A tentação de Santo Antônio (1650), de Joos van Craesbeeck

B. Bianchi — Arte e visão de mundo decadente (2020)

A crítica das vanguardas como problema filosófico

Bruno Bianchi
Published in
22 min readAug 3, 2020

--

Para baixar o arquivo em versão PDF, clique aqui.

Compreender o substrato ontológico das categorias estéticas do sistema lukácsiano é um momento fundamental para a correta apreensão do significado da defesa do realismo tanto nos seus primeiros textos estéticos de maturidade (os escritos de Moscou e de Berlim da década de 1930, após a sua “virada marxista”[1]) quanto nas suas últimas obras. Destaca-se também aqui não apenas uma manutenção de algumas de suas concepções, mas também uma continuidade e aprofundamento tanto em seus aspectos propositivos (o realismo como correta apreensão da totalidade intensiva da realidade na especificidade do reflexo estético) quanto críticos (a crítica ao expressionismo e às vanguardas, de um lado, e do naturalismo e dos romances de reportagem de outro). É através desta justa apreensão do realismo como elemento estético intrínseco ao Materialismo Histórico-Dialético que podemos compreender as análises do autor sobre determinados autores e estilos não como “gosto pessoal” (o que significaria reduzir a objetividade das categorias estéticas a um subjetivismo puro), mas como defesa da função[2] da obra de arte de desvelar o aspecto fetichizado da realidade imediata.

Se aparência e essência coincidissem, toda ciência seria supérflua, tal como afirmara Marx, podemos afirmar o mesmo em relação à arte. Ainda que percorra um caminho diferente da ciência ou de outras formas de objetivação humana, a arte fundamentalmente busca ir além da imediaticidade do real, dos aspectos cotidianos, fenomênicos e passageiros da realidade. É, portanto, um processo que visa ir da aparência à essência, do passageiro ao duradouro.

Dentro de uma perspectiva histórico-dialética tal como proposta pelos fundadores do socialismo científico, o desenvolvimento histórico do ser humano tem como ato fundamental a produção e reprodução da vida pelo ato de trabalho. Deste, diversas outras formas de atividade humana se desdobrariam, visto que, conforme são satisfeitas as necessidades humanas mais elementares, formas mais desenvolvidas e complexas se produzem. Neste movimento contínuo de interrelação entre sujeito e natureza, e sujeito e sujeito, surgem necessidades específicas de caráter estético.

A necessidade da arte, portanto, não é uma demanda que vem de cima, que desce sobre os sujeitos ou que brota “de dentro” unicamente como expressão individual do ser. Ela é uma atividade construída historicamente como forma de relação e ação entre os seres humanos e entre sujeito e natureza.

Tendo em vista sua dimensão fundamentalmente ontológica, a atividade estética encontra seu ponto de partida e de chegada na própria vida cotidiana do ser humano. Para Lukács, a vida cotidiana seria como um rio do qual as diversas formas de práxis (como a ciência a religião e a arte) se desmembrariam para a ele retornar. Desta forma a própria cotidianidade se tornaria mais rica e complexa e produziria novos avanços e atualizações nas formas de atividade não-cotidianas.

Se a arte está ligada à cotidianidade e esta não é um aspecto imutável da sociabilidade, podemos inferir que o papel que a arte ocupa dentro do todo também é sobredeterminada por totalidades de ordem maior (retornaremos a esse ponto mais adiante). Cada sociedade possui sua cotidianidade, seus elementos diários, rotineiros e repetidos, seus pré-conceitos e formas de ser instituídos. Desta forma, cada época produz também sua arte[3] que vem a responder determinadas necessidades sociais.

Inserida na totalidade social de sua época, é evidente que a obra de arte reflete em si as mazelas desta época, as contradições inerentes à sua totalidade. Este fenômeno é evidente, por exemplo, no surgimento do Naturalismo na segunda metade do século XIX e nos movimentos de vanguarda artística do início do século XX — com destaque para o expressionismo.

Não cabe aqui uma análise completa destes movimentos artísticos, visto a complexidade, densidade e variedade que os “ismos” tomaram forma historicamente. Limitaremos a análise aos aspectos mais histórico-filosóficos da questão, ou seja, a visão subjacente a estes movimentos não só para a compreensão de sua essência histórica, mas também da crítica lukácsiana na sua defesa do realismo.

