Capítulo 17

Caroline Godoy Dessen
Kanimambo Moçambique
10 min readApr 14, 2015

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Quando o chão sumiu

Eram cinco horas da manhã quando acordei com o toque do meu celular. Chovia torrencialmente lá fora e eu acabara de perceber que minha casinha tinha uma goteira. Olhei no visor do celular e vi o número da minha irmã Adriana. O que será que ela queria comigo a uma hora daquelas? Será que havia se confundido com o fuso horário e esquecera que aqui em Maputo ainda era de madrugada?

Atendi. Ainda estava meio sonada e não consegui entender completamente o que estava acontecendo.

— Carolzinha, o papai passou mal essa madrugada e estamos aqui no hospital — Uma onda de calor percorreu o meu corpo. Em questão de segundos eu sabia, embora tentasse acreditar no contrário, que era mais do que isso.

— Dri, o que aconteceu?

— Carol, você vai ter que ser muito forte nesse momento. O papai morreu.

Silêncio.

De repente PUM! Uma caixa de mil toneladas desabou sobre mim. Meu coração se comprimiu, sentindo o impacto daquela colisão. “Isso não está acontecendo, isso não está acontecendo. Papai não pode estar morto. Nós nos falamos ainda ontem e fizemos planos da sua viagem para cá”, eu repetia sem parar na minha cabeça.

— Mas como assim? O que aconteceu? Onde está a mamãe? Onde vocês estão? Quando foi, onde foi, como foi? — Eram tantas perguntas, tantas coisas se passando pela minha cabeça que não sabia direito o que perguntar, o que fazer, como agir, além de conseguir apenas chorar compulsivamente.

A Dri passou o telefone para minha mãe.

— Carolzinha — começou minha mãe — nós estávamos em casa ontem a noite assistindo um filme quando seu pai resolveu fazer uma pausa para comer um sanduíche e pegar um copo de leite na cozinha. Ele desceu as escadas e foi para a cozinha. Eu percebi que ele estava demorando um pouco e resolvi descer para ver se estava tudo bem. Quando eu cheguei na cozinha, eu o vi apoiado na pia com o copo de leite. Ele olhou para mim e caiu no chão — contou minha mãe.

— Filha, eu subi correndo as escadas até nosso quarto para pegar o remédio do coração e colocar embaixo da língua dele, mas ele não reagia. Eu fui então até o portão de casa e comecei a gritar por socorro. Nossos vizinhos vieram e me ajudaram a ligar para ambulância. Eles tentaram ressuscitar seu pai, mas era tarde demais Carol, ela já estava morto — eu não conseguia parar de chorar enquanto minha mãe descrevia o que acontecera ao imaginar a dor que ela deve ter sentido ao ver a pessoa com quem ela passou mais de 40 anos da sua vida infartando ali no chão da cozinha na sua frente.

— Nós estamos no hospital agora liberando o corpo. Eu estou bem filha, suas irmãs estão comigo e eu quero que você telefone agora para a Patrícia e o Obadias e peça para eles te buscarem em casa.

Assim que desligamos, liguei meio que no automático para o Obadias.

— Obadias, meu pai morreu — foi tudo o que consegui falar. Ele disse que estava indo imediatamente me buscar.

Desligamos o telefone. Um silêncio aterrorizante foi ocupando cada espaço da minha pequena casa até me sufocar por completo. Eu queria arrancar meu coração do peito para parar com aquela dor. Eu queria voltar a dormir e descobrir que isso não passara de um sonho ruim. Eu queria desesperadamente alguém para abraçar e dividir minha dor.

Chorei como uma criança, desesperadamente, a ponto de me engasgar com meus próprios soluços. Involuntariamente tirei meu pijama, coloquei a primeira roupa que vi. Vesti a capa de chuva e sem pensar no que estava fazendo saí para a rua a caminho da casa do Obadias. Chovia intensamente, encharcando minhas roupas, molhando meu rosto, mas eu não sentia nada, apenas uma dor pungente e a necessidade de andar.

Por sorte, Obadias me encontrou no meio do caminho, parou e gentilmente me colocou dentro do carro e me levou para a casa dele. Cheguei no apartamento e a Patrícia me deu um abraço forte. Ela ficou deitada na cama ao meu lado, acariciando meus cabelos e me abraçando cada vez que meu soluços se intensificavam. Depois de algum tempo resolvi aceitar o calmante que ela me ofereceu. Fechei os olhos e apaguei.

Acordei depois de umas seis horas com a Patrícia me chamando.

— Carol querida, sua mãe ligou. Precisamos decidir se você irá ao enterro do seu pai… Se você decidir ir, precisamos estar daqui a uma hora no aeroporto…

Mal estava absorvendo toda aquela história e precisava rapidamente tomar a decisão de voltar ou não para o Brasil. Obviamente tudo o que eu queria era poder estar ao lado da minha família naquele momento, poder consolar e ser consolada pela minha mãe e minhas duas irmãs. Poder dividir com elas esse sentimento comum. Elas eram as pessoas com quem eu não precisava tentar explicar o que era perder um pai tão repentinamente. Nós dividíamos as mesma histórias, as mesmas lembranças, os mesmos sentimentos e agora a mesma dor.

