M. Golder — Uma breve introdução à vida e obra de B. V. Zeigarnik (1986)

Publicado em GOLDER, M., Reportajes contemporâneos a la psicologia soviética. Buenos Aires: Editorial Cartago, 1986, pp. 72–80. Tradução por Hélio C. Donadi.

Bruno Bianchi
Kátharsis
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10 min readApr 29, 2024

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Uma breve introdução

Realizamos a entrevista com Bluma Vulfovna Zeigarnik em um dos escritórios do último andar do antigo prédio da Faculdade de Psicologia da Universidade Lomonosov. Localizado em um dos terrenos mais antigos da cidade antiga, exatamente em frente aos muros do Kremlin, ao Parque de Alexandre e ao Palácio dos Congressos, a Faculdade é um prédio de quatro andares, sem elevador. Suas paredes guardam lembranças queridas, o caminho de muitas figuras proeminentes. O decanato que por muitos anos abrigou o trabalho de A. N. Leontiev; o amplo e claro auditório principal onde A. R. Luria ministrava suas aulas de Psicologia Geral, os corredores percorridos por D. B. Elkonin, com seu amplo sorriso, os sábios conselhos de A. V. Zaporozhetz e tantos outros já falecidos. Todos eles faleceram em um período de cinco anos, após quase cinquenta anos juntos nessa luta desigual e, eu diria, heroica, para impor uma psicologia com base marxista, com uma metodologia e perspectiva aprendidas diretamente do pensamento criativo de uma figura do porte de Vigotski.

Salas de aula, laboratórios, corredores que também testemunharam os passos de eminentes psicólogos de outros países. Lembro-me pessoalmente das visitas de Jean Piaget, René Zazzo, Paul Fraisse, Joseph Nuttin e muitos outros. E por que não mencionar os mais representativos da psicologia, psiquiatria e psicanálise argentina: Azcoaga, Berdichevsky, Cabral, García Reynoso, Marie Langer, Gervasio y Lea Paz, Emilio Rodrigué, Fernando Ulloa, entre os mais lembrados.

As antigas escadas, com seus mármores desgastados, me levaram a uma pequena sala acompanhado por Bluma Vulfovna. Ela, ainda menor do que nunca (sua altura não deve passar de um metro e cinquenta), com seu coque clássico que ela cuida com atenção, seu traje azul habitual e suas pastas cheias de papéis e sei lá quantos projetos de pesquisa ela ainda está desenvolvendo.

Nos acomodamos diante de uma modesta mesinha e nosso “trabalho” começou. Apenas uma vez a conhecida professora Talizina, especialista em Psicologia Pedagógica, interrompeu a entrevista e deu palavras de encorajamento a Zeigarnik, referindo-se às horas que ela já estava dedicando à entrevista.

O restante foi registrado, com a fidelidade do texto gravado, para que o leitor tenha uma dimensão mais ou menos acabada da personalidade e humanismo que transparecem em sua frágil figura.

Dois dias antes, em um encontro com colegas estrangeiros, ela defendeu suas posições em relação à patologia e ao desenvolvimento da personalidade. Suas palavras foram mais ou menos estas:

“Todo material proveniente da patologia mostra claramente a estrutura das mudanças que ocorrem na personalidade. Mostra as condições em que essas mudanças se manifestam, mas também as condições necessárias para compensar essas alterações.

“Isso nos abre portas para enfraquecer as fronteiras entre as estruturas da personalidade normal e a personalidade doente. As pesquisas realizadas no campo da patologia nos mostram o caminho que leva à divergência, ao patológico, que nem sempre difere das formas que o desenvolvimento normal assume.

“Mas não se deve acreditar que essa semelhança nas manifestações mais externas que compõem a personalidade normal e a personalidade doente signifique uma interpretação única dos mecanismos que guiam a ação humana. O desenvolvimento da personalidade doente não é uma réplica do desenvolvimento da personalidade normal.

“É incorreto usar o mesmo modelo. Muitos autores partem desse mesmo ponto de partida. Não se confunda. Ao estudar o material patológico, não queremos dizer que se deva reconhecer o modelo do patológico para abordar a personalidade normal. Nossa utilização do material patológico é um método, é um caminho que orienta a investigação.”

“Ao utilizar este método, que nos permite resolver muitos problemas da prática terapêutica, o psicólogo deve manter no centro de seu campo de atenção o próprio objeto de sua ciência. Deve manter nitidamente sua estrutura categorial: sua metodologia.

