Capítulo 6

Caroline Godoy Dessen
Kanimambo Moçambique
9 min readApr 9, 2015

Um amigo moçambicano

Bonny preparando nosso almoço. Arquivo pessoal

Depois de digerir mais racionalmente a notícia de que as aulas só começariam dali a um mês, me liguei que não podia ficar um mês morando com a Patrícia e Obadias. A tal da Clara continuou sem dar sinal de fumaça: seu telefone não funcionava e não recebi um email sequer explicando sua ausência no aeroporto, um mistério que só se resolveu no meu terceiro mês de Moçambique. É, eu precisava mexer os pauzinhos.

Comecei a procurar meus contatos e lembrei-me da Paula Santos. A Paula eu conheci por telefone seis meses antes de embarcar para Moçambique. Na verdade, antes de me decidir pelo intercâmbio da USP, procurei várias organizações que trabalhavam com voluntários em países africanos. Minha primeira surpresa foi perceber o quanto é difícil se voluntariar para tais organizações. A segunda, que muitas vezes, para ser um voluntário, você paga uma boa grana.

Enfim, naquela época entrei em contato com uma ONG dinamarquesa que desenvolvia trabalhos em Moçambique. Durante o processo, eles me passaram o contato da Paula, que tinha acabado de voltar ao Brasil e tinha passado os últimos seis meses em Moçambique. Conversamos muito e ela me alertou para todos os pontos negativos e positivos da ONG.

No final, acabei desistindo da idéia da ONG depois de descobrir que ia ter que pedir dinheiro nas ruas dos EUA para poder financiar minha ida à Moçambique, e optei pelo intercâmbio da USP. No entanto, continuamos a nos falar com freqüência, pois o país continuava a ser Moçambique e ela me deu dicas valiosas sobre o mesmo.

Um mês antes da minha viagem, ela me passou alguns contatos de pessoas que se tornaram amigas dela durante sua estadia no país. Procurei no meu caderninho de anotações os nomes e telefones que ela tinha me passado e me deparei com o nome “Bonny”.

Carol, o Bonny é um moçambicano super simpático, de 20 e poucos anos, que trabalha numa ONG, organizando acampamentos pelo país para estrangeiros — havia me dito.

Peguei meu celular e percebi que há muito tempo não ligava para alguém que não me conhecia para convidar para sair e tomar um café. Ligar para estranhos não é um problema para mim, pois trabalhando como jornalista, você faz isso o tempo todo para entrevistar as pessoas, mas essa situação era diferente. Não ia entrevistar o Bonny, o que eu queria era sua amizade.

Então notei que fazia anos que eu não fazia uma nova amizade, no sentido de ir à busca dela. Em São Paulo, obviamente tenho meus amigos da escola, faculdade e trabalho, que entraram naturalmente na minha vida. E, por mais louco que possa parecer, a vida maluca de São Paulo já me oferecia tão pouco tempo para cuidar dessas amizades, que “ir atrás” de novos amigos, nunca sequer passou pela minha cabeça. Pois é, agora, aos 25 anos, lá estava eu, cheia de tempo, redescobrindo como fazer de estranho seus amigos.

Alô, por favor o Bonny?

— É ele. Quem fala?

— Oi Bonny, meu nome é Carol, quem me passou seu contato foi a Paula Santos, do Brasil. Tudo bem?

— Ahhh! A Paula! Epa, como ela está?

— Está bem, de volta ao Brasil.

— E tu? Estas aqui para trabalhar na mesma ONG que ela?

— Não, vim aqui para estudar na UEM, mas o início das aulas foi adiado e queria aproveitar o tempo livre para conhecer mais de Maputo e suas pessoas. E a Paula me falou super bem de você.

— Claro, Carol, vamos lá nos conhecer. Por que não me encontra na Baixa, perto da reitoria, daqui uma hora e tomamos um café?

— Ótimo, sei onde é. Obrigada, Bonny. Até mais!

Até que não tinha sido difícil. Ele era realmente simpático. Peguei meu celular e um pouco de dinheiro e fui caminhando até a Baixa, o caminho eu já conhecia, por causa da minha visita à reitoria.

Depois de uma hora, eu estava lá, e então percebi que não havíamos combinado nada sobre como nos identificaríamos. Mas, como os brancos são completa minoria em Maputo, não foi difícil dele me reconhecer.

