Capítulo 22

Caroline Godoy Dessen
Kanimambo Moçambique
7 min readApr 14, 2015

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O puxa-puxa

Assim que a porta do avião se abriu eu senti o bafo quente do calor tão falado de Tete. A temperatura era de 41ºC e a sensação era de estar entrando numa sauna seca, sem direito a ducha de água fria depois. Havia moscas, muitas moscas. Mas tinha também o rio Zambeze, caudaloso, largo, imponente. E lindos embondeiros (baobás) com seus troncos gordos, desproporcionais as suas copas que par mim, pareciam bonsais gigantes.

Algumas semanas antes tinha recebido o convite da minha professora de Antropologia da Sexualidade para acompanhá-la numa pesquisa de campo sobre as práticas sexuais das mulheres de Tete. O estudo aconteceria durante as férias escolares o que me fez topar o convite na mesma hora.

A província de Tete, que fica na zona central do país, é considerada uma das mais pobres de Moçambique. Cerca de 87% da população vive em zonas rurais e 67% é analfabeta. A cidade de Tete registra uma prevalência do HIV/SIDA entre os adultos de 25,8%, superior a média nacional de 16.2%. No que diz respeito ao acesso à energia eléctrica e à água potável, somente a cidade de Tete tem energia eléctrica, enquanto que a maioria da população faz recurso as águas dos rios (Zambeze e afluentes).

Esta era a província que eu acabara de chegar para trabalhar com uma equipe que eu não conhecia e fazer um trabalho que nunca havia feito antes. No avião já havia conhecido o Hipólito, um médico moçambicano de 28 anos que fazia parte da equipe da pesquisa. Senti uma grande empatia por ele e isso me deixou mais tranquila.

Além dele, integrariam a equipe o senhor Rachid, que cuidaria de toda a parte logística do trabalho, a Esmeralda, que era minha professora de Antropologia, a doutora Brigitte, uma antropóloga francesa e principal investigadora da pesquisa e uma outra estudante holandesa, chamada Elise, de 25 anos.

Achei a cidade pequena , muito quente, com pouquíssimos prédios, muitas bicicletas e motos. Três semáforos apenas. A parte central era pavimentada, mas todo o restante que saia da zona central da cidade eram ruas de terra. Apesar do calor e das moscas, no final daquele dia estava me sentindo muito a vontade e achando que Tete não era assim tão catastrófica como tantas outras pessoas me alertaram.

No dia seguinte, seguimos para o Centro de Formação de Saúde onde iríamos treinar 25 meninas que haviam sido selecionadas para serem entrevistadoras no trabalho de campo. Isso significava explicar-lhes o papel de uma entrevistadora, a maneira correta de preencher um questionário, a importância de ser imparcial durante a entrevista, etc.

Entrevistadoras formadas por nossa equipe. Arquivo pessoal

A semana decorreu bem, com o trabalho fluindo bem com a equipe. Também naquela semana conheci a Elise, uma holandesa de 25 anos, que estava há três meses em Moçambique, acompanhando seu namorado que trabalhava para os Médicos Sem Fronteira. Conectamos na hora e aos pouquinhos fomos nos tornando mais próximas.

Nas semanas seguintes, continuamos com o treinamento das pesquisadoras. A ideia da pesquisa, financiada pela OMS (organização Mundial da Saúde) era não só conhecer as práticas sexuais da mulheres daquela região, mas principalmente ver suas implicações na saúde da mulher, por isso tínhamos também um médico presente.

Num dos exercícios que fizemos dividimos as mulheres em grupos menores e conversamos sobre as práticas sexuais naquela região. Foi durante esse exercício que conheci a produção de “tatuagens” no corpo das mulheres. Para me explicar, uma delas levantou sua blusa e abaixou um pouco a calça. Eu vi então três linhas horizontais de cicatrizes abaixo do seu umbigo. Na verdade, eram mais queloide do que cicatrizes, pois eram muito proeminentes mesmo.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Fiz isso no curandeiro quando tinha 15 anos. Foi com uma lâmina de barbear. Me cortaram várias vezes nessas três linhas que você está vendo. Na semana seguinte, quando ferida estava começando a cicatrizar, voltei no curandeiro e ele me cortou de novo e assim fizemos durante algumas semanas. Dessa maneira consegui esse efeito da “tatuagem” ficar alta — me respondeu ela orgulhosa.

— E por que você quis fazer isso?

— Ué, porque mulher “lisa” é que nem um peixe que você não consegue pegar, escapa da sua mão o tempo todo — disse como se fosse a verdade mais universal do planeta. Cuma?

— Desculpa?

— Doutora Caroline ,— continuou ela com a santa paciência — na hora de ter relação, quanto mais fricção tiver, melhor. Por isso fazemos as “tatuagens”. Assim nossos homens não tem a impressão de estar se relacionando com um peixe que pode escapar a qualquer momento.

E foi nesse momento comecei a aprender a verdadeira antropologia, não a que está nos livros, mas o relativismo cultural na prática, o despir-se dos seus valores e culturas para conseguir enxergar o outro por meio da sua própria cultura, sem julgamento de valores ou moral. E isso foi um baita desafio.

