Viktor & Rolf: a modernização do diálogo entre arte e moda

Kaiqui Macaulay
KAIQUI MACAULAY
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6 min readNov 27, 2019

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Desde coleções inspiradas em artistas e movimentos artísticos, até uma ‘mise-en-scène’ onde quadros se transformam diretamente em vestidos, os estilistas holandeses atualizaram o debate iniciado por Yves Saint Laurent em 1965

Viktor & Rolf primavera-verão 2015

Os estilistas holandeses Viktor Horsting e Rolf Snoeren têm uma relação especial com o mundo da arte. Não costumam criar em parceria com artistas, como tem sido comum atualmente, porém, as coleções que desenvolvem inspiradas no mundo da arte não ficam devendo em nada para as bolsas decoradas por Jeff Koons para a Louis Vuitton.

Na apresentação da coleção de alta costura primavera-verão 2015 apresentada em Paris, Viktor e Rolf decidiram se debruçar sobre o trabalho de um dos gênios da pintura contemporânea holandesa, Van Gogh, e levaram à passarela “vestidos de bonecas” florais, com babados e bastante volume, combinados com chinelos e chapéu de palha.

Van Gogh Girls, Viktor & Rolf primavera-verão 2015

Intitulada “Van Gogh Girls” a coleção refletia o DNA da marca que costuma levar à passarela temas clássicos ou populares (por exemplo, os memes que estampavam os vestidos na coleção primavera-verão 2019), porém, com uma execução complexa e pouquíssimo acessível. Nesse caso, as flores brotavam — literalmente — dos vestidos, rompendo com a tradicionalidade da superfície 2D e criando um elemento em 3D que transformava um vestido com modelagem simplista numa obra totalmente vinculada ao contexto de produção atual.

O tecido utilizado na confecção dos vestidos foi desenvolvido através de uma técnica denominada “batik” originária da Indonésia, mas também bastante difundida (com suas variações) em alguns países africanos. A inspiração nas pinturas de Van Gogh se revela na modelagem dos vestidos “babydoll” e na estampa floral, que juntamente com o chapéu de palha e as sandálias havaianas remetem às exuberantes representações do mundo rural que Van Gogh realizou.

A produção de Van Gogh não se resume à pintura de flores que ele realizou, porém, é inegável a importância desse tipo de representação em suas obras. A pintura de flores foi considerada por muito tempo como um tipo de pintura menos importante, muitas vezes pela finalidade decorativa que justificava a encomenda desse tipo de quadro. Entretanto, as pinturas de flores mais conhecidas popularmente são os lírios e os girassóis pintados por Van Gogh.

Lírios (1889) e Girassóis (1888), Vincent van Gogh

Dessa forma fica justificada a associação entre as flores que foram protagonistas da coleção e Van Gogh. Uma única coleção de roupa seria insuficiente para abordar todos os aspectos que integram a produção do artista holandês, como a pigmentação, o azul, o amarelo ou os seus autorretratos. De qualquer forma os estilistas definiram a coleção utilizando palavras de Van Gogh sobre seu processo de criação “Eu coloquei meu coração e alma no meu trabalho e perdi a cabeça no processo”.

Arte e Cubismo: A Performance das Esculturas

A coleção primavera 2016 apresentada pelo duo em Paris foi “the talk of the town” naquela temporada. Para o desfile intitulado “A Performance das Esculturas” Viktor e Rolf se inspiraram no movimento artístico denominado cubismo que nasceu no início do século XX e tem entre seus precursores o artista espanhol Pablo Picasso.

A Performance das Esculturas, Viktor & Rolf primavera 2016

O cubismo se caracteriza pela representação de temas clássicos da História da Arte, como a natureza morta, retratos ou paisagens através de formas geométricas que buscam, principalmente, captar e refletir no suporte (tela ou escultura) todos os pontos de vista possíveis para a observação de um objeto.

Esse movimento artístico nasceu no início do século XX e foi responsável por romper o classicismo das pinturas que se realizava até então, sendo um dos grandes responsáveis pelo desenvolvimento dos movimentos artísticos vanguardistas que surgiram posteriormente ao longo do século. Se atribui a criação do movimento ao pintor espanhol Pablo Picasso autor da obra mais conhecida desse movimento (Guernica, 1937) e outros nomes reconhecidos dentro do cubismo são os franceses Georges Braque e Jean Metzinger, o espanhol Juan Gris e a pintora espanhola María Blanchard.

Viktor & Rolf primavera 2016

A coleção foi definida por seus criadores como “um encontro surrealista entre uma camisa polo e retratos cubistas”, que é exatamente o que se vê na passarela, os vestidos são uma composição de rostos desfigurados, que organizados, cumprem a função de cobrir o corpo — ou partes. Ademais, em alguns vestidos mais compostos onde se pode reconhecer uma peça de roupa é possível observar o que um dia pode ter sido uma camisa polo.

Ao longo da coleção é possível observar a proposta dos estilistas que desejavam ultrapassar as fronteiras entre roupa e escultura, assim como também questionar a relação usuário/roupa, não respeitando os limites do corpo, criando peças que saíam dos limites dos membros e algumas vezes tapando o rosto e consequentemente a visão das modelos. Dessa forma a escultura é 'humanizada' e a modelo 'esculpida', resultando na performance das esculturas.

E quando a própria questão “moda é arte?” serve de inspiração para os estilistas?

Na temporada outono-inverno 2015 da semana de moda parisiense a dupla apresentou uma coleção que não responde nem termina essa discussão, porém, adiciona uma interessante contribuição ao debate que, minimamente, marcará um ponto de reflexão sobre essa questão. Afinal, há melhor maneira de se discutir esse tema a não ser transformando as peças recém desfiladas em obras emolduradas e colocadas na parede?

Wearable Art, Viktor & Rolf outono-inverno 2015

No início de 2015 Viktor & Rolf haviam anunciado que estavam diminuindo os esforços dedicados aos negócios para se dedicarem exclusivamente a alta costura. A coleção que seguiu o anúncio foi inspirada nas perguntas que acompanhavam cada nova coleção que eles apresentavam. Pensando nisso houve quem entendeu a coleção como uma provocação e houve quem entendeu como, a moda pode ser os dois, roupa e obra de arte. De fato, o colecionador de arte contemporânea Han Nefkens, comprou uma das peças desfiladas com o intuito de doar ao museo holandês Boijmans van Beuningen.

Viktor & Rolf outono-inverno 2015

Intitulada “Wearable Art” a coleção foi apresentada com os próprios estilistas na passarela que tiravam as telas que vestiam as modelos e colocavam na parede branca que integrava o cenário — uma clara alusão às galerias e museus — mostrando a versatilidade tanto da peça quanto da questão que guiava a coleção: um vestido pode se transformar em arte e vice-versa.

A riqueza de detalhes da coleção apresentada ilustrava a complexa relação entre arte e moda. Como se sabe, a arte por si só já é um campo de batalha. Quando relacionada com a moda, questões como “só é arte quando é bonita?” ou até “uma peça pode ser criada com a intenção de ser arte e moda ao mesmo tempo?” são mais comuns do que as desejadas respostas. Por outro lado, temos que reconhecer que as respostas são limitantes quando aplicadas ao campo da criatividade. Se tivéssemos claro os limites que separam o que é arte da moda talvez nunca teríamos conhecido uma coleção de moda tão singular como essa.

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Kaiqui Macaulay
KAIQUI MACAULAY

Journalist, master's degree in History of Art and Visual Culture (Universitat de València). Areas of interest: Contemporary Art | Queer | LGBTQIA+ | Fashion