Entretanto, eu sabia que se pegasse aquele avião para São Paulo jamais voltaria para Maputo. Largaria o trabalho, o curso de antropologia e sairia as pressas. A minha grande aventura pela África acabaria naquele momento.

Foi um dos momentos que me senti mais perdida na minha vida e incapaz de tomar uma decisão. Telefonei para minha mãe. Sentir sua voz calma me apaziguou um pouco. Com muita serenidade ela me disse:

— Carol, teu pai estava tão orgulhoso de você, das tuas conquistas aí em Moçambique, da maneira como você estava conseguindo lidar com seus problemas, desbravando o mundo, construindo a sua vida… Sinceramente, acho que você não precisa voltar para cá por causa do enterro… Não tem nada que você possa fazer. Tuas irmãs estão me ajudando com todas as providências, estamos nos apoiando muito. Se você acha que consegue lidar com a perda do seu pai aí, então fique. Assim que as coisas forem se acalmando por aqui, eu irei para aí te visitar.

Essa foi uma das melhores coisas que minha mãe fez por mim. Não sei se foi instinto de mãe, se ela sentiu o peso que essa decisão teria sobre mim, sua consciência da importância que aquela experiência estava tendo na minha vida, ou se foi tudo junto. Só sei que naquele momento ela tirou o peso do mundo das minhas costas.

Confiei nas palavras dela e optei por ficar em Maputo. Mas sabia que a partir daquele momento precisaria juntar todas minhas forças para enfrentar o que viria pela frente. Desligamos o telefone e eu sentei em frente ao computador e escrevi uma carta pro meu pai:

Paizinho,

Só queria te agradecer por tudo que você é. O melhor pai que eu poderia imaginar ter. Não posso pensar em melhor influência na minha vida. Tenho certeza absoluta de que sou o que sou hoje por sua causa. Toda essa vontade de ver o mundo, seja Europa, seja África, começaram desde pequenininha quando ouvia você contar as histórias dos reis e rainhas que conquistaram o mundo, marcando a história do planeta.

Você me ensinou a andar de bicicleta no Parque Ibirapuera. Primeiro me ensinou a andar com as duas rodinhas de trás dando apoio. Em seguida tirou uma delas. A etapa seguinte e mais difícil foi quando tirou as duas e eu tive que me equilibrar somente nas duas rodas da bicicleta. Foi difícil manter o equilíbrio…lembro de você segurando a bicicleta na parte de trás e correndo até eu pegar impulso e conseguir pedalar sozinha. Levei alguns tombos no começo e vez ou outra ainda tomo, mas tenho certeza de que aprendi a andar sozinha e que foi você que me ensinou.

Foi assim também que você nos ensinou a viver. Eu, a Déia, a Dri e a mamãe. No começo sempre ao nosso lado, dando toda a segurança possível e depois finalmente mostrando que nós já tinhamos aprendido o suficiente para continuar a caminhada com nossas próprias pernas.

Pai, você sempre me disse do orgulho que sentia da sua família, da sua esposa e das três irmãs sempre unidas. Da personalidade e conquistas que cada uma de nós alcançou. Tenho certeza que essa sempre foi sua maior satisfação, mas nunca se esqueça que o que cada uma de nós é hoje, é por sua causa.

Toda sua personalidade, seus gostos e até suas manias fazem parte de cada uma de nós. A paixão pelo jazz, pelos musicais da Broadway, pelos vinhos, seus grandes conhecimento gerais na parte de história e geografia e sabe que até aquilo que algumas vezes chamávamos de pessimismo, este também nos ensinou grandes lições, no sentido de fazer com que nós sonhássemos, mas sempre mantendo os pés no chão.

Eu só guardo boas lembranças tuas e sinto que pude aproveitar cada minuto com você. Isso é o que me deixa mais feliz. Esses últimos momentos da manhã lembrei muito da nossa viagem para Minas Gerais, o quanto você adorou ver aquelas cachoeiras e comer goiabada com queijo. Lembrei de quando empinávamos pipa e o dia que você saiu correndo atrás da pipa e ficou desesperado achando que tinha me perdido e nem percebeu que eu estava ali do seu lado.

Lembrei também das inúmeras conversas depois do jantar sobre a vida, sobre a sua relação com seu pai e, principalmente, dos conselhos que você sempre me deu. Aliás, isso foi o mais lindo: te ter como amigo e não só como pai. E você não imagina o quanto cada palavra sua teve significado nas minhas escolhas e decisões. Eu sou o que sou por sua causa e quero te agradecer por isso.

Pai, eu estou com você e agora, mais do que nunca, sei que tenho mais alguém do meu lado, iluminando meu caminho, me protegendo de todo mal, e por estranho que possa parecer, eu não me sinto sozinha, sinto você aqui agora, ao meu lado me chamando de PIXUXA!

