Visitantes inesperados, por Ilia Repin

A. A. Alvarez — Aplicações da teoria de L. S. Vigotski na Psicologia Clínica (1998)

Publicado em Revista Cubana de Psicología, v. 15, n.º 2, 1998, pp. 124–128. Tradução por Hélio C. Donadi.

Bruno Bianchi
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9 min readJun 24, 2024

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Introdução

Talvez em nenhuma outra área se revele o caráter profundamente humanista da concepção de Vigotski do que na defectologia, na clínica das afecções cerebrais e na psicopatologia. É lá, na doença, no defeito, na insuficiência e na incapacidade, que as perspectivas de sua teoria se delineiam plenamente, cujo núcleo de sentido é o profundo otimismo nas possibilidades do homem, como sujeito de sua atividade, criador de sua própria história, artífice de seu desenvolvimento. Ele utilizou o material patológico como uma via para corroborar sua concepção sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. O objetivo do artigo consiste em destacar algumas ideias gerais apresentadas por L.S. Vigotski, que têm plena vigência na área da Psicologia Clínica, em particular, na Neuro e Patopsicologia.

1. O problema da desintegração da psique

As pesquisas em Anatomia Patológica e Histologia demonstraram que, em doenças cerebrais, a formação mais jovem, a saber, a formação do córtex cerebral, é afetada, especialmente aquela que se desenvolveu filogeneticamente mais tarde. Pesquisas experimentais em animais, realizadas por Pavlov e colaboradores, confirmaram o princípio de que, no processo patológico, o que foi adquirido mais recentemente é alterado mais precocemente. Os reflexos condicionados adquiridos são destruídos mais facilmente na doença cerebral do que os incondicionados.

A experiência clínica também atesta que, em muitas doenças psíquicas, os pacientes deixam de realizar formas mais complexas de atividade, mantendo habilidades e hábitos simples. Além disso, algumas formas de alterações na afetividade, pensamento e comportamento dos pacientes realmente se assemelham, em sua estrutura externa, ao pensamento e comportamento de uma criança em determinadas etapas de seu desenvolvimento.

Partindo da concepção de regressão da psique do doente a um nível mais baixo na relação ontogenética, alguns pesquisadores, como Ajuriaguerra, tentam encontrar correspondências entre a estrutura na dissolução ou desintegração da psique e uma etapa específica da infância. No entanto, uma análise mais minuciosa, baseada nos postulados de Vigotski, revela que essas observações são infundadas.

Em primeiro lugar, nem sempre na doença se manifesta a dissolução das funções psíquicas superiores. Em segundo lugar, a correspondência do comportamento dos doentes com as etapas da infância demonstra uma analogia externa apenas, não uma correspondência real.

Vamos verificar isso com os seguintes casos: na patologia do pensamento chamada diminuição do nível de generalização (pensamento concreto), os doentes com graves lesões orgânicas cerebrais podiam, em seus julgamentos e ações, lembrar crianças em idade escolar. Nos julgamentos dos doentes, quando técnicas cognitivas eram aplicadas, predominavam sinais concretos e situacionais. As formas generalizadoras de sistematização eram substituídas por formas concretas, relacionadas situacionalmente.

Outra analogia: em sujeitos esquizofrênicos e em crianças normais de 7 a 9 anos, estudados quanto à esfera motivacional (desejos), através do método direto, foi encontrada semelhança em relação às necessidades de posse, alimentação e diversão em suas hierarquias motivacionais.

No entanto, a presença desses desejos no adulto doente dificulta sua convivência social, dadas as demandas impostas pela sociedade. Além disso, as vias utilizadas para satisfazer esses desejos são inadequadas. Por outro lado, essas necessidades têm um caráter autônomo e não se vinculam a outras motivações. No caso da criança, essas necessidades são mediadas para alcançar outros objetivos.

Assim, a análise psicológica do material clínico mostra que a estrutura do comportamento, motivação e atividade mental do adulto doente não corresponde à estrutura do comportamento, afetos e pensamento da criança. Nenhuma doença leva à repetição das características próprias do desenvolvimento dos processos psíquicos de acordo com as etapas da infância. O desenvolvimento da psique é construído na ontogênese e, portanto, depende do modo de vida da criança.

Como apontado por Vigotski, a doença segue leis biológicas que não podem repetir as leis do desenvolvimento. Mesmo em pacientes nos quais ela lesiona os setores jovens, especificamente humanos, do cérebro, a psique do homem doente não adquire a estrutura da psique da criança. A perda da capacidade de pensar e raciocinar em um nível mais alto apenas significa que eles perderam formas mais complexas de comportamento e conhecimento, mas essa perda não significa um retorno à infância. Os diferentes tipos de doenças levam a quadros qualitativamente distintos de dissolução. Os dados das pesquisas psicológico-experimentais são valiosos para a construção da teoria psicológica.

