B. Bianchi — Coringa: Entre o Irracionalismo e o Transtorno Mental (2020)
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Transtorno mental na ficção praticamente virou um sinônimo de experimentalismo formal dentro do campo estético. No último século vimos o psicologismo, ou seja, a redução narrativa ao mundo interno do personagem dissociado da realidade objetiva, surgindo como um dos recursos mais utilizados na literatura, sendo um dos elementos destacados por Lukács na sua crítica à decadência ideológica burguesa após o fracasso das revoluções de 1848. Assim como qualquer outra técnica ou recurso narrativo, o psicologismo se tornou cada vez mais refinado, ganhando contornos próprios dependendo do autor, do tipo de obra, aparecendo de formas variadas na literatura (James Joyce, William Faulkner, Thomas Mann, Chuck Palahniuk) ou no audiovisual (Coringa, The Leftovers, They Look Like People).
A crítica ao psicologismo, no entanto, não deve ser confundida com a destruição da subjetividade. Existem diversos recursos narrativos que fazem uso da subjetividade (por exemplo, a introspecção, o monólogo interno, a fantasia), enriquecendo tanto a construção da personalidade dos personagens quanto sua relação com o mundo figurado. Não é intenção deste texto retomar em sua totalidade a discussão sobre a relação entre objetividade e subjetividade no campo da literatura e da arte[1]. Cabe aqui apenas reiterar o psicologismo como deformação subjetivista, como redução da objetividade à subjetividade da personagem na qual a referência da realidade objetiva é destruída ou ofuscada.
Dentro disso, a loucura surge muitas vezes como justificativa narrativa para o experimentalismo formal. Mais do que um elemento da realidade objetiva e subjetiva, como contradição destas esferas, ela se transforma em um artifício, um instrumento que permite ao autor um não-compromisso com a realidade objetiva. Através do uso da loucura, o autor consegue deformar a realidade à sua maneira, inserindo sua própria visão de mundo de forma artificial, chegando em muitos casos a defender abertamente o irracionalismo.
Do outro lado desta equação, o transtorno mental é representado de forma superficial e estereotipada. Em muitos casos, ele é dissociado completamente dos componentes objetivos que o desencadeiam[2], suscitando o psicologismo, que hipostasia a subjetividade ao nível de realidade total. Em outros, o transtorno apresenta a função de demonstrar como o “transtorno mental” (na realidade, o irracionalismo) é consequência de uma sociedade essencialmente doente, patológica. Neste caso, essas obras não percebe o adoecimento como resultado das contradições específicas de uma sociedade particular (no nosso caso, a capitalista), mas da sociedade em si, por inteiro, assumindo uma postura antissocial.
Contra o adoecimento mental provocado pela sociedade, o resultado mais comum é voltar-se contra a própria sociabilidade, um individualismo irracionalista que utiliza de uma fachada antissistema ou revolucionária.
É o caso, por exemplo, da grande maioria dos romances de Chuck Palahniuk, como por exemplo Clube da Luta (1996). Neste, a patologia é caracterizada pela indistinção cada vez mais profunda entre realidade externa e interna do narrador, culminando no desligamento completo do sujeito em relação ao real, após o narrador entrar em uma espécie de coma autoinduzido e conscientemente recusar-se a retornar ao real. A adaptação de 1999 corrige isso ao propor um fim no qual o protagonista retorna à realidade externa e passa a distinguir com clareza sua subjetividade da objetividade externa.
O mesmo se repete em quase todos os outros romances do autor. O uso de personagens marginalizados, a centralidade do fluxo de pensamento ofuscando os fatos objetivos, o irracionalismo como protesto contra a racionalidade formal do sistema vigente. Podemos observar isso em Sobrevivente, em Monstros Invisíveis, em Assombro. Palahniuk confunde, em muitos casos, patologia com irracionalismo, utilizando seus protagonistas como vetores de suas ideias anticapitalistas. No entanto, na maioria dos casos, são protestos vazios contra os sintomas do capitalismo, deixando inalteradas as bases do próprio sistema que produz esse adoecimento e essa marginalização.
A diferença, talvez, se encontre em No Sufoco. Isto porque, apesar de partir das mesmas premissas e possuir o mesmo foco na marginalidade, no patológico e no irracional, o autor deixa claro a diferença entre o patológico (o vício do personagem em sexo) e o irracional (a destruição consciente do protagonista de sua sociabilidade). Isso ocorre principalmente pela introdução de outros personagens com a mesma condição que o protagonista Vitor Mancini, seu amigo Dennis, por exemplo, que busca efetivamente combater sua compulsão à masturbação encontrando atividades saudáveis. O próprio Mancini não perde a referência do que é saudável: pelo contrário, tem a saúde como parâmetro para o que não fazer, intencionalmente agindo na direção oposta. É de se chamar a atenção aqui a conclusão da obra, na qual Mancini se vê não como alguém em um caminho determinado devido a sua condição, mas que pela primeira vez percebe a alternativa, vê em si um caminho aberto a ser construído, o momento da liberdade na sua relação dialética com a necessidade.
Aqui, torna-se evidente o sugerido por Lukács de que produzir uma arte saudável (de um ponto de vista social) não significa excluir a doença ou o patológico, mas sim o reconhecimento do autor do que é saudável e do que é doente, de conseguir não perder a referência do saudável e do humano, ainda que retratando exclusivamente o patológico. De acordo com o autor,
Nesta inversão de padrões, o mais importante é: o pequeno aparece grande, o distorcido como a harmonia, o doente como normal, o decrépito e destrutivo como vital. Assim, a base intelectual e moral mais importante da arte se perde: saber artisticamente exatamente o que cada objeto representado realmente é. […] Portanto, mais uma vez: não é na representação da doença, nem mesmo quando é o tema principal, que residem os aspectos doentios e antiartísticos da decadência, mas exclusivamente nesta inversão de padrões (LUKÁCS, 1956, p. 159, tradução nossa).
Isso não é uma questão unicamente de forma ou de conteúdo, de como retratar ou o que retratar, mas fundamentalmente uma questão de visão de mundo do artista, da perspectiva adotada diante da realidade. No caso de Palahniuk, isto é perceptível nas suas próprias considerações acerca da sua atividade artística como, por exemplo, em uma entrevista em que coloca o efeito visceral (nojo, fome, excitação sexual) como objetivo da sua escrita[3]. Aqui, retorna aquilo que Lukács criticara há mais de meio século: “as entranhas dominam cada vez mais a cabeça” (1956, p. 157). Isto se tornou tão central nas obras posteriores de Palahniuk que mal se vê nelas um resquício de humanidade. A reação visceral, o choque[4] (entendido aqui como uma reação corporal imediata provocada pela quebra de expectativa do público) é tão essencial nas suas últimas obras que pode ser dizer que nelas perde-se qualquer conteúdo anticapitalista (ainda que romântico) presente nas suas obras iniciais.
Não cabe aqui destacar todos os aspectos do irracionalismo moderno ou destrinchar a continuidade de sua aplicação à literatura e à arte no último século. É, no entanto, de suma importância o delineamento de suas características gerais. Ainda que seja reacionário em sua essência, não é incomum que o irracionalismo se apresente em tendências ditas progressistas ou anticapitalistas.
Isto pode ser visto já nas correntes denominadas anticapitalistas românticas do século XIX, voltadas para a crítica da destruição subjetiva decorrente do novo sistema de produção, almejando muitas vezes apenas um retorno a um “estado natural” do ser humano — o que em muitos casos significava a nostalgia por formas anteriores de sociabilidade, enquanto, por outro lado, encontrava-se a apologia descarada e direta da ordem capitalista vigente. Como aponta Coutinho (2010), o pensamento fetichizado típico da ciência burguesa, incapaz de recompor e representar a realidade objetiva em sua totalidade, é dividido em duas correntes, o irracionalismo e o racionalismo formal[5].
Dessa coexistência, ficou delimitado o campo de análise de cada uma das correntes. A racionalidade formal, de forma arbitrária, anunciava o que cabia à ciência estudar: o que era observável, passível de descrição e de quantificação, dando vazão às tendências positivistas e estruturalistas no século XIX e XX, como em Comte, Durkheim e Wittgenstein. Ao campo do real que não competia a esta racionalidade (limitada e esvaziada) estudar, o irracionalismo tomou para si como o abutre que se alimenta dos restos da carcaça: a subjetividade, os fenômenos não observáveis, etc. Não à toa, Lukács, na sua crítica a Wittgenstein, declarou haver um “deserto do irracionalismo”, que não poderia ser expresso com os instrumentos da racionalidade neopositivistas (HOLZ, KOFLER e ABENDROTH, 1969).
Este irracionalismo ganha mais forças quanto mais a razão é reduzida à situação de miséria instituída pelo pensamento formal burguês. Na sua tentativa de crítica da burocratização da vida social, a esfera subjetiva da vida privada é cada vez mais abandonada ao campo do irracional, cristalizando uma visão de mundo na qual o sujeito é “lançado” ao mundo, em oposição ao social. Entramos aqui no campo da subjetividade pura, do solipsismo[6], da intuição como forma superior de pensamento. É a filosofia do relativismo absoluto, no qual não existe verdade objetiva, mas apenas pontos de vista que entram em colisão, resultando num individualismo rígido: “tudo que é sólido se desmancha em uma questão de ponto de vista subjetivo, e toda objetividade em uma função relativa pura ou numa relação condicionada pelo sujeito” (LUKÁCS, 1980, p. 489). O pensamento irracional retira o elemento histórico da condição humana e a postula como estado eterno de coisas, e o protesto subjetivo inicial desta condição, feita pelos irracionalistas nas suas diversas particularidades, recai inevitavelmente em conformismo real e em um pessimismo profundo.
Quais as consequências deste pensamento para a literatura e a arte? Segundo Lukács:
A ontologia que apresenta o indivíduo isolado como “lançado” na existência tem como consequência literária a desaparição dos verdadeiros tipos: o escritor não pode conhecer nem descrever senão o contraste abstrato entre casos extremos, eles próprios abstratos: banalidade cotidiana e excentricidade. Já dissemos porque é que o recurso aos extremos — que na literatura realista tem por função enriquecer e tornar muito mais intensa a pintura de personagens socialmente normais, mas movidos por poderosas paixões — tende sempre, nos escritores decadentes, e por intermédio dum movimento cada vez mais forte, para a excentricidade e, finalmente, para a patologia” (LUKÁCS, 1991, p. 53).
Ainda que aqui o autor não esteja falando de patologia no sentido psicológico, mas sim social, é importante ressaltar a utilização do transtorno mental como recurso narrativo em direção à essa excentricidade ou patologia (neste caso, social). Isto porque, compondo o “deserto do irracionalismo” da subjetividade, o transtorno mental é entendido como uma vivência incapaz de ser captada racionalmente, permanecendo como dissociada da razão ao invés de ser percebida dialeticamente como integrante desta.
Dissociada das relações sociais objetivas, a subjetividade e, consequentemente, a saúde e a doença psicológica, é abandonada à própria sorte, sendo terreno fértil para o desenvolvimento de sistemas irracionalistas presentes até hoje (pensemos nas obras de Kierkegaard, Heidegger, Jaspers, Bergson, entre outros), muitos dos quais desconsidera a determinação social da constituição da subjetividade e coloca o sujeito como isolado no mundo. Ainda, quando considera o aspecto social, é unicamente em forma de oposição direta e de determinação mecânica, na qual o adoecimento é provocado por uma sociedade adoecida, que se impõe sobre a constituição individual “saudável”.
Até aqui, determinamos algumas características típicas desta visão de mundo. Primeiro: a perda da historicidade e, no seu lugar, a eternização da condição fetichizada. Segundo: a dissociação e oposição entre constituição subjetiva e realidade objetiva, promovendo um indivíduo “lançado” no mundo, um mundo com o qual não tem relação histórica. Terceiro: o isolamento do indivíduo, prisioneiro do solipsismo e do relativismo diante deste mundo. Quarto: como consequência dos três aspectos anteriores, o pessimismo e o fatalismo diante de um mundo eternamente adoecido, do qual o sujeito não pode escapar (a não ser retraindo para a interiorização completa, como no caso de Clube da Luta) e que não consegue transformar, ainda que proteste incessantemente contra ele.
Ao transformar este estado histórico na essência eterna da sociedade, o protesto irracional não se dá contra uma sociedade em particular, mas contra a sociabilidade em geral. Incapaz de perceber a realidade em sua totalidade, o protesto destes pensadores (e seguindo a mesma visão de mundo, dos artistas e escritores) volta-se contra a aparência fetichizada: “os fundamentos sociais permanecem intocados, mesmo intelectualmente, enquanto os sintomas mais ou menos superficiais são atacados com veemência” (LUKÁCS, 1956, p. 159).
É o que percebemos nas já citadas obras de Chuck Palahniuk, mas também em outros autores clássicos e modernos. Ainda assim, talvez quem atualize e represente melhor esta tendência nos últimos anos foi Todd Phillips, na sua adaptação de Coringa (2019). Aqui, podemos identificar todos os elementos da visão de mundo irracionalista descritos anteriormente.
Não cabe aqui analisar a obra em todos os seus aspectos, sendo essencial neste momento um olhar mais atento à perspectiva do diretor, que define a construção subjetiva do personagem central e sua relação com o caos social retratado. A partir disso, podemos delinear a visão política e a análise que Phillips faz do adoecimento mental e como sua definição de transtorno distancia-se de uma representação verdadeira e se aproxima do irracionalismo não só como visão de mundo, mas como ação.
Coringa busca representar um mundo decadente, no qual a violência e a perversidade tomam cada vez mais conta das relações. É um mundo inteiramente caótico e cheio de convulsões sociais que serve como pano de fundo e justificativa para o caos interno do personagem principal. Por exemplo, em um trecho, ainda no início da obra, o protagonista (Arthur Fleck) questiona sua psicóloga se o mundo está enlouquecendo cada vez mais[7].
Entretanto, esse caos externo serve apenas como aparência, e quase nunca tem relação direta com os conflitos do próprio personagem. O social, aqui, aparece apenas como paisagem, como um cenário que, apesar da tentativa da obra de tentar relacionar com o psiquismo de Fleck, nunca consegue realmente estabelecer este vínculo. E sem conseguir estabelecê-lo, a narrativa precisa fazer esta conexão idealmente. É o caso, por exemplo, do ato impulsivo de Fleck assassinar três executivos da Corporação Wayne se transformar no estopim para uma manifestação contra a classe dominante.
Aqui, é clara a incapacidade de Phillips de fazer uma análise concreta de qualquer movimento político contra a classe dominante. Associar três funcionários de uma empresa (por mais rica e central que esta possa ser para o processo produtivo) com os possuidores dos meios de produção é ignorar qualquer distinção qualitativa e hierárquica dentro de um ramo de produção. Ainda, para colocar em movimento o que é um ponto central de toda narrativa posterior (os protestos sociais em paralelo com o declínio da sanidade em Fleck), o diretor precisa criar uma situação sem nenhum fundamento concreto. Se estabelecemos que os três funcionários são de alto escalão dentro da Corporação Wayne (o que justificaria, ainda que de forma rasa, o ato como ponto de partida para uma revolta política contra as classes possuidoras), não há razão para estes compartilharem o transporte público com Fleck. Ainda que pareça um detalhe sem importância, que poderia responder à relação entre casualidade e necessidade dentro da obra, a superficialidade do contexto resulta apenas na artificialidade da cena.
