Capítulo 20

Caroline Godoy Dessen
Kanimambo Moçambique
8 min readApr 14, 2015

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Professora Caroline?

Com minha curta carreira cinematográfica encerrada, voltei a me focar no curso de Antropologia, a razão motor da minha ida a Moçambique. Até aquele momento os estudos estavam indo bem. A caminhada pelo milharal até o prédio das Ciências Sociais já não me incomodava em nada, pelo contrário, eu até começava a gostar daquele percurso naquele cenário inóspito.

Uma coisa que me impressionava muito nas manhãs que eu caminhava em direção à Universidade eram as crianças. No mesmo horário que eu começava as aulas de Antropologia, as crianças, de cinco anos aproximadamente, entravam na escolinha que ficava dentro do campus da universidade.

Fiquei muito admirada a primeira vez que vi aqueles miudinhos indo para a escola sozinhos, com suas mochilas, sempre com os amiguinhos, mas sem a presença de nenhum adulto. Me deu a impressão de que as crianças se tornam independentes muito mais cedo aqui.

Para elas eu era a atração da manhã:

— Mulungo, mulungo! — gritavam para mim, que em changana, significa branco.

Quando olhava para elas e fazia alguma brincadeira ou careta, elas morriam de vergonha e não conseguiam parar de rir. Sempre dizia a elas com o polegar para cima:

— Beleza?!

Depois de quase um mês repetindo o mesmo ritual todas as manhãs, toda vez que elas me viam, vinham correndo com os polegares para cima e começavam a gritar:

— Beleza, beleza!

As aulas na universidade estavam correndo bem. Uma das principais diferenças que encontrei em relação à FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da USP) foi em relação à quantidade de alunos. Em São Paulo chegamos até a fazer greve devido à enorme quantidade de alunos assistindo aula em uma só sala. Muitas vezes chegávamos a assistir aula sentados ou com carteiras fora da sala de aula.

Em Maputo foi o completo oposto. O número de alunos durante a minha estadia lá nunca chegou a ultrapassar dez por matéria. Em uma das matérias éramos apenas quatro. No início fiquei bastante surpreendida e um pouco sem perceber se afinal aquilo era algo positivo ou negativo.

O lado bom dessa realidade é a aprendizagem quase que personalizada, o contacto um pouco mais íntimo com os professores que te conhecem pelo nome e sobrenome. Entretanto, a cobrança é muito maior.

Assim como no Brasil as aulas eram baseadas nas leituras de textos e discussão sobre os mesmos. Isso significava que se não lesse o texto para a aula, não haveria como passar despercebido. Além do mais, se mais de 50% da classe não tivesse lido, praticamente não havia possibilidade de ter uma discussão e a aula estaria comprometida.

No geral, o nível do curso era bastante bom, com excessão de uma ou outra matéria que faltava mais comprometimento por parte do docente. As disciplinas não abordavam só questões universais, mas traziam também muito conteúdo da realidade africana e moçambicana.

A biblioteca da faculdade também foi algo que demorei um pouco para me adaptar. Isso porque o acesso aos livros era permitido somente às bibliotecárias. O público não tinha acesso. Se quisesse um livro deveria procurar nas fichas (de papel!) pelo nome da obra ou do autor e fazer o pedido no balcão para a funcionária, que sumia por alguns muitos minutos e depois voltava com seu livro ou sem ele.

Havia muitos casos em que o livro não podia sair da biblioteca e só era possível le-lo ali no recinto (sim isso é comum em várias bibliotecas brasileiras também, eu sei). O detalhe é que o espaço de estudo dentro da biblioteca era algo muito curioso por conta do barulho. As pessoas falavam em tom normal de voz, faziam discussões de grupos e deixavam os celulares com os mais diferentes tipo de alerta tocar alto e ainda atende-los descaradamente.

Depois de um tempo eu acabei também me adaptei à realidade universitária moçambicana e mal imaginava que essa lição da realidade estudantil lá me seria tão valiosa depois de alguns meses...

Era uma terça-feira ensolarada quando cruzei mais uma vez o milharal da Universidade Eduardo Mondlane. Mas dessa vez eu não entraria na sala de aula como estudante, mas sim como professora.

Estava muito nervosa. A oferta tinha vindo de surpresa. O diretor da faculdade, que eu conhecera durante a visita da professora Dilma, entrara em contato comigo algumas semanas antes. Ele explicou que a professora que dava oficina de telejornalismo teria que sair de licença por conta de um problema de saúde e eles precisavam urgentemente de um substituto.

— Fico lisonjeada professor, mas não tenho nenhuma experiência acadêmica e a experiência que tenho em televisão, além daquilo que aprendi na sala de aula, é de apenas de um estágio na TV Globo — alertei o diretor.

— Nao há problema! Tenho certeza que isso já é suficiente para ensinar a turma.

— Mas senhor Damião, eu só tenho o bacharelado em jornalismo, não tenho nenhum mestrado ou sequer pós-graduação — insisti.

— Caroline, aqui a maioria não tem nem sequer o bacharelado em jornalismo, já que este é o primeiro curso superior de jornalismo. Até agora, para ser jornalista, só existia o curso técnico. Para ter o bacharelado de jornalismo, só se você tiver estudado fora, portanto você está um passo a frente de muita gente — explicou.

Foi nesse momento que comecei a entender na prática um ditado que já tinha ouvido muitas vezes de diferentes pessoas em Moçambique: “Em terra de cego quem tem um olho é rei.” Depois de tanta insistência resolvi aceitar o desafio. Afinal não tinha nada a perder e apesar do salário ser uma piada, ainda assim me ajudaria.