Iniciemos pelo naturalismo. Como aponta Sodré (1965), enquanto o romantismo foi o movimento literário da burguesia ascendente, o naturalismo é a expressão de sua decadência. Marca a época naturalista não só a “virada reacionária” da burguesia após o fracasso das revoluções de 1848 na Europa, mas também uma intensa produção científica, especialmente nas ciências naturais, que consolidam o positivismo e a lógica formal como formas centrais de compreensão da realidade. Entre essa produção científica, podemos destacar as teses de Darwin sobre a origem das espécies, a determinação das leis da termodinâmica por Mayer e Joule, o avanço dos estudos sobre a eletricidade e sobre a termo química, as descobertas fundamentais de Pasteur sobre os organismos microscópios, entre outros. Da mesma forma, tais descobertas eram expandidas a outros campos e novas ciências: especialidades desmembradas das áreas consolidadas, fragmentos que rompem com o todo na expectativa de uma compreensão mais específica do fenômeno. Surge a psicologia, rompida com a filosofia e agora associada à fisiologia e à biologia, resultando na frenologia. Lombroso desenvolveu as teses associando a criminalidade à aspectos fisiológicos e hereditários do homem. Tomam forma as primeiras teses raciais e o darwinismo social. A burguesia passa a exercer uma atividade meramente contemplativa, laboratorial, deixando de lado os conflitos sociais. Sua ciência volta-se cada vez mais para o empirismo e o pragmatismo, atendendo as demandas mais emergentes de um sistema econômico em expansão mundial a partir da colonização. O acúmulo quantitativo de informações superficiais busca suprimir a perda qualitativa do conhecimento com a destruição da totalidade subjacente à essência dos fenômenos. A economia se dissocia da sociologia, da política e da história e a totalidade social se rompe em um caleidoscópio no qual as partes não dialogam e precisam buscar em si mesmas e em mistificações cada vez mais idealistas o preenchimento das lacunas deixadas pelo abandono da rica totalidade mediatizada em favor da especialização da nova ciência positivista[4]. Tal transformação, certamente, não poderia deixar de afetar a literatura:

A simples busca de suportes científicos, destinados a conferir grandeza ao que não a podia conter em si mesmo, correspondia a uma confissão de fraqueza: era preciso encontrar, fora da arte literária, algo suplementar, que a reforçasse, que lhe consolidasse a estrutura, como que lhe constituindo os fundamentos. A aceitação de que a realidade se resumia naquilo que era perceptível pelos sentidos existia já entre os realistas que preludiam o naturalismo. Taine e Renan gostavam de proclamar-se “positivistas”, no sentido de apegados a coisas provadas, a coisas visíveis, a coisas facilmente perceptíveis, dotadas, aparentemente, de uma lógica, a lógica formal, evidentemente. Suprimindo os outros aspectos, os que escapavam à visão simplista e direta, pensavam resolvê-los. Daí a confiança absoluta, não na ciência, como parecia, mas no estágio a que a ciência havia ascendido, dotando-o de um sentido absoluto (SODRÉ, 1965, p. 18).

É neste turbilhão de transformações que surge o naturalismo, visto — erroneamente — por alguns como a sucessão lógica do realismo de Balzac, Stendhal, Tolstói, etc. Para o naturalismo, “era preciso mostrar tudo, para que a verdade surgisse” (SODRÉ, 1965, p. 20), mantendo, ao fim, uma postura hostil em relação à corrente realista justamente por uma suposta ausência de “objetividade” em seus escritos, por uma excessiva romantização do real. Baseada na ilusão de que o sentido do real poderia ser resgatado pela força da acumulação, o naturalismo se consolida como o “complemento” estético da lógica positivista do fim do século XIX:

Ela [a teoria naturalista] surgiu sob o influxo do positivismo, paralelamente — e não por acaso — ao surgimento da sociologia moderna, metodologicamente separada da economia. Tal noção “científica” da vida social, que entendia o homem como um produto mecânico do meio ambiente e da hereditariedade, eliminava da literatura, por meio do seu mecanicismo, justamente os conflitos mais profundos da vida humana. Ela os desprezava como conflitos romanticamente exagerados, restritos ao indivíduo, que rebaixam a dignidade objetiva da literatura alçada à condição de ciência (pensemos nas observações críticas de Taine e, especialmente, de Zola sobre Balzac). A configuração real do homem é substituída por uma penca de pormenores superficiais. O lugar das grandes erupções da psique humana contra as facetas inumanas do desenvolvimento social passa a ser ocupado por longas descrições do aspecto animalesco-elementar no homem; o lugar da grandeza ou fraqueza humana nos conflitos com a sociedade, por longas descrições de atrocidades exteriores (LUKÁCS, 2016, p. 139).

Seu principal representante mundial, Émile Zola, incorpora e transfere quase perfeitamente os elementos das descobertas das ciências naturais para o âmbito da literatura. Acreditava que os fenômenos exteriores e superficiais eram vinculados por leis fixas e imutáveis, que podiam ser decompostas nos seus elementos mais simples para explicar o todo. Procurava “fazer em dois corpos vivos aquilo que os cirurgiões fazem em cadáveres”, entendendo as paixões e os vícios não como produtos de um desenvolvimento histórico-social, mas sim, nas palavras de Taine, como “produtos (químicos) como o açúcar e o vitríolo”. O escritor francês chegava assim a uma conclusão radical: “Já não desejo mais observar o homem através dos vidros coloridos da metafísica, e sim como um agregado de elementos histológicos, de fibras e de células, governados por um poder unificador — o sistema nervoso”. Tinha diante da realidade uma postura distanciada, neutra, em função de uma pretensa objetividade contra a tomada de posição do artista; isto resultava não em uma representação mais fidedigna dos fenômenos, mas fundamentalmente em uma homogeneização dos fatos, na impossibilidade do autor de conseguir selecionar o essencial do superficial, o duradouro do fugaz. Tratava-se, como aponta Sodré, de “transformar a literatura em ciência” (1965, p. 27).

A aproximação da literatura dos novos achados da ciência natural do século XIX no naturalismo se torna ainda mais clara avaliando não só como o autor buscava representar, mas no que representava em suas obras. Suas personagens eram determinadas pela hereditariedade, pela raça, pela genética, pelo meio em que se desenvolviam (em uma perspectiva vulgar da sociologia). Sua representação do camponês e do operário, ainda que pautada numa intenção honesta e numa pesquisa de campo genuína, reduzia-se à uma figuração animalesca e suja em decorrência das condições de vida precárias da população. Sua representação, supostamente neutra e objetiva, não fazia julgamentos acerca dessa situação, não questionava a situação da classe trabalhadora que retratava, tornando-se uma soma de descrições superficiais e, justamente por isso, fundamentalmente incorretas e parciais. As aspirações destas personagens eram motivadas pelos desejos mais animais. A criminalidade e a violência não eram fundamentadas em uma representação da totalidade social na qual os sujeitos eram inseridos, mas vistas como traços genéticos, como uma condição humana imutável. A obra de Zola “é contemporânea da tese de que o gênio está ligado a uma tara degenerescente e à forma do crânio, e outros sub ou pseudo conceitos científicos, como os que pregam a superioridade de raças ou de climas” (SODRÉ, 1965, p. 37).

Foi necessário limitar a análise ao representante mais consolidado do naturalismo, embora os caminhos pelos quais o estilo progrediu após Zola sejam vários[5]. Importante destacar aqui apenas a ideia central do naturalismo na sua aproximação do positivismo e do essencialismo que surgiram e se tornaram predominantes neste período. O erro do naturalismo consistiu, antes de tudo, em considerar os fenômenos aparentes como a realidade total, como a verdade inteira, e não como uma parcialidade do movimento do real, excluindo qualquer possibilidade de essência dos fenômenos descritos. Sua atividade era voltada para a ilusão de que o mero acúmulo quantitativo de informação (o descrever) seria suficiente para uma figuração verdadeira dos fatos, não percebendo que a realidade social é uma substância viva e dinâmica cuja essência muitas vezes contradiz sua aparência fenomênica.

O conhecimento sensível oferece dados importantes a respeito dos fenômenos, sem dúvida, mas todos esses dados, independente de sua quantidade, não vão além dos aspectos e nexos externos, superficiais. Ora, a arte deve descobrir através do externo, atrás do que se percebe imediatamente, o fundamento, a essência, isto é, o outro aspecto, o interno, o oculto. No processo do conhecimento, o homem depara, antes de tudo, com o fato de que os aspectos exteriores não coincidem com os aspectos interiores, a forma com a essência. A arte supera essa contradição dialética quando consegue fundir o universal e o particular: começa pela aparência para atingir a essência, isto é, destaca da massa de elementos colhidos pela observação os elementos comuns, o traço geral, o típico. O naturalismo, aferrado aos aspectos exteriores e superficiais, não conseguiu chegar a essa fusão (SODRÉ, 1965, p. 38).