Eu te amo pra todo o sempre. E vou fazer tudo o que puder para continuar te orgulhando de nós!

Fica em paz e continue cuidando da sua família, pois nós vamos continuar te amando do mesmo jeito e falando de você e das suas histórias para os nosso filhos e netos.

Meu abraço mais apertado!

Te amo

Carol

Nos dias seguintes à morte do meu pai, optei por ficar na casa do Obadias e da Patrícia para não me sentir tão sozinha. Cada vez que abria a minha caixa de e-mails ficava surpreendida com o número de mensagens cheia de carinho que recebi de todos meus amigos. Mensagens lindas, me dando muita força, amor e consolo. Eu me senti abraçada, acarinhada, completamente envolvida por amor e isso foi uma das coisas que mais me deu energia para seguir a vida com um sorriso no rosto.

Depois de dois dias voltei ao trabalho. Na redação todos vieram me dar um abraço carinhoso e se dispuseram a me ajudar com qualquer coisa que eu precisasse. Todos com exceção do diretor de redação, Jaime Luís, o braço direito do diretor geral, que havia me contratado para supostamente ajudar e aliviar um pouco as tarefas desse Jaime.

Desde o meu primeiro dia de trabalho senti algo de estranho no tal do Jaime. Era um negro grande, com um carrão, uma sala equipada só para ele, adorava gritar com os repórteres na redação e enfatizar que era professor de português. Tinha um hábito terrível de conversar com os outros sem olhar nos olhos. Isso era o que mais me incomodava, pois algo me dizia que ele não era uma pessoa confiável.

Sempre que ele tinha a oportunidade, nas reuniões com minha equipe da revista, fazia algum comentário satírico sobre o meu jeito de falar português e ressaltar que “brasileiro” não era português. Eu engolia em seco, pois ainda não me sentia a vontade para dar uma resposta à altura e correr o risco de perder o emprego. A minha reação era sempre aquela risadinha cínica disfarçada.

Já fazia dois meses que estava trabalhando lá e todos os dias o pessoal do Recursos Humanos arranjava alguma desculpa para eu não assinar meu contrato. Os motivos eram o mais diversos, mas o principal deles era que o diretor geral estava quase sempre viajando e só poderia assinar quando retornasse de viagem, algo que nunca acontecia.

Na semana anterior havia feito um pequeno projeto para o Jornal semanal do grupo sobre um encarte especial para a Copa do Mundo apresentando a cada semana as equipes de futebol que disputariam o torneio mundial dali a a dois meses, entre outros detalhes.

Uma ideia simples, mas que nenhum outro jornal ainda tinha pensado em fazer. Apresentei o projeto ao Jaime que respondeu que não era uma boa idéia, que não haveria repórter para escrever, pois todos já estavam sobrecarregados de trabalho. Argumentei que já havia falado com um dos jornalistas que havia topado a ideia, mas ele não cedeu mesmo assim.

Minha surpresa veio na semana seguinte, ao retornar para a redação, e ver um encarte especial sobre a Copa no jornal, exatamente do jeito que eu havia sugerido. Vi quem assinou a matéria e fui falar com o tal repórter. Ele me disse que havia sido o Jaime quem tinha apresentado a idéia ao diretor geral da empresa, que aprovou na mesma hora e pediu que começassem imediatamente com os encartes.

Custei para acreditar que um homem daqueles, com seus quase 40 anos, esclarecido, estudado, com uma posição fantástica dentro daquela cooperação, pudesse ter tido uma atitude tão infantil e mesquinha de me boicotar e vender a ideia do meu projeto como dele ganhando todos os louros por isso. Fiquei completamente atônita.

Se não bastasse isso, ele foi a única pessoa incapaz de me dar os pêsames pela morte do meu pai. Me tratou como se nada tivesse acontecido e pior, como se eu tivesse feito mal de não ter ido trabalhar nos dois dias anteriores.

A indignação total veio alguns dias depois, quando no fim daquela semana ele me chamou para “uma conversa”.

— Sabe Caroline, tive uma reunião com o diretor geral e a nossa empresa está adotando uma política de só trabalhar com pessoas que possam ficar conosco período integral. Infelizmente sabemos que você tem a universidade de antropologia de manhã e isso não bate com a política da nossa empresa. Nós estamos muito satisfeitos com o teu trabalho, mas não podemos abrir uma exceção para você… — disse ele incapaz de me olhar nos olhos.

Respirei fundo e deixei a serenidade tomar conta de mim. Expliquei que realmente não poderia abandonar o curso de antropologia, principal motivo de eu ter vindo para Moçambique, para ficar trabalhando com eles. Agradeci por tudo desejei toda a sorte do mundo para eles.

Não quis me rebaixar e dizer tudo o que pensava dele. Sabia que a vida ia se encarregar sozinha de dar uma lição àquele senhor que não conseguia encarar as pessoas.

Agora a próxima batalha seria tentar receber pelo que trabalhei sem um contrato assinado e tentar achar uma outra maneira de poder pagar minhas contas no fim do mês…

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