Passei as semanas seguintes coletando material para as aulas e criando uma estrutura para o curso. Escrevi para colegas que ainda trabalhavam na TV, professores que me ensinaram telejornalismo, colegas de faculdade, tentando coletar o máximo de material possível, pois nas bibliotecas que visitei não tinha encontrado nada que me ajudasse.

Também fiz uma pesquisa sobre a televisão em Moçambique, os principais canais de TV, tentei entender qual era o modelo que eles seguiam, etc. Dentro do possível estava bem preparada e empolgada com o plano de curso que desenvolvera.

Mas ainda assim meu coração estava batendo na boca e parecia que haviam mais de mil borboletas em revoada no meu estômago, tamanha era minha ansiedade antes de entrar naquela sala de aula. Estava com medo. Com muito medo. Medo de ser desrespeitada por não ser boa o suficiente, por ser estrangeira, muito jovem, mulher e branca. Medo de ser rejeitada. Medo de falhar.

O sinal tocou e os alunos que estavam do lado de fora da sala começaram a entrar. Assim que o último entrou, eu respirei fundo, sempre com um sorriso no rosto e entrei na sala de aula. Enquanto eles se sentavam, deixei minhas coisas em cima da mesa, peguei o giz e escrevi meu nome na lousa. Enquanto eu escrevia, o silêncio ia se estabelecendo e mesmo de costas, eu sabia que estava sendo observada por todos os alunos. Me virei e encarei cerca de 70 rostos curiosos, muitos deles mais velhos do que o meu e disse:

— Bom dia pessoal! Meu nome é Caroline e estou substituindo a professora Antonia enquanto ela está de licença esse semestre. Eu sou brasileira e minha experiência em TV é a da televisão universitária e de um estágio da Rede Globo — comecei.

— Assim como vocês eu também sou estudante, mas do curso de Antropologia e acho que entendo bem as condições de ser estudante aqui. Vou tentar sempre levar isso em consideração na hora de exigir trabalhos, pesquisas e leitura de textos.

— Eu estou muito animada para passar para vocês tudo que aprendi, mas vou precisar da ajuda de vocês para saber os detalhes da maneira de fazer televisão em Moçambique e que vocês sempre me digam o que gostariam de aprender em profundidade. Eu estou a disposição depois das aulas para conversar e ajudar vocês em qualquer outro projeto jornalístico pessoal.

Ufff! De repente um peso saiu das minhas costas. Eles estavam me escutando e muitos deles tinham uma expressão tranquila, curiosas e de muito respeito. Respirei aliviada e como num passe de mágica me senti super a vontade em frente daqueles jovens e comecei a dar a aula que tinha planejado como se tivesse feito aquilo milhões de vezes. Do lado deles, não houve nem sequer um resquício de algo que pudesse ser entendido por desrespeito, muito pelo contrário (apesar de eu insistir de me chamarem apenas de professora Carol, eles sempre me chamavam de Doutora Professora por pura formalidade).

Deixei a sala de aula naquele dia com a certeza com uma energia que há muito tempo não sentia. Que bom que eu decidira aceitar aquele desafio.

Mas o desafio havia apenas começado. E tudo isso por um pequeno detalhe: eu estava dando aula de Oficina de Telejornalismo, sendo que não tínhamos um estúdio, uma câmara de filmar, nada. Foi uma batalha sem fim com a direção da universidade para conseguirmos uma câmara de filmar.

Enquanto isso, na sala de aula, era preciso ter muita criatividade para manter o alunos motivados e conseguir realmente que aprendessem alguma coisa. Trabalhamos muito com produção de uma matéria para TV, o texto para televisão, o formato do texto, discutimos a importância da imagem, e depois disso foi muito teatro.

Arquivo pessoal

Chegamos a fazer uma câmara de mentirinha e montar uma espécie de estúdio na sala de aula para que eles tivessem a experiência de apresentar um jornal. As matérias que os ancoras chamavam eram sempre uma passagem (quando aparece o repórter ao vivo de algum lugar) que o aluno tinha que fazer ali na hora olhando para a câmara falsa.

Apesar de não podermos ter visto isso em vídeo, nos divertimos muito e na avaliação final dos cursos, a oficina de jornalismo foi a mais bem avaliada. Não poderia haver recompensa maior. Fizemos também excursões ao canais de televisão moçambicano e trouxe alguns jornalistas para conversar com a turma.

No final do primeiro semestre, não havia outra coisa que eu quisesse fazer mais: estava amando dar aulas para aquele pessoal que estava louco para aprender e topava qualquer parada para isso, até teatrinho.

No segundo semestre, recebi a oferta para permanecer com a turma do quarto ano e pegar os alunos de terceiro ano. Topei na hora. Além disso, finalmente havíamos conseguido uma câmera. Era uma só para mais de 120 alunos, mas ainda assim melhor que nada e com um pouco de organização conseguiríamos tirar o melhor proveito dela.

Com a turma do terceiro ano também ganhei de presente um aluno mega motivado que se tornou minha mão direita e esquerda para filmar e editar as matérias com os alunos. Bacar já tinha alguma experiência com televisão e sabia como operar a câmera e editar imagens (sim, porque recebemos a câmera, mas não tínhamos um câmera man, um editor ou ilha de edição). Com mais um pouco de pressão conseguimos um Mac para editar os materiais das aulas.

Os alunos estavam todos super motivados e o resultado final, considerando os recursos que tínhamos foi incrível: o primeiro telejornal da Universidade Eduardo Mondlane! Foi provavelmente um dos trabalhos que mais me orgulho de ter feito. Quem quiser dar uma espiada, o video está abaixo.

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