É por esta limitação do método naturalista que suas obras, ao tomar uma parcela da realidade como a realidade toda, acaba por desfigurar a própria realidade na sua representação, voltando-se para o grotesco, para o patológico, na tentativa de explicar a essência humana através da sua manifestação particular dentro do capitalismo decadente. Sem conseguir atingir a essência dos fenômenos que buscava representar, o naturalismo almeja “tapar o buraco” com um acúmulo de detalhes secundários, de descrições superficiais, retratando, ao fim, uma realidade estática, morta.

Postura semelhante — embora muito menos desenvolvida — possui Lukács em relação ao expressionismo. Esta tendência artística, motivo de debates intensos entre os teóricos marxistas nas décadas de 1920 e 1930 tanto em seus aspectos formais quanto na sua utilização política e filosófica, era vista por Lukács como a outra face da decadência ideológica burguesa, complementar ao naturalismo, ainda que possuísse forte base anticapitalista e humanista. Isto porque, para o autor, o expressionismo estaria para o irracionalismo subjetivista assim como o naturalismo estaria para o positivismo/racionalismo formal.

Antes, é importante uma ressalva acerca do termo decadência, de forma a evitar possíveis erros no tratamento do assunto. Isto porque em determinado momento do seu desenvolvimento histórico, o expressionismo foi colocado como arte degenerada [Entartung] pela ideologia nazista (resultando na exposição “Arte Degenerada” em 1937). De forma alguma o uso de Lukács dos termos decadência [Verfalls] se aproxima da sua utilização pelos ideólogos nazistas (embora seja passível de críticas e contestações). Enquanto regime fascista fazia uma crítica ao expressionismo e outros movimentos artísticos da época como um elemento do saudosismo classista, a crítica de Lukács não há um saudosismo (embora interpretações superficiais de seus escritos apresentem este argumento), sendo, na realidade, uma crítica ao subjetivismo e à visão de mundo fragmentada do expressionismo o motivo de sua crítica, como veremos mais adiante[6].

A base formal do expressionismo se daria pela teoria da montagem, defendida por autores como Ernst Bloch, Walter Benjamin e Bertold Brecht. Esta se apresentaria como resultado da fragmentação da própria realidade, ou seja, da destruição de uma totalidade, resultante do avanço desmedido do capitalismo na virada do século XIX ao século XX. Enquanto a obra de arte clássica (o realismo clássico, nos termos de Lukács) seria identificada por uma totalidade à qual as partes da narrativa respondem, a obra de arte vanguardista, com base na técnica da montagem, revela um processo contrário: as partes não só não respondem ao todo, como podem inclusive contradizer-se entre si. Para os defensores da montagem, portanto, seria utópico e falso uma obra de arte que representasse a totalidade (tal como o fazia o realismo clássico) pois esta havia sido destruída na realidade mesma.

Entretanto, a montagem e sua interpretação da realidade como desagregação não seriam suficientes para Lukács compreender o expressionismo como expressão do irracionalismo. Falta ainda um segundo elemento de importância fundamental: a subjetivação da objetividade.

A “deformação subjetiva” do que é objetivo, princípio estilístico do expressionismo segundo Peter Szondi (2001), é aqui a tentativa dos autores de singularizar o homem, no sentido de isolá-lo das determinações sociais que o compõem. Segundo o autor, “a desvinculação do homem singular em relação ao referencial inter-humano corresponde […] à aspiração máxima do expressionismo: a apreensão do homem com base numa ‘contemplação da essência’. O isolamento vira, portanto, método” (SZONDI, 2001, p. 108). O sujeito não se encontra mais atado a dever, moral, família ou sociedade, como dita Kasimir Edschmid, um dos expoentes do expressionismo.

O isolamento do sujeito no expressionismo não é apenas um “complemento” da montagem como princípio artístico, mas consequência da destruição da totalidade social que o expressionismo busca retratar. É resultado da ausência de mediações dentro da obra, ausência perceptível tanto no simbolismo (que precede o expressionismo) quanto no naturalismo. Ainda que surja como crítica ao positivismo, a teoria expressionista acaba por realizar uma crítica romântica ao capitalismo, e neste sentido idealista. O refúgio do sujeito em si mesmo para opor-se à opressão e desagregação do real, no fim, acaba por ser um protesto vazio.