Olá! Sou o Bonny!

Me virei e vi um moçambicano com cerca de 1,60m, fortinho, com uma mochila nas costas, boné na cabeça, e um sorriso de orelha a orelha.

— Olá, Bonny! Tudo bem?

Caminhamos juntos até a sede da ONG onde ele trabalhava enquanto ele me contava da Paula, do que tinham feito juntos quando ela estava em Maputo e do seu trabalho. O local era meio estranho, como muitos daqui de Maputo. Um prédio sem luz no corredor, meio sujo e com cara de abandonado. Mas, para minha surpresa, depois de passarmos a porta do pequeno escritório, vi que as coisas lá dentro eram completamente diferentes: tudo arrumadinho, limpinho.

O Bonny me apresentou para os outros moçambicanos que trabalhavam lá e explicou que a Ajude, nome da ONG, trabalhava com a organização de intercâmbios de jovens, normalmente vindos da Europa. Eles cuidavam de toda logística e organização de acampamentos em outras províncias, onde os intercambista realizavam trabalhos voluntários para a comunidade. Achei bem interessante.

Saímos do escritório e fomos até uma padaria tomar um café. Me senti tão bem com ele que desabafei um pouco.

Ai Bonny, esse começo não está sendo fácil, sabe? Estou morando de favor na casa de um casal moçambicano que conheci no avião, as aulas só começam daqui um mês e eu praticamente não conheço ninguém aqui na cidade.

— Epa Carol, tudo vai se acertar, vais ver. Os intercambista que recebemos aqui também passam por essa fase de adaptação e no final, tudo sempre dá certo. Eu vou te ajudar, vou pensar em alguns amigos sérios que tenham um quarto para alugar e vou espalhar a palavra.

Na volta, passamos em frente a um dos três cinemas da cidade, chamado Gil Vicente, e resolvemos, espontaneamente, assistir ao filme do Zorro que estava começando. Compramos uma barra de chocolate e entramos.

A sala é daquelas como as dos cinemas paulistas antigos, que tem até o balcão na parte de cima e uma tela enorme! Mas minha maior surpresa foi quando, no melhor do filme, as luzes se acenderam e todos se levantaram: intervalo. O Bonny me explicou que todos filmes em Moçambique têm intervalo independente da sua duração. Mais surpreendente que o intervalo foi quando o filme recomeçou e todos os trailers que já haviam passado no início do filme passaram novamente!

Na volta, como já estava escuro, o Bonny, que mora no subúrbio de Maputo, me acompanhou a pé até a porta de casa. Fui deitar com a sensação de que acabara de ganhar um amigo.

Naquela mesma semana recebi um telefonema do Bonny me convidando para ir almoçar na sua casa. Fiquei super animada, afinal além de conhecer a casa e família do meu amigo, teria a oportunidade de sair do centro de Maputo e conhecer um pouco mais da periferia, onde a maior parte dos moçambicanos vive.

Maputo é constituída de cinco distritos urbanos. No total são 50 bairros compondo a cidade, sendo as maiores concentrações de moradores em bairros como Central B, Chamanculo A, Maxaquene A e B, Mavalene A e B e Inhagoia A.

Muitos desses bairros possuem suas próprias estruturas, funcionando como diversos centros comerciais. A autoridade máxima neles é o secretário que é nomeado pela comunidade. Além disso, têm seus estabelecimentos comerciais, pontos de lazer e diversão como campos de futebol, danceterias e bares, e às vezes, até mesmo suas próprias normas.

Dependendo das condições das casas elas podem ser chamadas de caniço (uma espécie de bambu com o qual se constroem as casas).

Encontrei com o Bonny no KFC, aquela lanchonete que vende hambúrgueres de frango que existia no Brasil uns anos atrás. Tivemos que pegar dois chapas para chegar no seu bairro, chamado Ferroviário, por causa da linha de trem que cruza o local. Saindo do centro de Maputo acabam as vias pavimentadas e vira tudo terra. Chegando lá, descemos do chapa e entramos numa labirinto de casinhas de caniço e de alvenaria.

Bairro Ferroviário, em Maputo. Arquivo pessoal

Estranhamente estava me sentindo completamente segura e em nenhum momento me senti ameaçada ou em perigo.