Esta artificialidade, presente em praticamente todos os momentos da narrativa em que busca explicitar a conexão entre os atos de Fleck e suas consequências sociais, é o principal aspecto do social como paisagem. Incapaz de estabelecer uma relação orgânica e complexa (e portanto, concreta) entre indivíduo e sociedade, Phillips cria uma conexão direta e artificial, sem mediações, cabendo ao público preencher as lacunas e criar as mediações necessárias. Ao invés de enriquecer e aprofundar o conhecimento sobre a realidade objetiva (tal como o fazem as grandes obras de arte), aqui há um empobrecimento, uma fixação nos aspectos mais superficiais e fetichizados da realidade.
Se por um lado essa incapacidade de criar uma conexão orgânica entre indivíduo e social resulta na artificialidade do próprio mundo, mantendo-se numa representação fetichizada da realidade, por outro o indivíduo (no caso, Fleck), é destituído de qualquer ponto de referência externo. Tal como descrito anteriormente na visão de mundo irracionalista, isto resulta na percepção do sujeito como “lançado” a um mundo cristalizado e imutável, despido de qualquer historicidade e sentido, e ao qual o sujeito só pode responder de forma pessimista e irracional, resultando no que é, em sua essência, um individualismo exacerbado.
A construção do mundo próprio da obra está intimamente relacionada com a perspectiva de Fleck. Olhamos o mundo e as convulsões sociais com seus olhos; é, por assim dizer, a única fonte de informação que temos acerca dos acontecimentos. Sendo um recurso comum em obras com protagonistas que possuam algum transtorno mental, obscurecendo os limites entre realidade objetiva e perspectiva subjetiva, aqui inexiste uma referência externa que se contraponha ou complemente o ponto de vista de Arthur.
O único momento em que uma realidade externa se confronta com a perspectiva do personagem é quando é revelado na obra que o relacionamento amoroso que Arthur estabeleceu com uma vizinha (relacionamento vazio de qualquer profundidade narrativa) é produto da sua fantasia. Ainda que este arco sirva para definir Fleck como um narrador não-confiável, isto não é transposto para os outros momentos da obra, sendo um elemento fechado em si mesmo e nunca relacionado com o todo.
Aqui, vale reforçar que o caráter não-confiável de Fleck é justificado não por uma questão da sua personalidade ou intencionalidade, mas principalmente por uma condição psicológica abstrata. Desde o início da obra, Arthur é figurado como portador de algum transtorno mental. Este, no entanto, nunca é descrito para além de algumas características superficiais e abstratas. O principal sintoma recorrente durante a obra é seu riso imotivado e descontrolado, o que se assemelha a um transtorno de expressão emocional involuntária — uma condição muito mais neurológica do que psicológica. Em outro momento, Fleck relata a sua psicóloga que só tem pensamentos ruins, porém nunca explicita estes pensamentos, se são delírios, ideação suicida, desejos violentos ou agressivos. O conteúdo mais rico que temos da psique de Arthur se encontra nas anotações esparsas que lemos em seu caderno, anotações que também se mantém na superficialidade da sua mente. No melhor dos casos, Phillips desejou manter uma descrição abstrata da condição psicológica de seu personagem, permitindo ao público preencher as lacunas com suas próprias interpretações sobre transtorno mental e sobre o próprio personagem — trazendo à tona a falta de conhecimento sobre a complexidade psicológica envolvida no processo de adoecimento mental. Phillips é incapaz de figurar artisticamente o adoecimento psicológico, distanciando-se de qualquer objetividade e mantendo-se em uma figuração superficial, cercadas de preconceitos que ao invés de questionar a concepção estigmatizada do transtorno mental, simplesmente a reforçam.
Isto porque em Coringa, o transtorno mental não é mais que um recurso narrativo, um instrumento que Phillips encontra para colocar a história em movimento. Se isto não é tão visível no todo da obra, certamente ganha centralidade na cena em que Fleck visita o asilo Arkham[8]. Aqui, em determinado momento, Fleck é colocado em um elevador junto com um homem em contenção mecânica (amarrado a uma maca), evidentemente em surto. Sem qualquer função narrativa, a cena busca apenas um efeito de choque vulgar, novamente reforçando os preconceitos cotidianos em relação ao transtorno mental ao invés de questionar a forma de tratamento, as raízes históricas ou o local ocupado pela loucura na sociedade. Em uma obra que busca estabelecer como pano de fundo a luta de classes e a desigualdade social, a narrativa nem mesmo põe a questão do caráter de classe da institucionalização, visto como a sociedade como um todo se tornou cada vez mais irracional (nos termos do filme, enlouquecida).
É evidente aqui que aquilo que Phillips busca retratar como transtorno mental se trata apenas de uma vulgarização preconceituosa e desprovida de qualquer complexidade real, baseada não em aspectos objetivos e científicos da psicologia, mas unicamente no que ele considera ser um transtorno mental. No entanto, quando retiramos a máscara do transtorno mental, o que encontramos é o irracionalismo na sua forma mais bruta. É um Arthur “lançado” no mundo, estranhado dos outros personagens e de si próprio, incapaz de agir neste mundo se não através do desespero, da angústia e da decadência, seguindo muito mais seus instintos do que sua razão, da mesma forma como todos os outros personagens da obra. No fundo, ao buscar ser uma crítica à desumanização e ao irracionalismo do capitalismo, Coringa acaba por reforçar essa própria desumanização ao tornar seu protagonista consequência e intensificação desse irracionalismo[9].
Não sendo intenção alongar esta análise, mas simplesmente trazer como exemplo a obra como representante de um irracionalismo moderno disfarçado de uma narrativa sobre um transtorno mental, cabe ainda mencionar um aspecto relevante: o individualismo exacerbado do personagem.
Já foi apontado anteriormente a superficialidade com que Phillips constrói uma convulsão social, fazendo o salto entre um triplo homicídio e uma manifestação de massa contra a classe dominante. Não só o diretor é incapaz de articular coesamente esta manifestação dentro da narrativa do personagem (mantendo-a sempre a nível de paisagem), como em determinados momentos ativamente afirma que seus atos são desprovidos de fins políticos. Esta despolitização, tão cara a alguns círculos liberais, é trazida aqui como pura abstração e estetização política. Os argumentos de Fleck durante sua entrevista, a “falta de civilidade” apontada, por exemplo, é um aspecto tão genérico da sociabilidade que, associado à sua despolitização, pode ser utilizado a favor ou contra qualquer tendência. A “falta de civilidade”, por exemplo, é um aspecto da sociabilidade notada e destacada tanto por círculos progressistas quanto conservadores, porém com tons e críticas distintas. Não tomar partido neste aspecto, isto é, não ver a incivilidade como resultado das relações econômicas estabelecidas (voltando-se muito mais para seu paralelo imediato subjetivo na figura de Fleck), torna o apontamento do personagem (e consequentemente do diretor) apenas fraseologia vazia, desprovida de concretude ou de qualquer aprofundamento sobre as causas reais do adoecimento individual e social.
Contudo, nada disso é relevante para Fleck. Não se trata de uma crise social da qual o personagem participa. Para sua narrativa, essa convulsão é completamente desimportante. O que importa é simplesmente que ele esteja em foco, seja o centro das atenções. Fleck se torna símbolo não de uma revolução, mas de uma manifestação irracional, ganhando ares quase messiânicos ao seu fim, revelando o culto à personalidade tão caro às ideologias mais conservadoras.
É evidente que, ao fim, Coringa se revela uma narrativa bastante sedutora. Não é por acaso que um filósofo como Žižek vê na obra o possível grau zero de uma revolução[10], uma manifestação violenta, porém vazia de direcionamento revolucionário que cabe ao espectador preencher de algum sentido revolucionário. O filósofo esloveno vê, no filme, um chamado à ação através do desconforto e da perturbação causado pela obra, não muito distante da função do choque definida por Peter Bürger[11].
O erro de Žižek é considerar que a manifestação presente no filme, o descontentamento das massas contra as classes possuidoras, é vazia de conteúdo. É a mesma interpretação de certos pensadores que veem em qualquer manifestação unicamente o potencial revolucionário, ignorando seu conteúdo muitas vezes reacionário. Ainda, Žižek compreende apenas uma única alternativa à violência irracional do filme: o pacifismo do politicamente correto, distorcendo qualquer compreensão histórica acerca da violência revolucionária para que esta encaixe na sua concepção irracional.
O fato de a obra colocar as manifestações contra a classe dominante é quase irrelevante pois o filme é incapaz de articular organicamente esse protesto com o todo da obra, tornando-se um elemento pedante da obra. A obra não consegue trazer à tona o potencial revolucionário da situação e coloca nas mãos do espectador o trabalho de articulação e mediação dos elementos narrativos. Ainda que se diga revolucionário, a inexistência de qualquer conteúdo neste sentido dentro da obra é significativa. Com exceção de alguns diálogos genéricos de figurantes, o filme é menos uma obra sobre a revolta dos despossuídos e muito mais a revolta irracional e pessoal de um homem que incorpora perfeitamente os elementos da sociedade que ele busca criticar. Vazia de direcionamento e significado, as revoltas ao longo do filme ganham ares de atos catárticos, de ação direta não refletida, e que não levam a nenhum fim concreto e profundo, mas apenas à manifestação aparente de radicalidade e inconformismo.
Ao fim, o que torna Fleck atraente é sua figuração como um homem injustiçado pela sociedade, portador de um diagnóstico abstrato que, quando levado ao limite, recorre ao extremo da violência. É um personagem com o qual nos identificamos, especialmente na crise do capital atual. Assim, temos em Fleck a justificativa e o exemplo da visão irracionalista que o estranhamento atual proporciona a todos os indivíduos. No entanto, ao utilizar do transtorno mental como recurso narrativo, além tornar idêntico dois processos distintos, aqui é reformado o preconceito clássico que confunde a loucura com periculosidade (no caso, o discurso contra a sociabilidade capitalista eternizada no filme).
Esta parece ser a mensagem mais clara que o filme passa ao fim. Terminado seu momento messiânico, Fleck retorna para o hospital-prisão de Arkham. Se todos os eventos narrados realmente tomaram lugar ou foram apenas produto da imaginação de Fleck (novamente fazendo uso do psicologismo), fica a critério do público, assim como praticamente todos os elementos definitivos da obra, revelando a ausência de partidariedade por parte do autor. Justamente por isto, é evidente que a obra busca utilizar o máximo possível do imaginário social para complementar sua narrativa vazia de conteúdo real. É por este motivo que se aborda o filme como uma obra sobre saúde mental, sobre neoliberalismo, sobre luta de classes. No entanto, quando juntamos todas estas peças desconectadas, a forma final que encontramos é uma desfiguração da realidade, uma distorção subjetiva e irracional. Aqui, em forma literária, se apresenta o enunciado por Coutinho (2010, p. 50): “denuncia-se a realidade social, considerada fonte de dissolução da subjetividade e de desumanização, ao mesmo tempo em que se rejeita a razão, confundida com as regras formais que predominam nas práxis técnica e burocrática”.
Sendo o irracionalismo uma visão de mundo baseada no individualismo e no subjetivismo, não é de se surpreender que esteticamente isso se reflita no uso do psicologismo como técnica narrativa. Que isso se apresente modernamente através das lentes da loucura é de segunda importância (embora revele o quão baixo chegou a decadência ideológica). Aqui, este uso da loucura como recurso representa uma nova forma de suprimir a objetividade do real em favor da pura subjetividade, ao invés do aprofundamento da dialética entre realidade objetiva e vivência subjetiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, M. R. A formação social dos transtornos do humor. São Paulo: UNESP- Tese de doutorado, 2018.
BÜRGER, P. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
COUTINHO, C. N. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
HOLZ, H. H.; KOFLER, L.; ABENDROTH, W. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
LUKÁCS, G. Shicksalswende. Berlin: Aufbau-Verlag, 1956.
LUKÁCS, G. The Destruction of Reason. London: Merlin Press, 1980.
LUKÁCS, G. Realismo Crítico Hoje. Brasília: Thesaurus, 1991.
MARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857–1858. São Paulo: Boitempo, 2011.
NOTAS
[1] Aqui, podemos retomar os primeiros textos estéticos maduros de Lukács, como Reportagem ou Figuração? (1932) e Arte e Verdade Objetiva (1934), para enumerarmos alguns que discorrem sobre a falsa oposição entre subjetividade e objetividade na figuração artística.
[2] Não entra no mérito discorrer sobre a teoria da determinação social dos transtornos psiquiátricos neste momento, sendo possível indicar o trabalho de Almeida (2018)
[3] PALAHNIUK, C. I’m fascinated by low Fiction that disgusts the reader or makes them sexually aroused, The Guardian, 1º de novembro de 2014. Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/nov/01/chuck-palahniuk-this-much-i-know
[4] Em sua obra, Bürger (2017, p. 177) aponta para a limitação do choque como estimulante para provocar uma mudança na práxis do receptor, devido a sua própria natureza como experiência única, perdendo seu efeito com rapidez e não podendo ser repetido.
[5] Marx já apontava para essa dualidade do pensamento burguês em suas formas mais elementares: “Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades. Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular aparece mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude de suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original: da mesma forma, é ridícula a crença de que é preciso permanecer naquele completo esvaziamento. O ponto de vista burguês jamais foi além da oposição a tal visão romântica e, por isso, como legítima antítese, a visão romântica o acompanhará até seu bem-aventurado fim” (2011, p. 110).
[6] O solipsismo é a corrente filosófica que aponta a experiência individual como única fonte do conhecimento, reduzindo toda realidade ao sujeito pensante.
[7] Não é por acaso a escolha do personagem para a adaptação de Phillips. O personagem Coringa não é apenas o porta-voz do irracionalismo em um mundo racional. Pelo contrário, todo o universo ao qual o Coringa pertence é uma distorção irracional da realidade, desde a construção da cidade de Gotham aos seus habitantes, sendo o Coringa uma de suas manifestações mais extremas e explícitas.
[8] Aqui, vale mencionar que o Asilo Arkham é um hospital-prisão, reforçando já um longo histórico de aproximação entre transtorno mental e periculosidade. É evidente que isto não é um problema unicamente do filme, visto que a instituição está presente nas histórias em quadrinho originais do universo ao qual o Coringa pertence. No entanto, sua total aceitação do hospital-prisão dentro de uma narrativa que busca privilegiar o ponto de vista de um sujeito em sofrimento psíquico mostra a baixa compreensão de Phillips sobre o assunto que busca figurar.
[9] De maneira distinta, a crítica Stephanie Zacharek chegou a uma conclusão semelhante, declarando que a obra, ao tentar ser uma narrativa sobre o esvaziamento da cultura, acaba por se tornar um exemplo primordial deste esvaziamento. Disponível em: https://time.com/5666055/venice-joker-review-joaquin-phoenix-not-funny/
[10] ZIZEK, S. Coringa e o grau zero da revolução, Boitempo, 3 de novembro de 2019. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/03/zizek-coringa-e-o-grau-zero-da-revolucao/
[11] “O choque é ambicionado como estimulante, no sentido de uma mudança de atitude; e como meio, com o qual se pode romper a imanência estética e introduzir uma mudança da práxis vital do receptor” (BÜRGER, 2017, p. 177)