As correntes contrárias à “cientificidade” da literatura de fato apelam para a vida dinâmica da interioridade humana, mas abstraem as relações sociais dos homens, que caracterizam como ‘superficiais” em oposição abstrata ao naturalismo, rejeitando e fetichizando em correspondência, de um modo francamente místico, as assim chamadas “forças eternas” da existência. Dessa forma, surge, por seu turno, um reflexo desfigurado e abstratamente superficial na vida humana, pois falta a luta real dos homens com a sociedade, na sociedade; faltam as determinações objetivas da vida humana, mediante as quais a psique começa a obter e desdobrar sua riqueza interior (LUKÁCS, 2016, p. 140).

Na sua crítica à montagem, Lukács não considera errônea sua utilização como técnica ou momento da composição artística, mas na percepção deste momento como realidade, e não como momento (LUKÁCS, 1966). Assim como na sua crítica ao naturalismo, aqui Lukács evidencia a limitação do movimento artístico em questão na medida em que tomam a realidade tal como ela se apresenta de imediato, não percebendo a relação dialética entre aparência e essência.

O que isto significa em última instância? Em termos gerais, podemos destacar dois elementos da crítica lukácsiana ao expressionismo. Em primeiro lugar, a defesa do princípio da objetividade segundo a teoria do marxismo-leninismo, isto é, “o princípio segundo o qual as categorias do pensamento não são mais do que expressões das leis do mundo objetivo” (OLDRINI, 2017, p. 171). É, portanto, uma defesa da distinção entre a realidade mesma e a percepção subjetiva desta realidade, seja pelo autor, seja pelas personagens fictícias, o que colide frontalmente com a “deformação subjetiva” do expressionismo. Em segundo lugar, e como consequência do primeiro ponto, a defesa da totalidade, ou seja, do princípio marxista segundo o qual as relações de produção de qualquer sociedade formam um todo, sendo que estas relações, as partes, são determinadas pela totalidade. Entretanto, com a divisão do trabalho, o que ocorre é a fragmentação desta totalidade na consciência dos sujeitos, consequência do estranhamento do trabalho na sociedade de classes:

De um lado, há uma totalidade de forças produtivas que assumiram como que uma forma objetiva e que, para os próprios indivíduos, não são mais as forças dos indivíduos, mas as da propriedade privada e, por isso, são as forças dos indivíduos apenas na medida em que eles são proprietários privados. […] De outro lado, confronta-se com essas forças produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso, privados de todo conteúdo real de vida, se tornaram indivíduos abstratos, mas que somente assim são colocados em condições de estabelecer relações uns com os outros na qualidade de indivíduos (MARX e ENGELS, 2007, p. 72).

De forma resumida, a categoria de totalidade significaria a “realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer […] pode vir a ser racionalmente compreendido” (KOSIK, 1976, p. 44). Esta compreensão não seria resultante da mera acumulação de fatos, mas principalmente pela forma como estes fatos se determinam mutuamente, ou seja, pelas conexões e ligações entre as partes que compõem este todo (por isto a importância que Mészáros dá para a categoria da mediação quando confronta a concepção de totalidade lukácsiana[7]).

Seria errôneo, contudo, reduzir a categoria da totalidade[8] a uma determinação rígida segundo a qual “as partes são determinadas pelo todo”. Neste sentido, é exemplar a conceituação de Lukács:

A verdadeira totalidade, a totalidade do materialismo dialético, ao contrário, é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca; isto significa que, sem causalidade, nenhuma totalidade viva é possível e, ademais, que cada totalidade é relativa; significa que, quer em face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu turno, é função de uma totalidade e de uma ordem superiores; segue-se, pois, que esta função é igualmente relativa. Enfim, cada totalidade é relativa e mutável, mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se — seu caráter de totalidade subsiste apenas no marco de circunstâncias históricas determinadas e concretas (LUKÁCS, 2009, p. 59)

Portanto, a fragmentação representada pelos expressionistas como destruição da totalidade social, na realidade, deveria ser uma representação da fragmentação desta totalidade na consciência dos indivíduos, pois as relações de produção de qualquer sociedade sempre formam um todo concreto, sendo sua fragmentação mera aparência fenomênica. A autonomia das partes de uma obra, que na obra expressionista com base na montagem é vista como absoluta, deve ser compreendida aqui, de acordo com Lukács, da mesma forma como as partes que compõem o sistema capitalista (ou qualquer outra totalidade): como uma autonomia relativa. É neste sentido que a crítica lukácsiana aos movimentos literários modernos (e entre eles o expressionismo) se assemelham por tomar a realidade tal como ela se apresenta de imediato.