Andamos por cerca de 15 minutos até chegar a sua casa. Me chamou a atenção como as casinhas eram bem organizadas e quase todas possuíam um pequeno quintal, sempre muito arborizado. A sensação de comunidade também era grande, tendo em vista que quase todas as famílias do bairro se conheciam por nome e se ajudavam como podiam.

Chegamos à casa do Bonny.

Essa é minha casa, Carol! — falou, orgulhoso abrindo o portãozinho que dava para um quintal grande — Essa é minha parte favorita da casa — disse ele, apontando para uma estrondosa mangueira que ocupava boa parte do quintal, oferecendo uma enorme sombra — Não há nada como tirar um cochilo na sombra dessa mangueira, Carol, acredite em mim!

Na porta da casa estava sentada uma japonesa miúda de uns vinte anos, rodeada por seis crianças que olhavam para cartas dispostas no chão.

— No, no, no, no! — Dizia ela enfaticamente para as crianças apontando para uma determinada carta.

Seu nome era Keiko e estava conhecendo o país por meio da ONG que o Bonny trabalhava e se hospedando na casa dele. Sem falar nenhuma palavra de português e muito mal o inglês, ela estava determinada a ensinar para as crianças um jogo de cartas, que pelo que eu entendi, era como o nosso rouba-monte.

Observei a cena por alguns instantes e vi que aos poucos as crianças iam entendendo por meio de seus gestos a lógica do jogo e explodiam em gargalhadas quando alguém roubava as cartas um do outro. Ela ficava toda satisfeita.

— Venha Carol, deixe eu te mostrar o resto — falou o Bonny entrando na casa de alvenaria.

A casa era relativamente grande, com três quartos, todos com mosquiteiros sobre as camas para se proteger do mosquito da malária, uma sala com uma mesa para quatro pessoas com uma espécie de cozinha no canto e um banheiro.

Bonny e sua mãe, Esmeralda no quintal de sua casa. Arquivo pessoal

— Esta é minha mãe, Esmeralda — disse ele, me apresentando a mãe, uma senhora de seus 40 anos, muito tímida, com os mesmos olhos do Bonny.

— Venha, vamos agora preparar o almoço — me disse, voltando para a a cozinha, que consistia de uma pequena mesa com um cooker de dois pratos. O Bonny nos preparou ovos fritos com pão e refrigerante.

Depois do almoço, Bonny, Keyko e eu seguimos até a linha do trem tentando ter uma conversa em que os três conseguissem se entender. Vimos o trem passar e o Bonny nos contou um pouco da história do bairro.

Em seguida, fomos até a casa da tia do Bonny, que ficou felicíssima com a nossa chegada.

— Ah Bonny, que bom te ver! Venham, entrem, vou preparar um café — disse, extremamente simpática e hospitaleira.

Bem mais extrovertida que a mãe do Bonny, ela estava muito curiosa sobre mim e a Keiko e tinha um riso muito fácil. Provavelmente se sentindo à vontade, a Keiko tirou sua máquina digital da mochila e com gestos mostrou que queria tirar uma foto dela. A tia do Bonny não poderia ter ficado mais envaidecida.

A japonesa Keiko e a tia do Bonny posando para nossa sessão de fotos

— Vou ficar conhecida no Japão, Bonny! — disse ela, posando para a foto.

A grande surpresa e empolgação, entretanto, veio quando depois da fotografia a Keiko mostrou no visor a fotografia que havia acabado de tirar. Até então as máquinas digitais ainda eram raridade por ali. Ela ficou completamente encantada e fizemos cerca de 15 minutos de ensaio fotográfico com ela. Foi muito divertido!

O fim da tarde foi chegando e o Bonny foi comigo pegar o chapa de volta para Maputo. Lá fizemos o nosso programa oficial: ir ao cinema Gil Vicente com direito a intervalo no meio do filme e chocolate sul-africano vendido na porta do cinema.

Me senti extremamente agradecida por aquele dia, pela oportunidade de ter visto uma realidade tão diferente, desconstruir meu medo de subúrbios, sentir um senso de comunidade que raramente experimentei nos bairros que vivi em São Paulo, me inspirar pela coragem da Keiko e da linguagem universal e me encantar pelo entusiasmo da tia do Bonny por algo tão simples como uma fotografia. Certamente ainda tinha muito o que aprender.

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