O palco como plataforma de discussão dos gêneros e da sexualidade no teatro brasileiro
De diferentes formas e sempre de acordo com cada época, a sexualidade vem sendo discutida no teatro há pelo menos um século
As artes têm um papel fundamental na construção do pensamento social. Mesmo com acesso limitado, o que se produz no meio artístico é objeto de estudo, pauta na mídia e muitas vezes metaforiza a realidade. A diversidade de linguagens em que a arte se concretiza possibilita um espectro maior de pessoas atingidas pelo discurso que ela se propõe a difundir.
O ator Gabriel Miziara escreveu, dirigiu e interpreta Cindy na peça homônima, na qual a personagem propõe a criação de uma “nova raça”. Nas palavras do ator “uma raça em que essas fronteiras entre o masculino e o feminino sejam absolutamente borradas, que se possa transitar da maneira que o indivíduo se sinta feliz, que obtenha prazer em viver. Viver de acordo com seus desejos mais íntimos, sem castrações ou preconceitos”.
Ele continua: “O teatro e as artes em geral têm a capacidade de metaforizar a realidade. Sendo assim, acredito que o poder do discurso, quando colocado no território artístico, é muito poderoso. O campo simbólico é infinito ao passo que a realidade é concreta. A arte sempre surgiu como uma tentativa de diálogo profundo com o tempo presente. O teatro nos faz refletir sobre os nossos atos, questionar a realidade onde estamos inseridos e tem a capacidade de nos colocar no lugar do outro. Este espelhamento é profundamente transformador. É aí que as discussões podem ser de fato transformadoras”.
O teatro no Brasil tem uma boa safra de produções pautadas pelas discussões de gênero e sexualidade. É o caso, por exemplo, de BR-Trans, de Silvero Pereira, e Luis Antonio — Gabriela, de Nelson Baskerville.
As duas peças têm a transexualidade como objeto do enredo. A desconstrução dos gêneros aparece de várias formas ao longo das peças, afirmando que a complexidade a que estamos submetidos não é tão simples como se espera. Não são produções que simplesmente contam a história de uma pessoa trans.
Os recursos utilizados para a montagem de cada peça podem, em alguns momentos, ser mais aproveitados nessas discussões do que a história em si. Em BR-Trans, Silvero Pereira é dramaturgo e ator. Nos primeiros minutos da peça, ele explica que em alguns momentos Gisele Almodóvar (alter ego drag-travesti que ele criou) é quem está no palco e, em outros momentos, é o próprio Silvero, assim como é também em sua vida real.
BR-Trans é um documentário, manifesto, ilustração do que é a realidade de mulheres trans e travestis no Brasil. Silvero Pereira, que lidera o coletivo cearense As Travestidas, apresenta histórias reais coletadas de conversas com travestis, transexuais e transformistas de Porto Alegre — RS, sendo esse também um objeto de discussão de realidades que se convergem e se deslocam do Nordeste ao Sul do Brasil.
Luis Antonio — Gabriela é ainda mais documental, sendo também mais biográfica, já que a peça conta a história de Luis Antonio, irmão do diretor Nelson Baskerville. Gabriela foi o codinome adotado por Luis Antonio quando este se tornou uma figura conhecida no exterior. A partir de fotografias, diários, cartas e entrevistas com familiares e amigos, o espetáculo documenta a trajetória de uma travesti de meia idade que cresceu sob forte violência familiar no contexto da ditadura militar.
O personagem do diretor na peça é interpretado por uma mulher, a atriz Verônica Gentilin, que, mesmo vivendo um homem, não busca esconder suas características femininas, mostrando que sexo ou gênero pouco importam na construção de um papel. O abuso que este sofreu do irmão mais velho, a irmã que sai em busca do corpo do irmão pelo mundo e o pai que não reconhece Luis Antonio como filho são detalhes abordados no enredo também.
Ferdinando Martins é professor-doutor da Universidade de São Paulo e leciona as disciplinas de História da Arte, História das Artes Cênicas e Teoria do Teatro, além de está desenvolvendo duas pesquisas, “Corpo, Gênero e Sexualidade no Teatro Brasileiro” e “Teatralidade e performatividade na criação de corpos abjetos no teatro contemporâneo”. Ele apresentou um ponto de vista à discussão sobre a produção teatral até então pouco discutida, que é a possibilidade de dialogar com o homofóbico. Buscar entender como se dá a formação do pensamento daquele indivíduo e como desenvolver produções que dialoguem com essas pessoas.
“Temos peças muito boas em qualidade, uma produção intensa sobre questões da sexualidade, no entanto não temos peças que dialoguem com o homofóbico. Nós temos peças que acabam sendo uma celebração da diversidade, que é importante, mas não tem a intenção de mudar o comportamento e sim de acolher essa diversidade. Nós temos que pensar em produções que denunciem as agressões, a homofobia, que possa transformar os valores dessas pessoas, porque o agressor tem uma verdade. Ele acredita que é um mal que está combatendo, então nós temos que analisar como aquela pessoa foi educada, em que sociedade ela está inserida”, avalia o professor.
Todas essas produções são indispensáveis para se pensar a construção dos gêneros no território brasileiro, território esse que passa por um momento delicado na afirmação de valores políticos, sobretudo do conservadorismo que tem avançado.
RELAÇÕES ENTRE PRODUÇÕES VANGUARDISTAS E CONTEMPORÂNEAS
Algumas manifestações teatrais antecederam esse momento de produção contemporânea que estamos vivendo e que foi iniciado a partir da montagem de O Rei da Vela, em 1967 pelo Teatro Oficina, de Zé Celso, e que em nova montagem esteve em cartaz em novembro no Sesc Pinheiros. A peça de Oswald de Andrade foi escrita em 1933 e era baseada na crise de 1929, porém foi publicada somente quatro anos mais tarde.
“Curiosamente, O Rei da Vela foi escrito por um homem hétero, branco e rico, no entanto se você olhar o texto inteiro não tem uma situação depreciativa das personagens homossexuais: O Totó Fruta do Conde, a Heloísa de Lesbos e a João-Joana dos Prazeres. Quando o Zé Celso leva isso para a cena, de fato é algo que marca o teatro brasileiro”, conta Ferdinando.
A peça que estreou em outubro de 1967, ficou em cartaz até dezembro em São Paulo e depois continuo no Rio de Janeiro até abril do ano seguinte, seguindo para a Europa. Em junho de 1968, um documento sugeria a proibição da peça por ser avaliada pela censura como “um teatro de tese”, “cheio de contradições e taras”.
A censura é um fantasma que voltou a nos assustar novamente. Em setembro, a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” da escritora inglesa Jo Clifford, foi censurada em Jundiaí, São Paulo, por trazer a figura de Jesus nos dias atuais no corpo de uma mulher transexual. Mesmo contando com uma produção rica sobre diversidade de gênero e sexualidade, grupos políticos pautados por uma proteção exacerbada de valores conservadores impedem que algumas dessas peças sejam levadas ao público.
Os Dzi Croquettes também foram vanguardistas nas produções que contribuíram para as discussões de gênero e sexualidade. O grupo de teatro utilizava uma estética não convencional para homens em plena ditadura militar.
Mas a presença da temática ou de personagens transexuais é muito anterior ao período ditatorial brasileiro. Para se ter uma ideia, um texto de Coelho Neto, datado de 1917, foi encontrado e no enredo existia uma personagem transexual. Em resumo, uma família tradicional está prestes a casar uma das filhas. Na véspera do casamento, a noiva resolve contar para a família que era um homem, que ela se sentia presa no corpo de um homem, no caso, um homem trans. A narrativa gira em torno da família que busca uma alternativa para casar a moça e a alternativa encontrada é casá-la com a irmã do noivo.
O Nordeste também abrigava grupos importantes para essas discussões. É o caso do Vivencial de Olinda. O grupo foi criado em 1974 e era composto em sua maioria por jovens artistas que se caracterizavam por uma estética inspirada na contracultura, travestis, favelados e transformistas. Guilherme Coelho dirigiu o grupo, e as obras encenadas ficaram marcadas por abordar temas tabu, como liberação sexual e drogas.
Criada em Salvador, há 15 anos, a ATeliê VoadOR Companhia de Teatro condensa as influências dessas produções vanguardistas. Uma característica das montagens da ATeliê é incorporar críticas culturais em sintonia com as dissidências sexuais e de gênero para sujeitos que não se enquadram nos padrões do cistema heteronormativo.
“Quando se aceita a diversidade, seja ela no pensamento, na expressão, nos gostos, nas vontades e desejos, se aceita que a diferença é complementar e não excludente. Nós temos que, juntos, tentar extinguir o preconceito e a censura, cada um ao seu modo, sem violência, ao contrário, buscando cada vez mais o diálogo, o embate saudável”, finaliza Miziara.