilhas urbanas. Ainda sobre os quilombos, Clóvis afirma que estes se organizavam de forma comunitária, livre do sistema de classe escravista. Se via ali uma forma social distinta da dominante, onde negros e indígenas poderiam se organizar e auxiliar na insurreição que tanto almejavam.

​favela venceu

se a gente tá mec, eles tão Donald (Trump)
​do nada nós Kim Jon, hmm…
​desculpa mas tem uma bomba

A República Popular Democrática da Coreia — mais conhecida como a melhor Coréia — surgiu com o fim da Segunda Guerra Mundial, após se libertar das amarras do fascismo japonês. O país, um mês antes do final da Segunda Guerra, é dividido em duas zonas de influência, entre Estados Unidos e União Soviética. O paralelo 38 foi designado como o ponto de divisão entre os dois novos países, Coreia do Sul e Coréia do Norte. Foi então que surgiu a Guerra Fria, incitada pelos Estados Unidos e a Inglaterra, o que fez com que o país não fosse reunificado — desejo esse que era compartilhado entre o norte e o sul. O clima gerado por essa divisão ocasionou uma grande tensão entre as duas nações, até que, em 1950, estourou a Guerra da Coréia.

Os Estados Unidos tinham grande interesse na região, já se baseando em sua política expansionista — expressa na Doutrina Truman — possibilitada pela ascensão do país como a grande potência capitalista do mundo. A União Soviética cumpriu a sua parte do acordo, e retirou suas tropas do lado norte na data estabelecida. O que se viu foi uma guerra de massacre étnico e racial. Dados mostram que a destruição na Península Coreana foi superior à que ocorreu no Japão durante a Segunda Guerra — ainda que, sobre os japoneses, tenham sido despejadas duas bombas atômicas, lançadas pelos terroristas norte-americanos. O livro “Os imperialistas dos Estados Unidos iniciaram a Guerra da Coréia”, traduzido pelos companheiros da Editora Nova Cultura, é um relato brutal do massacre que a democracia americana causou na Coréia.

Soldados norte-coreanos durante a Guerra da Coreia.

Com o término do conflito e a criação de uma zona desmilitarizada entre as duas nações, a Coreia do Norte recebeu ainda mais apoio de China e União Soviética. Ao fim do bloco socialista, em 1991, a República Popular Democrática da Coreia se viu praticamente sozinha e cercada por nações inimigas. Foi então que, refletindo sobre o ensinamento de Mao Zedong (“O poder nasce da ponta do cano de um fuzil”), a Coréia do Norte decidiu iniciar um “plano atômico” para o país, fazendo com que o sul — que se tornou uma base americana na península — baixasse o tom nocivo, assim como o dos americanos. As demonstrações de armas — e em especial, de suas bombas atômicas — fez com que o norte pudesse ter um respiro, enquanto tentava reconstruir a sua nação sobre as bases do socialismo. O efeito disso foi o já esperado: em 2018, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se reuniu — de rabo entre as pernas, que fique claro — com Kim Jong Un, atual líder do povo norte-coreano, numa enorme derrota diplomatica.

É essa grande história que Don L consegue, de forma magistral, resumir nas linhas dessa faixa. Nosso dever é lutar por um mundo livre de bombas como essa, criadas para o massacre de outros povos. Mas, também, fazer uma análise material da situação na península coreana, e defendermos a auto-defesa — como bem sintetizou Huey P. Newton — da República Popular Democrática da Coreia, até que o país possa se reunificar sobre bases socialistas e a ameaça imperialista dos Estados Unidos cesse.