No fim de semana, Elise e eu resolvemos ir ao Kuashene, o maior mercado informal de Tete, onde se encontra de tudo e mais um pouco. Milhões de roupas de segunda mão (aquelas que doamos à algumas organizações que as revendem a preços baixos aos moradores que por sua vez as vendem novamente), comida, utensílios e até animais como galinhas e cabritos. A intenção da nossa visita lá era visitar as “tias” que vendem produtos para as tais práticas vaginais que tanto falamos durante a formação.

Lá, encontramos o tal chá que as mulheres tomam para aumentar a temperatura do corpo, pois segundo havíamos ouvido, é bom que a mulher esteja “quente” quando vai ter a relação sexual com o marido. O chá é feito de uma planta local e deve ser tomado antes do ato sexual.

Elise e eu em Kuashene. Arquivo pessoal

Além disso, encontramos também um pó muito popular, também feito de folhas de ervas, que as mulheres utilizam nos lábios vaginais. O efeito seria de “secar” a vagina. Afinal, mulher “molhada” é como mulher suja.

Ouvi de uma das mulheres que estávamos treinando que esse seria também um dos motivos pelos quais os homens rejeitariam o uso do preservativo. Como o preservativo vem lubrificado, para eles seria como viesse “sujo”. Compramos os dois produtos e assim que saímos eu vi a Elise abrindo o saquinho com o pó para a vagina.

— O que você vai fazer Elise?

— Quero ter uma ideia do efeito disso aqui.

— Você está brincando, né? Você não vai colocar isso “lá”, vai?

— Não, Carol, mas vou colocar aqui na parte inferior do lábio que é bem parecida com a textura da vagina — respondeu pegando uma pitada do pó entre o os dedos indicador e polegar.

— Ah, então também vou provar — e peguei a minha porção.

Colocamos as duas o pó na boca. Rapaz! O bicho começou a secar a pele da gengiva como se fosse bicarbonato de sódio. Olhamos uma para outra e não precisamos dizer nada, afinal estava escrito em nossos rostos “Puta merda, imagina o efeito disso aqui lá embaixo?”

Depois de bebermos bastante água para acabar com aquela secura na gengiva, seguimos adiante. Vimos o óleo de rícino, que sabíamos que era usado numa das práticas mais tradicionais da região: o puxa-puxa. Sentamo-nos com a curandeira que estava vendendo e ela nos explicou:

— Quando as meninas estão quase se tornando mulheres, lá pelos 11 ou 12 anos elas recebem uma madrinha. A madrinha é uma mulher mais velha, experiente, que vai passar seus conhecimentos para a menina mais nova. Dentro de uma cabana ela mostra à mais nova como usar o óleo de rícino nos lábio vaginais para alonga-los.

— Alonga-los? Como assim? — perguntei.

— Sim, alonga-los. O ideal é que eles atinjam uns cinco centímetros. Ficam também depois conhecidos pelo nome de lulas. Dessa maneira a mulher pode brincar muito mais com seu marido. Com suas “lulas” pode abraçar o pênis do homem ou então elas podem envelopar os lábios vaginais para dentro da própria vagina, tornando-o mais apertada para o seu parceiro.

— E como se faz esse alongamento dos lábio? — questionei tentando mostrar naturalidade, mas boquiaberta com o “novo mundo” que estava se abrindo a minha frente, justo eu que sempre achei que já tinha ouvido de quase tudo sobre práticas sexuais, ainda mais depois de trabalhar para revista Nova durante um ano.

— Então, a madrinha mostra à sua afilhada como usar o óleo para puxar os lábios vaginais. Depois disso, as meninas passam a fazer o “puxa-puxa” uma nas outras até atingir o tamanho desejado. Isso demora alguns meses ou até um ano.

— Ahã.

— É uma questão de vaidade para as mulheres aqui. O corpo de uma mulher é mais bonito se ela tiver as “lulas”. Vocês não colocam silicone para se sentir mais bonitas? Então, na nossa cultura, para nos sentirmos mais bonitas aumentamos o tamanho dos lábios vaginais.

A partir desse momento parei de me questionar. Realmente, a nossa prática de fazer uma intervenção cirúrgica para aumentar o tamanho dos seios deveria ser tão estranha para eles quanto eu estava achando estranha aquela história de lulas. Tudo é realmente relativo.

Obs 1: Quem quiser saber mais sobre a pesquisa e seus resultados, clique aqui (em inglês): http://www.academia.edu/2212282/Prevalence_and_Motivations_of_Vaginal_Practices_in_Tete_Province_Mozambique

Obs 2: Desde a chegada da companhia brasileira Vale para exploração do carvão em Moatize (Tete) nos últimos anos, a cidade de Tete tem mudado significativamente. O livro “Moçambique, o Brasil é aqui” traz uma reportagem aprofundada sobre as relações comerciais e diplomáticas entre Brasil e Moçambique, um mergulho fundo nos arquivos desse relacionamento.

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