“Só quando esse material proveniente da patologia for utilizado adequadamente, somente então poderemos resolver muitas questões teóricas da psicologia. E poderemos, em particular, resolver o problema que tanto apaixona vocês, meus colegas do exterior, quanto a nós, psicólogos soviéticos: as forças motrizes que impulsionam o desenvolvimento da personalidade?

“Estas foram suas palavras, ditas com sua ênfase tão particular e com um entusiasmo que não deixa de me admirar, pois não esqueço que Zeigarnik tem oitenta e dois anos de idade.

Nesse sentido, recordo nosso encontro anterior em Leipzig (República Democrática Alemã). Em julho de 1980, realizava-se o XXII Congresso Internacional de Psicologia, e Zeigarnik fazia parte da numerosa delegação da União Soviética. Lembro-me de seu discurso sobre temas de patologia e personalidade, proferido em alemão, não muito longe do local onde Dimitrov foi julgado pelos nazistas. Imagino que, nesse contexto, as lembranças de sua passagem pela Universidade de Berlim, quando era estudante, seu ativismo antinazista em sua pátria devastada, seu compromisso com a restauração das funções mentais prejudicadas pelos ferimentos de guerra, devem ter confluído em sua mente ao começar suas palavras acadêmicas. Também o reencontro com uma Alemanha libertada e democrática deve ter alargado seus frágeis pulmões enquanto defendia sua contribuição teórica para o estudo da patopsicologia.

No dia seguinte, como parte do Congresso, as autoridades do evento homenagearam os congressistas com um concerto dos Niños Cantores na Catedral de São Tomás, em Leipzig, local onde Johann Sebastian Bach foi mestre de capela por vinte e cinco anos e onde compôs uma grande quantidade de cantatas, paixões e Oratórios. Ao lado da nave central sóbria, sob uma lápide de aço, repousam seus restos mortais, com uma inscrição simples e bastante lacônica: Johann Sebastian Bach.

Após o magnífico recital, no qual foram interpretados motetos e corais do cantor de Leipzig, parte da delegação argentina encontrou-se com Bluma Vulfovna a poucos passos do túmulo de Bach. Lembro-me da conversa de nosso Gervasio Paz, com seus quase dois metros de altura (altura física, além de sua altura ética e intelectual), e Zeigarnik. Ela observava atentamente a lápide e, diante de nossa apresentação, talvez para sair um pouco do momento solene e emocionante, Paz a convidou cordialmente para um novo encontro no próximo congresso, quatro anos depois (Acapulco, setembro de 1984). Não consigo recordar exatamente a resposta de Zeigarnik, mas seu sentido foi o seguinte: “Não sei se poderei viajar novamente (olhou o nome de Bach na lápide). Isso já é para vocês, os jovens. Meu caminho agora é outro.”

Agora, em 1985, Bluma Vulfovna Zeigarnik segue seu caminho, caminhando.

Aporte teórico da entrevista

Os dados biográficos de Bluma V. Zeigarnik emergem claramente da entrevista realizada com ela. Talvez seja benéfico ao leitor conhecer, de forma sucinta, quais foram as contribuições de Zeigarnik para a teoria psicológica.

Dessa forma, será possível completar de forma mais clara os eventos relacionados à sua extensa carreira científica.

Cronologicamente

1. A participação de Zeigarnik no movimento gestaltista de Berlim (1922–1926) através de sua colaboração no laboratório e cátedra dirigidos por Kurt Lewin. Este autor, juntamente com os criadores da Gestalt: Koehler, Koffka e Wertheimer, sustentam o princípio da estruturação, da totalidade, na formação do fenômeno psíquico. Conceitualmente, a estrutura é vista como uma organização específica dos conteúdos da percepção, memória e pensamento. A contribuição original dessa teoria, especialmente de Lewin, reside no desenvolvimento de sua própria teoria da ação e, especificamente, da ação voluntária.

Para Lewin, essa inter-relação entre sujeito e meio circundante, e mais ainda, essa inter-relação que estimula e dirige a ação, possui um forte componente dinâmico. O sujeito não apenas age, mas também é objeto dessa ação através das forças externas provenientes do meio que o motivam à ação. Assim, forma-se uma “gestalt”, que neste caso seria um campo de forças, alterando-se conforme as mudanças ocorridas nessas forças. Neste contexto, o nível de tensões, necessidades, motivações e intencionalidades do sujeito assume especial importância. É assim que o caráter desse campo dinâmico influencia significativamente a produtividade da ação e seus efeitos posteriores.