Soldados congoleses exibem suas cópias do Livro Vermelho e uma fotografia de Mao Tsé-Tung. República do Congo, 01 de maio de 1968.

auri sacra fame

​todo esse ouro, ouro, dando de herança
o que era dos outros,
​e, tenho nada a perder

Um dos grandes feitos de Marx, em seu magnum opus “O Capital Vl.1” foi demonstrar, no capítulo “A assim chamada acumulação primitiva”, como o idealismo liberal mentiu sobre a forma com a qual as riquezas da nascente burguesia europeia se fizeram, que, segundo estes, foram a partir de uma simples acumulação de seus lucros, quase como uma poupança. Tracie, no verso “​todo esse ouro, ouro, dando de herança o que era dos outros, ​e, tenho nada a perder”, nos dá, de forma simples e poética, um panorama de como esse processo de acumulação aconteceu.

Marx abre o capítulo afirmando:

Viu-se como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital se faz mais-valia e da mais-valia se faz mais capital. Entretanto a acumulação do capital pressupõe a mais-valia, a mais-valia a produção capitalista (…).

Ou seja, a acumulação primitiva do capital se dá num processo dialético entre o dinheiro que pode adquirir o capital, e o capital que gera mais dinheiro. Mas essa acumulação tem outros fatores determinantes. O roubo de terras de povos originários, a escravidão por dívida e o tráfico de africanos geraram uma riqueza sem procedentes na mão da burguesia. Esse processo histórico utilizou de extrema violência para que fosse consolidado.

É importante lembrar que esse processo não surge sob uma base racial — conceito social que é estranho à época — mas sob bases econômicas e de classe, que surgem a partir da divisão social do trabalho, criando uma separação entre quem produz e quem lucra em cima da produção alheia.

E, ora, se a propriedade privada é uma forma de roubo, é claro que, como diz Tracie, “não temos nada a perder”.

O verso faz ainda mais sentido se pensarmos que Tasha e Tracie são descendentes de nigerianos. A Nigéria foi um dos países mais afetados pelo tráfico de africanos escravizados. O povo Yorubá se tornou uma das etnias mais presentes em nosso país, principalmente em Salvador, onde resistiram por meio do candomblé, do samba, da fé nos orixás e em sua força e determinação, para se livrar da sua condição de escravo. O autor Eric Williams, em seu livro “Capitalismo e escravidão”, conta que, foi a partir desse processo que a revolução indistrial na Inglaterra foi possível. O sangue africano e indigena banharam a europa de ouro e maquinarias, possibilitando que a produção desses países atingissem níveis jamais vistos na história da humanidade, os colocando como potência mundial.

Arte Yorúbà no Museu Britânico.

E por fim, podemos voltar ao tema que aborda a história dos povos colonizados. Hoje, em 2021, após séculos de escravidão, é imensa a quantidade de artefátos de povos originarios e africanos que estão em posse de museus europeus. Existe um movimento de países africanos, que desejam retomar esses artefatos, os quais representam sua cultura e sua história. Museus que cobram em euro, que geram uma quantidade imensa de dinheiro com turismo, “dando de herança o que é dos outros”.

O mundo colonial é um mundo compartimentado. Sem dúvida que é inútil, no plano da descrição, recordar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, assim como não adianta nada recordar o apartheid na África do Sul. (…) Esta visão do mundo colonial, da sua distribuição, da sua disposição geográfica, permite-nos delimitar os ângulos a partir dos quais se reorganizará a sociedade descolonizada.

(Frantz Fanon no capítulo “A violência”, em sua obra “Os Condenados da terra”.)

Quando olhamos para a questão dos povos originários, que hoje são chamados de “indígenas” — sem levar em consideração a enorme pluralidade de etnias, culturas e costumes — fica nítido como o Brasil ainda vive, em certas regiões, em um regime de servidão e colonização.

Liberais adoram dados, e são os dados que nos mostram que, dos mais de 3 milhões de indígenas que aqui viviam em 1500, menos de 10% sobreviveram até 1600. Alexander Laban Hinton, no artigo “Annihilating Difference: The Anthropology of Genocide”, afirma que “mais de 80 povos indígenas foram destruídas entre 1900 e 1957, e a população indígena em geral diminuiu mais de oitenta por cento”. E para o pessoal do “pós-colonial”, eu deixo um último dado: em um ano, o assassinato de indígenas no Brasil subiu 61%, e, em 2020, os casos de invasão e exploração de terras indígenas cresceram 137%, comparados com o ano de 2018. Foi o quinto aumento consecutivo desses casos.