É importante destacar aqui que estes elementos críticos da concepção estética de Lukács estão intimamente relacionados com sua crítica à decadência ideológica da burguesia, que enrijece e limita a ciência e a arte burguesa fixando-as em dois extremos, o racionalismo formal e o irracionalismo, sendo importante denotar que estes dois polos não são excludentes, mas interdependentes.

O racionalismo como “capitulação direta, passiva e ignominiosa diante das necessidades da sociedade capitalista” é perceptível de forma clara nos aspectos positivistas do naturalismo (LUKÁCS, 2016, p. 117). Na contramão deste movimento — tanto nos seus aspectos científicos e filosóficos quanto propriamente artísticos — o irracionalismo surge como ato de protesto, porém igualmente vazio e irrefletido, consolidando “esse esvaziamento da alma humana de todos os conteúdos sociais” (p. 117). Em ambos os casos, consolida-se uma visão de mundo que desvia o foco da apreensão dos fenômenos realmente importantes, atuando na direção de um “aprofundamento” direcionado ao erro — no caso do racionalismo/naturalismo, em direção aos aspectos mais fenomênicos da realidade; no caso do irracionalismo/expressionismo, um aprofundamento do sujeito em si mesmo, da pura subjetividade.

Aqui, torna-se mais evidente a crítica de Lukács e a “tarefa” que ele impõe à práxis literária: saber o que é ou não verdadeiro, o que é objetivo, o que é subjetivo, o que é importante, grande, pequeno, humano, inumano, trágico ou ridículo. Isto é: superar o relativismo típico consequente das duas tendências anteriormente discutidas, pois somente quando o escritor “sabe e vivencia com exatidão e certeza o que é essencial e o que é secundário, ele saberá expressar literariamente o essencial” (LUKÁCS, 2016, p. 155).

Se os movimentos de vanguarda, como destacara diversos filósofos marxistas, eram expressão e protesto da fragmentação da realidade, postulando que a arte vanguardista era a única arte possível no século XX, de nenhuma forma isto justifica a priori uma validade estética. Explicar o surgimento de um movimento artístico a partir de sua base social e econômica é apenas parte do trabalho do crítico, sendo necessário também “medi-la esteticamente, segundo as mais altas exigências do espelhamento artístico da realidade histórica” (LUKÁCS, 2014, p. 467), tendo em vista o papel da arte enquanto desfetichizadora da realidade fenomênica.

Ainda que limitada, esta exposição acerca da posição de Lukács em relação aos movimentos literários modernos (especialmente o naturalismo e o expressionismo) teve de ser mencionada para compreender a defesa de Lukács do realismo não com gosto pessoal, mas enquanto componente fundamental da filosofia da arte de base marxista, segundo os princípios do materialismo histórico-dialético. É importante deixar claro, no entanto, que a análise de Lukács se resume às obras literárias destes movimentos, limitação evidente especialmente no caso do expressionismo, considerando que este destacou-se principalmente na pintura e no cinema. Prova desta limitação é a postura de Lukács de considerar o movimento expressionista como acabado após o fim da Primeira Guerra Mundial, sendo que é só a partir deste momento que o movimento começa a ganhar ares no cinema, onde possivelmente tenha sido mais bem-sucedido. Outros apontamentos do autor se mostram limitados ou errôneos quando se trata da relação entre os movimentos de vanguarda e sua visão de mundo, assim como a escolha dos representantes trazidos pelo autor como centrais (caso, por exemplo, de Kafka).

Apesar disto, não podemos resumir a crítica de Lukács a estes movimentos literários unicamente à sua visão de mundo ou aos preceitos filosóficos citados acima. Se analisamos obras de arte, evidentemente o critério último deve ser o valor estético imanente à própria obra. Aponta-se aqui unicamente para a impossibilidade de analisar este valor fora da totalidade superior à qual a obra de arte responde (composta, entre outras coisas, pela visão de mundo do artista). Qualquer análise estética, portanto, deve ser realizado às obras individuais, sendo a crítica a um movimento ou a um conjunto de obras uma exposição apenas parcial da problemática. No entanto, como o objetivo deste texto é justamente a visão mais geral da crítica lukácsiana ao naturalismo e ao expressionismo na sua relação com os princípios filosóficos, seria impossível expandir a análise estética para além de uma crítica geral. Neste sentido, destaca-se a avaliação de Oldrini acerca dos movimentos de vanguarda do século XX:

