Uma breve história sobre o Memphis Rap

Marcola
Kòifé | por Marcola
9 min readMar 6, 2023

[Texto originalmente publicado no Raplogia, em 30 de agosto de 2018]

O Rap de Memphis é um dos pioneiros na cena sulista dos Estados Unidos, influenciando diretamente o que hoje chamamos de Trap e Crunk. Mas, como tudo isso começou?

Antes de mais nada, é necessário entender o contexto em que vivia a população de Memphis, e captar as tensões sociais e raciais que dão o tom para a música da cidade.

DJ Squeeky, um dos criadores do Memphis Rap.

Memphis state of mind

A cidade de Memphis, no Tennessee, é considerada uma das 3 mais importantes da música norte-americana. É a cidade dos astros Elvis Presley e Aretha Franklin, e onde, em 1968, Martin Luther King Jr. foi assassinado.

Fundada em 22 de maio de 1819, foi no auge da economia baseada no cultivo de algodão, por escravos africanos, que a cidade foi enriquecendo. Dados mostram que Memphis vendeu e forneceu escravos para quase todas as regiões do sul dos Estados Unidos. Em Junho de 1861, após o estado do Tennessee se separar da União, a cidade Memphis se tornou uma fortaleza para os estados confederados. Mas, apesar desse histórico, Memphis foi se tornando uma das mais importantes cidades no contexto da luta pelos Direitos civis, na década de 1960.

Não é de se estranhar que uma cidade fundada e baseada no escravismo, no racismo e nas terriveis leis de Jim Crow, se tornaria uma das mais pobres e violentas dos Estados Unidos. Pulando algumas décadas na história da cidade, podemos observar melhor porque ela é conhecida como uma das mais perigosas da Terra do Tio Sam.

Membros de uma das centenas de gangues espalhadas pela cidade de Memphis.

Em 2002, a cidade de Memphis foi considerada a mais violenta dos EUA. Em 2001, 2005 e 2007, a segunda mais violenta. Em 2016, foi considerada a terceira cidade mais violenta do país, com uma taxa de 1.820 homicídios para cada 100 mil habitantes. Para se ter uma ideia do clima que habita o Tennessee, basta observar a divisão etnica do estado: os brancos são 75,6% da população, os negros são 16,7%, e uma pequena porcentagem está dividida entre latinos, indigenas e outrs etnias. Os dados refletem os tempos da escravidão e da segregação racial presente na região até os dias atuais.

Em 2010, haviam aproximadamente 182 gangues em apenas em um dos condados de Tennessee. A criminalidade e o Rrap naquela região são tão misturados que, Craig Petties — à época, considerado um dos 15 criminosos mais procurados dos EUA, e o maior traficante da história de Memphis — é nada menoirmão de DJ Paul, membro fundador do Three Six Mafia.

Esse é o pano de fundo para a música da cidade e também de toda a região Sul, uma das mais pobres e imersas na criminalidade dentro dos EUA — coexistindo com a fantasia do “paraíso capitalista” da América.

1991: o início

O sul americano sempre foi um ambiente prolífico na música, com New Orleans e Atlanta sendo a vanguarda em diversos gêneros. Memphis ganharia o seu espaço, ainda que de uma maneira distinta das outras cidades citadas. Naquele cenário afundado em de crime e pobreza, alguns DJ ‘s criaram uma musicalidade que ficou conhecida pelo mundo todo como Memphis Rap.

Por volta dos anos 1990, alguns DJ ‘s se tornaram peças chave para o início do estilo musical.

Em Memphis, no início dos anos 90, se você quisesse saber exatamente quais músicas os gangsters ouviam em uma agradável noite de sábado, você poderia comprar uma fita cassete de mixtape. Se você quisesse saber quais crimes os mais próximos estavam cometendo, você também poderia comprar uma fita cassete para isso.

(Torii MacAdams, RedBull Academy)

Se o Memphis Rap tem um criador, o nome dele é DJ Spanish Fly. Spanish, após ser visto tocando num quarteirão de seu bairro — South Memphis — foi contratado para ser um DJ de House no Club No Name, em East Memphis. Nessa época, o DJ fazia parte de um grupo chamado True Blue, com seu parceiro Mighty Rappin Fishbone. Após a prisão de Mighty, Spanish seguiu fazendo música, ao mesmo tempo em que já produzia suas próprias fitas. Em uma entrevista para a Red Bull, o DJ comentou que, nessa época, o True Blue doava sangue constantemente no Banco de sangue de Memphis, para arrecadar fundos afim de pagar comida e bebida para o público de seus shows.

Entre o final dos anos 1980 e início dos anos19 90, Spanish Fly deu início à uma transição na sua discotecagem, passando do House para o som agressivo, lento e imerso no 808 Bass, que se tornaria a marca registrada do Memphis Rap. Ao lado de seu parceiro Sonny D, ambos se tornaram os pioneiros da cena Hip-Hop da cidade. O sucesso foi tão grande que a população local começou a comprar suas suas fitas — criadas de forma independente e sem nenhuma preocupação com o mercado — para cidades como Atlanta, Nova Orleans, Nashville, St. Louis e Little Rock. Outro fato que ajudou na propagação do estilo foi que, entre um e outro set de House, Spanish Fly tocava suas mixtapes, despertando a curiosidade do público e fazendo o estilo do Memphis Rap ser disseminado.

Will Smith e DJ Spanish Fly, nos anos 90.

DJ Squeeky foi outro cara responsável pelo o que o Rap de Memphis é hoje, além de ser considerado um dos precursores do estilo de sequenciamento do Hi-hat nas batidas (que é uma das marcas conhecidas do Trap). Usando uma SP-1200 e uma Roland 808, artistas como 8Ball & MJG, Skinny Pimp, Tom Skeemask, DJ Zirk (e Zirk’s 2 Thick Family), Al Kapone, Ruthless Ass Niggas, Criminal — além do lendário Gucci Mane — passaram pelo estúdio de Squeeky.

Já o famoso Gangsta Pat foi o responsável por ter o primeiro disco de Memphis Rap lançado por uma grande gravadora — a Atlantic, em 1991. Não só isso deu a ele status de lenda, como também o seu estilo único de batidas, que eram vendidas em fitas-k7 por 30 dólares pelas ruas dos Estados Unidos. Esse disco — #1 Suspect — , tinha uma sonoridade muito semelhante ao Gangsta Funk de Los Angeles.

Mas, falar de Memphis sem falar de Three Six Mafia é quase uma heresia. Playa Fly, membro do grupo, era filho de um músico e uma mãe traficante de drogas, dois extremos que foram essenciais na criação do pequeno Playa — que, com 13 anos, já havia sido preso por tráfico. Em uma entrevista para o site Memphis RAP, Playa conta uma história quase mística sobre como foi o seu início no Rap:

Um dia eu estava andando pela Orleans South Street e tinha um pouco de crack na minha mão. Eu olhei para a minha mão, olhei para o céu e disse: ‘Deus, isso é tudo que você tem para mim pelo resto da vida? Dentro dessa semana, eu e um cara do meu bairro conhecemos um DJ local, passamos em seu estúdio e gravamos uma música.

Essas são só algumas história sobre o início do Rap em uma das cidades mais violentas dos Estados Unidos.

Playa Fly, em entrevista para a Hot 107,9.

Roland 808: nada de samples e artworks

O Memphis RAP é conhecido por algumas características marcantes: ouso da Roland 808, vocais repetitivos e com efeitos como reverb, algo que Denzel Curry faz muito uso em seu trabalho “32 Zel Planet”. Outro grupo atual que bebe e muito da fonte desse gênero são os moleques do $uicide Boy$.

Uma coisa interessante sobre o gênero é que, nos primórdios, não eram usados muitos samples. O padrão de produçã se baseava no uso de sintetizadores, teclados, tudo tocado a mão e de forma loopada, extremamente suja. Os timbres do 808 são bastante estourados, os refrões sempre repetitivos, e a voz com um aspecto “duplicado”, bem grave,e quase sempre sem mixagem. Foi dessa forma que o Memphis Rap se tornou o pai do Trap de Atlanta e do Crunk.

Outra característica do estilo está atrelada a um embate que a cena vive hoje: O lo-fi. Fugindo do conceito raso com que muitos propagam a cerca do lo-fi, ele não é um estilo de RAP para se ouvir durante leituras, estudos ou para relaxar — como já ficou claro quando falamos sobre as influências do Memphis. É uma característica proveniente das limitações tecnológicas enfrentadas pelos DJ’s e produtores da época, que se tornou um estilo de produção e até mesmo de textura de som. Os chiados e a baixa qualidade de produção foram aproveitados pelos artistas, criando a atmosfera presente nesse tipo de RAP. E o que era uma limitação se tornou um aspecto buscado pelos produtores da nossa geração.

Com a facilidade de se produzir em casa, se apoiando no estilo DIY, o lo-fi tem se tornado mais uma das diversas roupagens que o RAP toma para si nos anos 2010.

Na questão estética, diferente de quase todos os demais estilos de RAP, o Memphis RAP não era um estilo que fazia muita questão do visual. Não era comum encontrar fotografias dos artistas da cena, de artworks e afins. Isso porque era comum as Fita-K7 serem lançadas com apenas a tracklist anotada na capa, ou somente o nome do artista. Posteriormente os discos e mixtapes começaram a ter algum tipo de apelo visual. Lo-fi.

A lendária Roland 808.

As estrelas do jogo

Em 1995, o aclamado grupo Three Six Mafia lançou seu primeiro disco de estúdio, se tornando anos depois o nome mais lembrado quando se fala de Memphis RAP. Liderado por DJ Paul — seu falecido irmão, Lord Infamous — e Juicy G, o grupo é um dos maiores da história do RAP.

DJ Paul contou em uma entrevista para a XXL que, uma das grandes influências para o disco”Mystic Stylez” foram os retratos de serial killers que ele e Lord penduravam em sua casa. Aliado aos temas de crime e tráfico, é um trabalho extremamente denso em sua produção, como manda o repertório do RAP da cidade.

Prova disso são os dois discos de platina na bagagem e um Oscar de Melhor Canção Original — o primeiro dado a um grupo de RAP, em 2006, com a canção “It’s Hard out Here for a Pimp”, que participou do filme “Hustla & Flow”.

Isso mostra o valor do gênero, sua importância na história do RAP, sendo também um dos responsáveis por colocar o Sul no topo do RAP americano.

Crunk e TRAP: Filhos ricos do legado de Memphis

Nos anos 2000, o RAP de Nova York foi perdendo espaço para um gênero bem diferente: O Crunk. Fundado por Lil Jon, o nome é uma junção dos termos Crazy e Drunk. É caracterizado por ser um som de festa, ostentação, e também uma forma de Gangsta RAP, devido ao conteúdo criminoso das letras. Esse som do Lil Jon caracteriza bem o estilo e sua fonte no Memphis RAP.

Já o TRAP .. bom, o TRAP domina o RAP atualmente, sendo filho legítimo do Memphis. Basta ouvir Gucci Mane e isso fica claro na forma como os beats são construídos, o estilo de rima, os refrões. Mas, o TRAP foi tão além que se mantém quase que como um estilo a parte do RAP, o que não invalida sua importância, sendo um gênero datado de muitos anos atrás, tanto que essa semana, o disco “Trap Muzik”, do rapper T.I, fez 15 anos, sendo considerado como o fundador do TRAP.

Diferenças e polêmicas a parte, precisamos reconhecer o RAP como um gênero musical gigantesco e até mesmo regional, onde cada região dos Estados Unidos, com suas histórias e costumes, originaram músicas de acordo com a vivência de cada grupo social. Precisamos também olhar o TRAP com outros olhos e respeitar sua importância na história do RAP, pois tudo começou lá em 91, com DJ Spanish Fly e a violência incontrolável da cidade de Memphis, mostrando que o Sul é sim uma das regiões mais ricas da história do movimento.

Como disse Jay Electronica: “When New York niggas were calling southern rappers lame, but then jacking our slang ..”.

Fita k7 de “Lords of terror”, do Three Six Mafia.

Aqui deixo alguns links para quem tiver interesse em conhecer alguns dos sons básicos desse movimento musical:

20 of the best Memphis RAP projects;
O renascimento do Memphis RAP;
Memphis RAP Tapes, um site com dezenas de mixtapes e álbuns do gênero;
Site do DJ Spanish Fly, com algumas fotos, tapes e diversas coisas acerca do movimento;
Rádio Memphis RAP/Phonk 24 horas;
Fluxograma criado por usuário do reddit, sobre a cena de Memphis, lançamentos, beefs e mais informações;
Documentário “Welcome to hell: The History and Influence of Memphis Rap.

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Marcola
Kòifé | por Marcola

Pesquisador independente de música, fotógrafo e bacharelando em História.