Bingo

​no mundo por conta própria
​ser foda é só um critério (cê tem que tentar a sorte)
​e papo de mérito é tipo policial honesto
​tu sabe que é folclore

Marx, novamente em “A ideologia alemã”, expõe uma de suas frases mais célebres, onde mostra, de forma sublime, o que será possível num mundo comunista:

(…) na sociedade comunista, em que cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que lhe agradar, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a meu bel — prazer, sem nunca me tornar caçador, pescador ou crítico.

Trabalhadoras soviéticas durante o primeiro Plano Quinquenal. Foto por Margareth Bourke-White.

A divisão social do trabalho possibilitou uma maior eficiência na produção social. Contudo, quando observada sob uma sociedade de classes, esta torna o trabalho alienante, pois quem produz não tem controle sobre a mercadoria, o produto final. Já vimos muitos reacionários afirmarem que “os socialistas usufruem das mercadorias geradas no capitalismo”, o famoso “socialista de iPhone”. Isso acontece porque o trabalho — essencial para o desenvolvimento da humanidade e para sanar as suas necessidades — ganha, sob o capitalismo, a forma-mercadoria, e, então, se torna alienante. O trabalhador passa, então, a não ter acesso aos bens produzidos por ele e seus semelhantes. A alienação faz com que o trabalhador se torne apenas força de trabalho, que pode ser comprada no mercado, como um tênis, um carro ou uma jóia. Como então podemos falar de mérito? Como ser foda, como diz Don nesse verso?

Se, sob o comunismo, onde o fim da propriedade privada dos meios de produção gera a propriedade social dos meios de produção, a alienação deixa de existir. Então é possível, sim, que os trabalhadores possam caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer e fazer crítica após as refeições. E é por isso que devemos lutar, para que possamos fazer música, textos, arte, ou seja lá o que for, de forma digna, tendo acesso a nossa subsistência e as riquezas geradas pelo nosso trabalho.

Trilha para uma nova

Se fosse pra viver por isso
​eu não teria a bem dizer morrido pelo que acredito (quase)
​eu continuo na disposição primo
​se for pra nós viver por isso
​eu prefiro morrer pelo que eu acredito

Don L fecha o disco com a síntese de toda a mensagem que transpassa o álbum. Morrer pelo que se acredita, dar a vida, se doar, lutar e construir uma nova sociedade, livre de exploração, racismo, sexismo e outros “ismos” oriundos do modo de produção capitalista. Se são as classes trabalhadoras e camponesas que sofrem com esse sistema — e que são suas bases na infraestrutura do modo de produção — como disseram Marx, Engels, Lênin, Stalin e tantos outros gênios do socialismo científico, só essas classes podem mudar os rumos da história.

Soldados armados carregam uma faixa com os dizeres “Comunismo”. Moscou, outubro de 1917

A dialética marxista — baseada na matéria, e não no idealismo — nos mostrou que, no ventre de toda sociedade em decomposição, surge uma nova. Assim como o fim do feudalismo originou a burguesia, sua antítese, o capitalismo originou, também, a sua antítese: o proletariado. Armados da teoria correta e da prática correta, como bem nos lembra Mao Zedong, o proletariado, aliado aos camponeses pobres, se torna a única força revolucionária capaz de levar o capitalismo a sua decomposição, e do seu ventre, parir o socialismo. Para isso, precisamos nos organizar, estudar, e cada vez mais nos apoderarmos do legado que Karl Marx e Friedrich Engels nos deixaram: o socialismo científico, proletário e revolucionário. Uni-vos!

*Algumas questões podem ter passado despercebidas, portanto, esse texto pode sofrer alterações.

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Marcola
Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.