Essa problematicidade do conteúdo, ao mesmo tempo, estende-se à forma. Quanto mais o moderno é identificado e buscado na desagregação da linguagem e na desfiguração da representação, tanto mais prevalente a estética do fragmento. No lugar do princípio da organização formal fundada na relação recíproca das partes da obra e sua relação com o todo, de modo que cada uma delas seja concebida e realizada apenas em vista da organização total, afirma-se o princípio da autonomia das partes singulares, da prevalência das partes sobre o todo. Dele resulta por si, como consequência imediata, a desarticulação da estrutura da composição formal. Em seu centro motor, o fundamento do nexo entre as partes, é demandada — na ausência de outro centro formal unificador — o simples reflexo subjetivo do artista: que dessa forma confere a obra, principalmente, um caráter de “ensaio”. A objetividade da obra, que se observa desde fora, com deliberado e pensado distanciamento irônico, perde todo o caráter de imanência (OLDRINI, 2017, p. 194).

Da fragmentação do conteúdo e da forma, Oldrini identifica a seguinte consequência estética na obra de arte vanguardista:

O que de problemático se define com essas escolhas em circunstancia estética e que, por causa da absolutização dos fenômenos a partir dos quais se eleva a vanguarda, por si relativos (o anormal é anormal apenas em relação à norma, o excêntrico ao centro, o patológico ao são e, no plano estritamente estilístico, a deformação à forma), falta nela um critério adequado para o estabelecimento da dialética entre absoluto e relativo, portanto, também sobre o papel do próprio relativo. […] Assim, o perigo estético constantemente ressurgente é que ele vá da forma enquanto tal, que ele coloque em risco a essência, já que justamente da destruição do caráter estético da forma as tendências de vanguarda fazem o prius de toda relação criativa entre o artista moderno e a sua matéria. Essas tendências confundem determinadas configurações históricas da forma, rotuladas como acadêmicas, com a forma em si mesma, e da aversão justificada uma vez fazem-se conduzir até o extremo limite da rejeição de toda forma estética em geral. Quando isso realmente acontece, diminui a possibilidade de que surjam obras válidas, artisticamente formadas. Os autores perdem gradualmente o controle sob o material que manejam. Arrastados pelo gosto à alegoria, o experimentalismo modernista, o esfacelamento da linguagem, atacam por todos os lados, e assim, de fato, enfraquecem e destroem as malhas conectivas do que constitui a própria, a estrutura, da obra de arte em geral (p. 195).

A análise lukácsiana dos movimentos de vanguarda, e de seus antecessores diretos (naturalismo, simbolismo, expressionismo) é única no sentido de, por analisar estes movimentos “de fora”, perceber seus limites estéticos, filosóficos e políticos. Entretanto, em muitos momentos ignorou a importância de uma crítica “de dentro”[9], imanente à estrutura das próprias obras, tal como o fizeram outros autores como Adorno, Benjamin e, em especial no caso do expressionismo, Ernst Bloch.

Seus apontamentos acerca das limitações dos movimentos pré-vanguardistas (e seu aprofundamento na crítica às vanguardas literárias nas décadas seguintes) são de grande importância na medida em que são sempre contrapostos com a perspectiva do realismo. Este deve ser entendido não como um “retorno” à literatura do século XIX, e muito menos como uma adesão à linha do partido soviético do chamado realismo socialista (que passou a ser instituído durante o debate sobre o expressionismo em meados da década de 1930), mas sim como uma defesa dos princípios do materialismo histórico-dialético no campo da estética. Isto, como aponta o próprio autor, está estreitamente vinculada ao esforço de Lukács e Mikhail Lifschitz[10] de comprovar a existência de uma estética intrínseca aos escritos de Marx e Engels, em contraposição à tentativa de marxistas da virada do século como Mehring, Plekhanov e outros de inserir fundamentos e conceitos de outros sistemas filosóficos, como do positivismo ou do neokantismo, como “complemento” a um suposto espaço vazio dentro do marxismo.

Neste sentido, a crítica às tendências estéticas do período da burguesia decadente só pode ser confrontada com uma alternativa positiva, da mesma forma como a crítica à economia política marxiana confronta o modo de produção capitalista. Se há uma “estética marxista, autônoma e unitária”, é imperativo que seja desenvolvida em seus próprios termos, tarefa que Lukács buscou contribuir no desenvolvimento da sua teoria realista a partir da década de 1930. O realismo, visto neste sentido, deixa de ser apenas um estilo ou uma escolha: ele é o método do materialismo histórico-dialético aplicado à estética.