2. A localização das funções psíquicas superiores e as afecções cerebrais

A concepção histórico-cultural da psique permitiu a Vigotski abordar de maneira inovadora o problema da localização das funções psíquicas, e, em geral, a questão da relação entre o cérebro e a psique. Destacam-se três ideias fundamentais: 1) a natureza mutável das conexões interfuncionais durante o desenvolvimento infantil, 2) a formação de sistemas dinâmicos complexos que integram funções elementares, 3) a existência de relações extracorticais nas atividades dos centros cerebrais que sustentam o funcionamento das formas psíquicas superiores.

Essas teses e a concepção histórico-cultural resolveram a disputa entre a localização estrita e pontual das funções psíquicas e sua oposta, a global. Vigotski também formulou a importante lei de como as diferentes funções sofrem, dependendo se as afecções ocorrem nas fases iniciais do desenvolvimento ontogenético ou quando o processo de formação essencialmente terminou.

Para chegar a essa conclusão, estudou crianças e adultos com lesões cerebrais por vários anos. Em casos de alteração do cérebro por defeito cerebral, o centro superior mais próximo à área afetada é predominantemente afetado funcionalmente, enquanto o centro inferior ligado à área afetada sofre menos. Já em caso de destruição da função, o centro inferior ligado à área lesionada é afetado fundamentalmente, enquanto o centro superior, do qual depende funcionalmente a área dada, sofre relativamente menos.

Vigotski estudou, por exemplo, sujeitos com agnosia óptica, onde a lesão visual causa incapacidade de reconhecer e identificar objetos à frente. Em adultos, a capacidade de raciocinar sobre objetos não reconhecidos permanece, e os conceitos sobre objetos não são gravemente alterados. No entanto, em crianças, a situação é diferente; não apenas a visão é afetada, mas também o desenvolvimento da fala quase nunca ocorre, mesmo com as possibilidades sensoriomotoras preservadas.

Resumindo sua lei, Vigotski estabelece que o desenvolvimento ocorre de forma ascendente, enquanto a destruição ocorre de maneira descendente. Portanto, a localização das funções psíquicas superiores é cronogenética, resultado do desenvolvimento histórico das relações características de diferentes partes do cérebro que se orientam ao longo do desenvolvimento.

Esse princípio da localização cronogenética permitiu a Vigotski tirar conclusões importantes sobre os métodos de compensação de defeitos originados por lesões: nos cérebros humanos, as funções compensatórias são assumidas pelos centros superiores; nos cérebros em desenvolvimento, são os centros inferiores que as desempenham em relação à área afetada. Ele destacou que a objetivação da função alterada, sua conversão em atividade externa, é uma das principais formas de alcançar a compensação.

Vigotski se opõe ao localizacionismo de sua época, afirmando que cada função específica nunca está ligada à atividade de um único centro, representando sempre o produto da atividade integral de centros rigorosamente diferenciados e hierarquicamente interligados. Ele enfatiza que a diferenciação e a integração não se excluem mutuamente, mas uma pressupõe a outra.

Essas ideias se tornam evidentes nos estudos que realizou em afecções orgânicas do cérebro. Em qualquer lesão focal (afasia, agnosia ou apraxia), as funções não diretamente ligadas à área danificada sofrem de maneira específica e nunca apresentam uma diminuição regular. Além disso, uma mesma função, não relacionada ao setor lesionado, também se altera de maneira peculiar em casos de lesões de localização diferente, não manifestando a mesma diminuição ou desorganização em diferentes locais focais. Essas ideias foram precursoras do que posteriormente seria chamado de Neuropsicologia.

3. As alterações do pensamento

Vigotski, ao estudar o pensamento como uma função psíquica superior, caracteriza-o em pacientes esquizofrênicos, retardados mentais, entre outros. A análise das diferentes formas de alteração da atividade do pensamento constitui um material rico que destaca a legitimidade do reconhecimento da especificidade do pensamento humano. Segundo Vigotski e seus seguidores, o pensamento é considerado como o processo pelo qual se domina o sistema de operações e conhecimentos elaborados sócio-historicamente.

A interpretação dos processos psíquicos, incluindo o pensamento, como propriedades espirituais internas fechadas em si mesmas, foi o que Vigotski tentou refutar com suas pesquisas. Ele afirmou várias vezes que os processos psíquicos surgem na atividade conjunta das pessoas, na comunicação entre elas, e que a ação, inicialmente dividida entre duas pessoas, se torna posteriormente um modo próprio, internalizado no comportamento humano.

Já nos anos 1930, ele observou que a criança com atraso mental, ao aprender um sistema óbvio de relações, não é capaz de sistematizar sua experiência com base na generalização e abstração. Ele também escreveu sobre as alterações do pensamento em esquizofrênicos, expressando a ideia de que neles ocorre uma dissolução da função de formação de conceitos, os quais descem ao nível de complexos, ou seja, estruturas de significado concreto, com a alteração do significado das palavras. Mais tarde, Zeigarnik consideraria que isso ocorre apenas em uma parte limitada dos esquizofrênicos. Na maioria dos pacientes, seu pensamento é alterado não porque operam com ligações concretas, mas, ao contrário, porque em seus julgamentos predominam ligações inadequadas às relações concretas da vida.

