PANO PRA MANGA

Kaiqui Macaulay
KAIQUI MACAULAY
Published in
4 min readAug 23, 2019

Expressões de gênero e como elas se relacionam com a moda

Comme des Garçons, Thom Browne, Thom Browne, Maison Margiela, Dior e Jean Paul Gaultier

A origem do sapato de salto alto é um mistério. Várias culturas utilizaram o acessório no passado, na maioria delas como símbolo de riqueza e poder. Quando se fala de moda e gênero é muito comum associar essa história ao rei Luis XV da França, que popularizou o salto para os homens no ocidente.

O sapato é só um elemento da história da moda que pode exemplificar como a silhueta e as peças de roupas mudaram ao longo dos anos estabelecendo padrões para os gêneros e também para as classes sociais.

“A moda foi um sistema criado pela burguesia no final da idade média, até então não existia sazonalidade, não existia esse sistema que nós conhecemos como moda. As classes emergentes começaram a ‘copiar’ as roupas dos nobres, que para não serem confundidos, determinaram que estabelecer o que estava ‘na moda’ a cada estação dificultaria essa aproximação com as classes mais populares”, conta Natalia Rosa, professora de moda do FIAM-FAAM Centro Universitário e coordenadora de um grupo de estudo sobre moda, gênero e sexualidade.

A moda sempre esteve ligada a essa ideia de supremacia de classes. Quando falamos sobre moda no universo feminino a busca por uma imagem impecável é o fator determinante. “Quando existe uma grande cadeia de produção de roupas e você precisa cortar gastos, as roupas que são feitas para mulheres perdem a funcionalidade e as roupas masculinas perdem o decorativismo. As mulheres sempre tiveram a sua imagem associada à vaidade, enquanto o homem precisa ter uma roupa funcional, com muitos bolsos e confortável”, conta Diego Gama, estilista que estreou na última edição da Casa de Criadores.

“O que está acontecendo agora é uma mercantilização da moda sem gênero, depois de décadas de homens gays usando roupas da seção feminina das lojas e lésbicas fazendo o inverso. O que aconteceu é que o número de pessoas que começaram a se vestir assim foi crescendo, foram influenciando outras pessoas até chegar nas grandes marcas. Não é uma proposta do mercado de moda, até porque eu não sei se é uma coisa que eles realmente acreditam. Algumas marcas novas estão nascendo com esse conceito, nesse caso eu acho que faz mais sentido”, afirma Natalia.

Nos anos 70 surgiu uma tendência parecida com essa que nós conhecemos hoje como moda sem gênero. Era a moda unissex. O contexto político em que nós estamos, a explosão de discussões sobre liberdade sexual, muitos desses movimentos se assemelham a questões que estavam sendo discutidas naquela época e podem ter influenciado a ascensão da moda unissex, porém agora ela aparece com outro nome.

Ney Matogrosso, David Bowie e outros artistas que não se limitaram aos ditames do masculino e do feminino nos mostram que de novidade a moda sem gênero não tem nada. Porém, esses artistas estavam blindados pelo palco para poder se expressar livremente, o que alguns poderiam chamar de “apenas uma performance”.

A Casa de Criadores comemorou 20 anos em novembro de 2017. A semana de moda é uma das grandes colaboradoras do universo fashion que apresenta todos os anos nomes promissores ao mercado. Talvez por ainda estarem em fase de experimentação, no projeto Lab que funciona como incubadora de novas marcas, a Casa de Criadores condensa estilistas mais alternativos e produções mais autênticas.

A diegogama é uma dessas marcas, ela estreou na edição comemorativa de 20 anos do evento que aconteceu em novembro. A coleção nomeada SOBNÓS propôs questionamentos sobre a forma que nos relacionamos ao trazer para a passarela pessoas nuas para uma performance que aconteceu simultaneamente ao desfile.

O casting do desfile foi o mais diverso possível. Modelos branco, preto, alto, baixo, gordo, magro, homem, mulher, cis e trans invadiram a passarela. “O gênero não é uma questão para mim quando estou produzindo roupa. Eu faço roupa para pessoas. O importante é que ela se sinta abraçada, vestida com aquela peça. No final do desfile na Casa de Criadores, comentaram comigo que o meu casting tinha sido o mais diverso. Os corpos são muito diferentes, eu achei estranho que nas outras marcas não tinham modelos com corpos variados”, comenta Diego.

Algumas marcas já criaram linhas de roupas infantis sem gênero. No caso de crianças, o corpo não é um problema. O que se leva em consideração nesse caso é que as peças sejam confortáveis para que a criança possa brincar, mas é importante que uma geração tenha possibilidade de crescer sem ter os estereótipos de gênero estimulados desde o berço.

Quando algumas marcas foram duramente criticadas nas redes sociais por lançarem coleções sem gênero com peças que nunca tiveram gênero, como moletom, jaqueta larga e jeans, ficou evidente que a consciência das pessoas para o que seria uma moda sem gênero é bem plural.

Depois que o pensamento de Simone de Beauvoir se banalizou e as pessoas começaram a entender que o gênero é uma construção social, assim como nascer com uma vulva não te obriga a usar saias, a linha entre o que é ser homem e mulher está cada vez mais tênue. Os conceitos de feminino e masculino têm sido cada vez mais desconstruídos. Atribuir gênero a uma peça de roupa virou quase uma piada.

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Kaiqui Macaulay
KAIQUI MACAULAY

Journalist, master's degree in History of Art and Visual Culture (Universitat de València). Areas of interest: Contemporary Art | Queer | LGBTQIA+ | Fashion