NOTAS

[1] Entre os textos deste período que tratam do realismo, se destacam Tendência ou Partidarismo? (1932), Reportagem ou Figuração (1934), Arte e Verdade Objetiva (1934), Grandeza e decadência do expressionismo (1934), Narrar ou Descrever? (1936) e Trata-se de Realismo! (1938)

[2] Aqui, é importante ressaltar que, ao definir uma função social da arte, Lukács não anula ou desintegra a categoria de autonomia (a qual também defende).; função e autonomia da arte são categorias localizadas historicamente dentro da totalidade social na qual a obra de arte está inserida, não sendo possível definir um conceito eterno de função e autonomia.

[3] Permanecer neste nível de análise produziria apenas uma “sociologia da arte” na qual cada forma artística seria explicada e justificada pelos aspectos sociais, históricos e econômicos de seu tempo. Sabemos, pelas contribuições do Materialismo Histórico-Dialético em, que o fenômeno não é tão simples assim. Se a “sociologia da arte” suficiente para explicar a forma artística, ignoraríamos um aspecto essencial da arte, que é sua transtemporalidade, isto é, sua capacidade de atualizar-se, de ir além do seu tempo histórico e manter-se atual não apenas como um “artefato histórico”, um exemplo morto de sua época, mas um elemento vivo da autoconsciência humana, capaz de produzir efeitos substanciais até hoje.

[4] Uma análise mais minuciosa deste processo de fragmentação do conhecimento pode ser encontrada no texto Marx e o problema da decadência ideológica (LUKÁCS, 2016).

[5] Podemos apontar a obra O Naturalismo no Brasil (1965), do marxista Nelson W. Sodré como uma introdução ao tema do naturalismo dentro do território nacional.

[6] Um debate mais aprofundado sobre a questão do expressionismo e da sua relação com os movimentos políticos progressistas e reacionários do século XX pode ser encontrado na obra Um Capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o Expressionismo (2014).

[7] Para tanto, ver o capítulo Totalidade e Mediação, presente na obra O Conceito de dialética em Lukács (MÉSZÁROS, 2013).

[8] É importante destacar aqui, para evitar erros interpretativos, que a totalidade que Lukács defende na obra de arte diz respeito à totalidade intensiva da realidade, e não sua totalidade extensiva. Logo, não se trata de retratar a realidade em todos os seus elementos, mas de criar um mundo fechado na qual as determinações essenciais que compõem a totalidade do drama humano são representadas de forma intensiva.

[9] Aqui, vale mencionar a exposição de Lefebvre e Guterman (2018) acerca do método dialético da crítica, (passivo de ser pensado também no campo da estética), que deve negar e superar os dois polos tradicionais e opostos: por um lado, o método puramente interno, no qual o crítico se torna passivo diante do conjunto ideológico que lhe é apresentado; e por outro lado o método puramente externo, do dogma, na qual o crítico encontra apenas uma confirmação de ideias já existentes. Diante desta oposição, é necessário um método “interno-externo”, que busca determinar o movimento imanente do objeto sem destruí-lo ou se fechar nele. O crítico, segundo Lefebvre e Guterman, deve estar simultaneamente em seu interior e em seu exterior.

[10] “No Instituto Marx-Engels, conheci e trabalhei com o camarada Mikhail Lifchitz, com quem, no curso de longas e amistosas conversações, debati questões fundamentais do marxismo. O resultado ideal mais relevante deste processo de esclarecimento foi o reconhecimento da existência de uma estética marxista, autônoma e unitária” (LUKÁCS, 2009, p. 25)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOSIK, K. Dialética do Concreto. São Paulo: Paz e Terra, 1976.

LEFEBVRE, H.; GUTERMAN, N. Introdução. In: LENIN, V. I. Cadernos filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 13–98.

LUKÁCS, G. Problemas del Realismo. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1966.

LUKÁCS, G. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.

LUKÁCS, G. O Romance Histórico. São Paulo: Boitempo, 2014.

LUKÁCS, G. Marx e Engels como historiadores da literatura. São Paulo: Boitempo, 2016.

MACHADO, C. E. J. Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo. São Paulo: Unesp, 2014.

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MÉSZÁROS, I. O Conceito de dialética em Lukács. São Paulo: Boitempo, 2013.

OLDRINI, G. György Lukács e os Problemas do Marxismo do Século 20. Maceió: Coletivo Veredas, 2017.

SODRÉ, N. W. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

SZONDI, P. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

--

--

Bruno Bianchi
Bruno Bianchi

Written by Bruno Bianchi

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB

No responses yet