Referindo-se ao pensamento em sua conhecida obra Pensamento e Linguagem, ele apontava: “O próprio pensamento não tem origem em outro pensamento, mas na esfera motivacional de nossa consciência, que abrange nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções”.

Essa unidade do cognitivo e do afetivo, tanto na norma quanto na patologia, permite compreender que a existência de motivos e atitudes distorcidos em pacientes psíquicos possa causar alterações em suas percepções, memórias, julgamentos, etc.

No caso do pensamento, observamos que, juntamente com a atualização das propriedades, características e relações entre objetos e fenômenos condicionados pela experiência passada, os pacientes podem ressurgir com ligações e relações adequadas (do ponto de vista da nossa representação do mundo), que adquirem sentido graças às alterações motivacionais do paciente. Essas ideias sobre a abordagem personalizada dos processos psíquicos, que a orientação psicopatológica desenvolveria posteriormente, serviriam para considerar, no caso do pensamento, assim como em outros processos, alterações determinadas pelo componente motivacional.

4. A zona de desenvolvimento proximal e a patologia

A defectologia, como se sabe, constituiu o tema de grande parte de suas primeiras pesquisas e permaneceu no centro de seus interesses científicos. Destacaremos brevemente, entre as várias contribuições que fez nesse campo, seu conceito de desenvolvimento proximal, devido à grande importância que tem no trabalho clínico.

A zona de desenvolvimento proximal é definida pelo que a criança pode realizar em colaboração, sob a direção e com a ajuda de outro (o professor, o adulto, seus colegas). Embora a zona de desenvolvimento proximal defina aquelas funções infantis em processo de maturação, presentes em estado embrionário, também pode ser aplicada a funções que foram alteradas ou desintegradas pela doença. Não apenas a Psicopedagogia, mas a Psicologia Clínica pode aplicar esse conceito em indivíduos com distúrbios neurológicos ou psiquiátricos. A zona de desenvolvimento pode ser utilizada pelo psicólogo clínico na realização de tarefas diagnósticas e psicocorretivas, tanto em crianças quanto em adultos.

No campo do diagnóstico e reabilitação com pacientes adultos, a utilização dos níveis de ajuda na realização de tarefas experimentais, especialmente do tipo cognitivo, é uma das muitas formas em que esse conceito se expressa. As formas de ajuda podem ser muito diversas e podem ser agrupadas em 3 tipos:

1º Nível: ajudar é até mesmo fazer perguntas novamente, pedir que repita uma palavra, aprovar as ações do paciente (certo-errado), pedir explicação do porquê fez uma ou outra ação, respondeu de determinada maneira.

2º Nível: esse nível é caracterizado pela sugestão, o conselho para agir de uma maneira ou de outra. O psicólogo também pode mostrar ao paciente como agir e pedir que repita individualmente.

3º Nível: refere-se a um ensino prolongado de como realizar a tarefa. No campo diagnóstico, o caráter dos erros, a atitude assumida em relação a eles, assim como a assimilação ou não da ajuda e de seu nível, permitem determinar se um sujeito é normal ou tem atraso mental, o grau de atraso mental e a que escola deve frequentar, diferenciar se o subdesempenho intelectual ou as falhas intelectuais são causados por causas emocionais ou não, se estamos diante de um paciente psicótico, etc.

Por outro lado, permite também, através do estudo funcional do sintoma, considerar a possível afetação local do cérebro. No campo reabilitatório, a própria utilização das metodologias, utilizando principalmente os níveis 2 e 3 de ajuda, e enfatizando inicialmente o componente externo na função psíquica superior que se pretende restabelecer. A incorporação do esporte, do jogo, da música, da expressão gráfica, etc., são vias que, organizadas pelo terapeuta do ponto de vista individual e grupal, permitem ou contribuem para moldar a função normal que foi alterada. Existem inúmeras ideias propostas por Vigotski que têm vigência e aplicabilidade no trabalho clínico; aqui, apenas refletimos algumas delas. A Psicologia Clínica é urgida na utilização de conceitos e princípios provenientes de uma Psicologia Geral e da Personalidade de orientação marxista, e Vigotski constitui uma boa fonte.

Referências

LURIA, A.R. (1977): Las funciones corticales superiores del hombre. Ed. Orbe, La Habana.

REGO, T.C. (1995): Una perspectiva histórico-cultural de la educación. Ed. Petrópolis, Brasil (en portugues).

SHUARE, M. (1990): La Psicología Soviética tal y como yo la veo. Ed. Progreso. Moscú.

VIGOTSKI, L.S. (1966): Pensamiento y Lenguaje. Ed. Revolucionaria. La Habana.

VIGOTSKI, L. S. (1987): Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Ed. Científico-Técnica. La Habana.

ZEIGARNIK, B.W. (1980): “Sobre la correlación de la disolución y el desarrollo de la psiquis”. Cap. IV del libro Esbozos de Psicología del desarrollo anómalo de la personalidad, de B.W. Zeigarniky B.S. Bratus. Ed. Universidad Estatal de Moscú (en ruso)

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Bruno Bianchi
Kátharsis

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB