Arte feita de roupa
A utilização de peças de roupas como matéria-prima em instalações e esculturas é uma das possíveis relações que podemos apontar entre os mundos da arte e da moda
Muitas vezes o mundo da moda frequenta o universo artístico servindo como materia conceitual, em casos de obras que criticam os excessos da indústria e a rigidez do padrão de beleza, ou diretamente como matéria-prima conforme veremos nos exemplos a seguir.
Venus of the Rags (Vênus dos Trapos) 1967–1974, é uma obra do italiano Michelangelo Pistoletto na qual o artista justapõe uma estátua da Vênus de Thorvaldsen (clássica composição de mármore e inspiração grega) e uma pilha de roupas descartadas. Através da apropriação de um símbolo clássico e das roupas como objetos irrelevantes, Pistoletto apresenta uma série de dicotomías: rígido/suave, monocromático/colorido, histórico/contemporâneo, único/comum e cultura/cotidiano.
Como é comum identificar em obras compostas por peças de roupas, identificamos uma forte menção ao consumismo desenfreado que já se mostrava problemático nos anos 60, quando ainda não existia o conceito de fast-fashion, considerado por muitos o câncer da indústria na atualidade.
Michelangelo Pistoletto, é um dos principais representantes do movimento artístico Art Povera (Arte Pobre), surgido na década de 1960, predominantemente em Turim (em italiano Torino) e que se caracteriza principalmente pela utilização de materiais “pobres” (não industriais) na manufaturação das obras. Ao longo de sua carreira Pistoletto realizou várias versões da peça afirmando:
"Nas várias versões existentes da Vênus dos Trapos, você pode usar os mesmos trapos originais ou alterá-los, mas eles devem manter seu caráter multicolorido. Uma das versões feita de gesso em 1967 quebrou. Minha intenção era juntar as peças, deixando evidentes os sinais de quebra, como as lágrimas nos trapos."
Uma das características da Art Povera é justamente esse caráter mutável da obra. Como a lista de materiais é infinita, incluindo matéria orgânica, muitas vezes a própria decomposição dos elementos conforma o valor estético/artístico da peça.
Claudia Casarino é uma artista paraguaia. Seu trabalho gira majoritariamente em torno de conceitos como a identidade e a igualdade de gênero. Apesar de ser uma artista interdisciplinar, Casarino se expressa constantemente através da linguagem corporal. Materialmente seus trabalhos mais icônicos são desenvolvidos em forma de instalações ou fotografias.
Na maioria das instalações desenvolvidas por Casarino, peças de roupas colgadas do teto preenchem o espaço branco e vazio da galeria. Em entrevista ao portal MMM a artista explicou seu processo criativo:
[…] a primeira coisa que fiz foi a fotoperformance, em 1998. Foi meu primeiro trabalho, no qual me apresentava nua e com três metros de altura. Eu precisava das roupas para silenciar este primeiro grito. Continuar falando sobre o corpo de outro lugar, porque essa primeira experiência foi muito comovente. Visceral, me lancei para uma linguagem que não conseguia sustentar porque minha situação emocional não permitia. Descobri que através da roupa eu podia falar eloquentemente sobre mulheres e muitos outros assuntos que me convocavam.
As peças em tule preto que compõem a instalação Uniforme (2008), representam simbolicamente vários conceitos relacionados ao próprio tecido, à cor preta e à semelhança com sombras que a instalação adquiri uma vez montada. No caso da instalação Transtornos do Sono (2011), as peças incorporam os códigos relacionados à cor branca, à vulnerabilidade, à intimidade e à efemeridade de um material tão sensível.
Guerra de la Paz é um coletivo artístico formado pelos cubanos Alain Guerra e Neraldo de la Paz. Atualmente residentes em Miami, os artistas são conhecidos pelas esculturas peculiares que desenvolvem a partir de roupas descartadas. Ao longo dos 24 anos de atuação, o duo artístico tem tratado temas como consumo e produção em massa, descartabilidade, meio ambiente, conflito e unidade.
As roupas utilizadas como material para a construção das esculturas têm o objetivo de denunciar a produção massiva de resíduos sólidos gerados pela industrialização, fomentada pelo sistema capitalista e pela globalização. Em alguns casos as mensagens que cada obra deseja passar está na figura representada, como no caso da série sobre guerra onde soldados, bomba atômica e “acordos” são ilustrados em alusão aos diferentes elementos que compõem uma guerra.
Já no caso de Indradhanush (2008), a principal mensagem é a duração efémera da roupa na atualidade, assim como todas as consequências que cada etapa do processo de produção industrial acarreta. A matéria-prima empregada na construção da peça monumental foi conseguida devido a localização do atelier dos artistas em Little Haiti, um bairro industrial em Miami, onde as empresas costumam descartar diariamente enormes quantidades de roupas.
A artista conceitual americana Martha Rosler é conhecida pelo caráter satírico de suas obras. Suas fotografias, performances, instalações, vídeos e esculturas abordam temas como o feminismo, a guerra, gentrificação, cotidianidade e a vida na esfera pública. Numa série de colagens, a artista justapõe imagens do mundo da moda e cenas de guerras no oriente médio e no Vietnã.
As paradigmáticas imagens de Rosler conformam uma linguagem vanguardista no mundo artístico, apresentando uma crítica a abstenção da sociedade que se nega a enxergar as mazelas sociais enquanto consomem freneticamente. A ideia surge da estranha miscelânea que revistas semanais como a Life, faziam ao justapor publicidade de marcas de luxo ao lado de imagens de guerra.
Referências
Tate, consultado em 27/04/2019: https://www.tate.org.uk/art/artworks/pistoletto-venus-of-the-rags-t12200
Mujeres Mirando Mujeres, consultado em 29/04/2019: https://mujeresmirandomujeres.com/claudia-casarino-mila-abadia/
The New York Times, consultado em 29/04/2019: https://www.nytimes.com/2008/09/07/arts/design/07kino.html
MB&F, consultado em 29/04/2019:https://www.mbandf.com/en/parallel-world/sensational-recycled-clothing-art-by-guerra-de-la-paz