No fenômeno da memória, esse campo se expressa na influência que esses contrastes de forças exercem na produtividade da lembrança e evocação mnemônica.

Zeigarnik investigou esses fenômenos e, em 1927, apresentou suas conhecidas pesquisas, que ficaram registradas na história da psicologia com o nome de “Efeito Zeigarnik”. Em essência, ela demonstrou que a lembrança será mais completa e perfeita quando relacionada a ações não concluídas, incompletas. Por outro lado, ações concluídas e fechadas em termos de conclusão serão menos lembradas.

Em outras palavras: a memória fixa mais o que é incompleto devido à tensão em jogo e às necessidades não resolvidas. Enquanto as ações que completaram seu ciclo enfraquecem consideravelmente a carga de tensão e diminuem a importância das necessidades.

2. Patologia do pensamento

Zeigarnik contesta ativamente as teorias predominantes sobre o tema, especialmente:

a) Psicologia funcionalista, que tenta demonstrar que na base da alteração do pensamento estão alterações nos “antecedentes” do intelecto: memória e atenção.

b) Psicologia compreensiva (Spranger) e Psicologia descritiva (Dilthey), para as quais a natureza deve ser “explicada”, enquanto a mente deve apenas ser “compreendida”. Os psiquiatras alemães que apoiavam essa posição consideravam que na base da esquizofrenia havia uma estrutura “espiritual” original insuficiente, uma “hipotonia da consciência” que determinava toda a sintomatologia da patologia do pensamento;

c) Pensamento autista (Bleuler), que contrasta o pensamento real, reflexo do mundo objetivo, ao pensamento autista dos esquizofrênicos, que não se estrutura com base na realidade nem nas leis da lógica, mas é guiado por “necessidades de tipo afetivo”.

Zeigarnik parte de sua definição de pensamento como generalização e medição do reflexo da realidade. Mais adiante, desenvolve seus conceitos, incluindo-os na teoria geral da atividade (Leontiev), afirmando que é uma forma especial da atividade humana, estruturada na prática, quando o ser humano está diante da situação de resolver uma tarefa. Um dos objetivos fundamentais da psicologia do pensamento é descobrir, em todos os níveis, as leis internas que explicam o processo do pensamento e, a partir dessa explicação, construir uma teoria geral da atividade intelectual.

Com base nisso, Zeigarnik estrutura uma metodologia que lhe permite estudar a patologia do pensamento. Esta metodologia inclui, no trabalho com o paciente, testes de:

a) classificação de objetos;

b) exclusão do objeto inadequado (quarto excluído);

c) método pictográfico;

d) evocação mediada;

e) compreensão do sentido figurado;

f) estabelecimento da sequência de eventos; variante do método associativo.

Zeigarnik agrupa experimentalmente os resultados obtidos e observa que as perturbações do pensamento podem ser características, tanto para os grupos nosológicos quanto para o estado do paciente específico, sendo útil inclusive para uma abordagem sistêmica da doença. No entanto, ela alerta que essas pesquisas serão valiosas para fins de diagnóstico, se não se cair em um uso linear e unívoco dos dados. A utilidade dos mesmos dependerá, segundo a autora, da interação clara com os dados fornecidos pela clínica. A clínica e a psicopatologia do pensamento servirão adequadamente — agora sim — ao trabalho terapêutico encarado.

3. Patopsicologia (1962)

Segundo a autora, a patopsicologia é uma disciplina cujo objetivo é estudar as alterações psíquicas decorrentes de doenças localizadas no cérebro. Disciplina que possui leis e estrutura próprias: as leis de dissolução do processo psíquico, as alterações detectáveis no plano do pensamento.

Ela é considerada um ramo da Psicologia Geral; portanto, segue seus postulados teóricos, mas em sua aplicação prática serve como suporte para a atividade psiquiátrica.

O interessante na abordagem de Zeigarnik é o estudo da alteração do processo psíquico como instrumento necessário para compreender o desenvolvimento do psiquismo normal. Portanto, é importante delimitar o campo de ação da patopsicologia (que é a área desenvolvida por Zeigarnik), em comparação com o campo específico da psicopatologia.

A patopsicologia é um ramo da psicologia geral, enquanto a psicopatologia é um ramo da Psicologia e Psiquiatria. Em alguns momentos, esses ramos coincidem em seus objetos, mas a autora se encarrega de estabelecer uma clara delimitação.

A psicopatologia geral, como ramo da medicina, estuda os sintomas e síndromes mais típicos dos estados patológicos. O objeto da psicopatologia geral […] inclui o problema da gênese e etiologia da doença mental.

A patopsicologia, por ser um ramo da ciência psicológica, parte de seus postulados fundamentais: o princípio do determinismo e o princípio do desenvolvimento. A patopsicologia se dedica à pesquisa da estrutura de uma ou outra forma de alteração da atividade psíquica e à pesquisa das leis da deterioração em comparação com a normalidade. Ela deve dar uma qualificação dos fenômenos psicopatológicos utilizando os conceitos da psicologia contemporânea.

Em Zeigarnik, há uma profunda preocupação com a personalidade do paciente afetado por distúrbios psicopatológicos. Ela propõe a necessidade de revisar os conceitos de sintoma e personalidade. Considera que esses dois conceitos são abordados nos tratados clássicos de psiquiatria como alterações da função psíquica ou, na ausência disso, alterações dos processos fisiológicos. É a partir dos princípios gerais da psicologia marxista que a análise do fenômeno psicopatológico contemplará a personalidade total do doente, especialmente as mudanças em fenômenos tão essenciais como atitudes, necessidades e interesses.

A metodologia usada na pesquisa patopsicológica abrange os seguintes itens:

a) Experimento psicológico para fins de diagnóstico diferencial;

b) Experimento psicológico para analisar a estrutura da alteração do processo;

c) Experimento psicológico para investigar o grau de alteração do mesmo.

4. Teoria da personalidade.

Nos últimos anos (1982), Zeigarnik se dedica ao estudo das diversas teorias de personalidade vigentes em todo o mundo. Ela analisa, por um lado, a “evidente crise” de diferentes escolas e as bases metodológicas que delas surgem. Por outro lado, mostra as diferentes tentativas de superar essa crise, algumas dentro do contexto de uma orientação marxista.

Ela encontra um fator comum em quase todas as escolas: a emergência, como uma substância independente da personalidade, surgida por si só e também explicada por si só. Ela estuda profundamente as diferentes teorias de personalidade que proliferam pelo mundo, a oposição entre personalidade e meio. As bases metodológicas relacionadas ao desenvolvimento intrínseco da teoria.

Zeigarnik começa seus estudos a partir de S. Freud e seu pansexualismo (concepção biologista da personalidade); continua com a importante série de autores neofreudianos, entre os quais encontra posturas e concepções a serem consideradas. Autores que rejeitam a biologização da posição ortodoxa em favor da sociologização ou, pelo menos, da psicologização da personalidade.

Zeigarnik demonstra que a tentativa de sociologizar a psicanálise foi registrada através da tentativa de Jung (inconsciente coletivo), assim como de K. Horney, E. Fromm e outros (psicologização dos fenômenos sociais). As confrontações entre personalidade e sociedade (Horney) não fazem mais do que manter, em última instância, as raízes biológicas em todas essas concepções centradas na personalidade.

Ela continua seus estudos analisando as concepções “humanistas” referentes à personalidade, sobretudo no que diz respeito à estruturação da personalidade “forte, saudável”, em clara comparação com o estudo das personalidades neuróticas dos autores citados anteriormente. Ela realiza outras abordagens críticas em relação ao existencialismo e à escola sociológica francesa, onde destaca a personalidade como produto do desenvolvimento social, mas reconhece a ausência nelas de uma teoria completa do desenvolvimento e formação da personalidade.

Seus esforços mais recentes estão concentrados em analisar as diferentes posições marxistas que convergem para uma concepção de personalidade considerada como produto das relações sociais. Ela analisa detalhadamente as posições de Lucien Seve e as relações com as de A. N. Leontiev.

Finalmente, ela tenta uma abordagem sobre a prática psicoterapêutica, reconhecendo que muitas teorias de personalidade surgiram e se popularizaram graças à experiência clínico-terapêutica de seus autores. Ela está atualmente trabalhando nestes temas: psicoterapia e personalidade, aos 85 anos de idade

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Bruno Bianchi
Kátharsis

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB