S. Ia. Rubinstein — Ideias de L. S. Vigotski no campo da Patopsicologia (1981)

Publicado originalmente em Arestova, T. A. (ed.) Nautchnoe tvortchestvo L. S. Vigotskogo i sovremennaia psikhologuiia, 1981, p. 132–135. Tradução por Achilles Delari Jr.

Bruno Bianchi
Kátharsis
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8 min readApr 15, 2024

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L. S. Vigotski propôs distinguir indícios[1] nucleares e primários de retardo mental das camadas secundárias e terciárias que se sobrepõem a esse núcleo. Dentre as camadas secundárias, Vigotski incluiu as formas superiores de memória, pensamento e caráter.

Assim, Vigotski escreveu: “a pri­meira e mais frequente consequência que surge como síndrome secundária no retardo mental é o desenvolvi­mento incompleto de funções psicoló­gicas superiores. Isso, frequentemente, pressupõe um desenvolvimento in­completo de formas superiores de me­mória, pensamento, caráter, constituí­das e originadas no processo social de desenvolvimento da criança. Junto a isso, é notável o fato de que, por si mesmo, o desenvolvimento incom­pleto de funções psicológicas superio­res não esteja necessariamente relacio­nado com o quadro da debilidade” [Vigotski L. S. Diagnóstico do desenvolvimento e clínica pedológica da in­fância difícil. — M., 1936, p. 29][2]. E em outro trabalho seu: “a psicologia in­fantil … estabeleceu-se com base na concepção de que o domínio de formas culturais de comportamento é um sin­toma tão natural da maturação orgâ­nica quanto certos indícios corporais. Posteriormente, esses sintomas come­çaram a ser confundidos com o conte­údo do desenvolvimento orgânico. Primeiro, observou-se que um atraso no desenvolvimento da fala ou uma incapacidade de dominar a lin­guagem escrita em determinada idade são frequentemente sintomas de re­tardo mental. Posteriormente, esses fe­nômenos começaram a ser confundi­dos com a própria essência de tal con­dição, cujos sintomas eles [tais fenô­menos] podem manifestar sob deter­minados requisitos. Toda a defectologia tradicional, todos os ensinamentos sobre desenvolvimento e característi­cas de uma criança anômala, até mais do que a psicologia infantil, foi im­pregnada pela ideia de uniformidade e unicidade do processo de desenvol­vimento infantil e colocou característi­cas primárias (biológicas) e secundá­rias (culturais), da criança com defici­ência, em uma única série de conse­quências do defeito” [Vigotski, L. S. Desenvolvimento das funções psíqui­cas superiores. — M., 1960, p. 54–55][3].

Se concordamos com essas proposições de Vigotski, surge a necessidade lógica de revisar muitas das proposições fundamentais da defectologia, em particular a proposição de que a principal síndrome da oligofrenia consiste em debilidade das generalizações e das abstrações. Esta proposição já foi estudada por muitas gerações de estudantes, médicos, educadores e defectologistas; ela entrou em muitas monografias.

Os fatos contradizem tal entendimento sobre a principal síndrome da oligofrenia. Em primeiro lugar, por dados de catamnese postergada, verifica-se que os graduados de escolas auxiliares com sucesso obtêm emprego e trabalham, dominando até mesmo profissões complexas. Em segundo lugar, investigações mostram que a orientação negativa da personalidade de adolescentes é significativamente mais comum em estudantes mal sucedidos de uma escola de massas do que em oligofrênicos que se formaram em escolas auxiliares. E em terceiro lugar (o que, talvez, seja o mais importante de tudo), as operações intelectuais de generalização e abstração são resultado do aprendizado da criança. Portanto, você só pode comparar crianças instruídas com mais ou menos sucesso.

Por si só, o fato da disponibilidade (ou indisponibilidade) de compreensão de conceitos diferentes por sua medida de generalidade[4] não pode ser critério para diferenciação clínica.

A peculiaridade da história do desenvolvimento individual da criança com retardo mental consiste em que o desenvolvimento de sua psique é dificultado. Os fatores adversos mais importantes e condutores são o fraco desejo de saber (orientação) e a lenta e dificultada educabilidade da criança, ou seja, sua pobre suscetibilidade para o novo. Estes são sinais internos, biológicos (nucleares) de retardo mental. Por causa disso, a criança decai no coletivo infantil, passa sem tocar duas grandes etapas da vida psíquica (domínio de ações objetivas e jogo protagonizado). Secundariamente, ela tem um desenvolvimento incompleto de todas as funções mentais superiores (pensamento, memória, caráter, etc.).

As ideias de Vigotski sobre essas questões não têm significado apenas teórico, mas também excepcionalmente prático. Elas são importantes para a orientação do trabalho correcional.

Referindo-se às investigações de Lebenshtein[5] realizadas sobre gêmeos monozigóticos (as quais estabeleceram que processos psicológicos mais elementares deles são mais homogêneos, enquanto os superiores são mais sujeitos à educação e, portanto, podem ser diferentes), Vigotski escreve: “Quanto mais longe está o sintoma da causa, no entanto, ele mais se presta a estar sujeito à educação e ao impacto terapêutico […]. O desenvolvimento incompleto de funções psíquicas superiores e formações caracterológicas superiores, que é uma consequência secundária na oligofrenia e na psicopatia, na verdade é menos estável, mais passível de influência, mais removível que o desenvolvimento incompleto de processos inferiores ou elementares, diretamente causados pelo próprio defeito. O que surgiu no processo de desenvolvimento da criança como formação secundária, em princípio, pode ser antecipado profilaticamente ou reparado de modo pedagógico-terapêutico” [“Diagnóstico do desenvolvimento e clínica pedológica da infância difícil”, p. 45].

Vigotski estendeu suas ideias a outras áreas da patologia, em particular à compreensão da esquizofrenia[6]. A utilização dessas proposições poderia promover mudanças substanciais na clínica psiquiátrica.

Vigotski observa que, na esquizofrenia, juntamente com causas hereditárias e, como ele expressa, defeitos “orgânicos” (no sentido de biológicos, inerentes à esquizofrenia), são observados “arabescos psicogênicos” que cresceram sobre o solo desses defeitos. Ele aprova psiquiatras que reconheceram uma complexa superestrutura psíquica reativa sobre as principais síndromes da esquizofrenia. Ele ressalta que a presença de camadas neuróticas e psicogênicas histéricas dá motivos para esperar sucesso parcial da psicoterapia naquele adoecimento. Mas o mais importante, enfatiza Vigotski, é não confundir sintomas básicos e secundários, surgidos no processo da vida individual.

Porém se Vigotski está certo, então muito se modifica para as proposições da psiquiatria, sua ciência e sua prática

As tentativas de inferir todos os sintomas de uma patologia psíquica a partir da causa da doença e, consequentemente, basear nisso o diagnóstico diferencial, tornam-se menos justificadas. Se todos os sintomas são determinados a partir da própria doença, então cada um adquire um significado, reconhecido ou ainda não reconhecido, mas um significado diagnóstico. Infelizmente, a atividade de uma pessoa doente, seu modo de vida durante a doença, é agora levada em conta de forma extremamente insuficiente na análise psicopatológica. Muda-se as representações sobre a essência e as causas da doença (explicações morfológicas são substituídas por bioquímicas, genéticas e outras), mas muda-se pouco as maneiras de interpretar os sintomas. Eles são determinados, em grande parte, pela própria doença, ou seja, de dentro. Enquanto isso, Vigotski estima que os sintomas individuais estão em relação diferente e extremamente complexa com a causa subjacente. “Não se alinha — escreve ele — todos os sintomas em uma série, na qual cada item está em relação completamente idêntica com a causa que deu origem a toda a série” [ibid., p. 28].

Mesmo a partir deste resumo das ideias de Vigotski no campo da patopsicologia, fica claro que há um traba­lho longo e meticuloso a ser feito sobre sua utilização em vários campos da ciência. A realização de tal trabalho é justificada pelo significado prático e vital dessas ideias.

Referências das notas da tradução

Arestova, T. A. (ed.) (1981) Nautchnoe tvortchestvo L. S. Vigotskogo i sovremennaia psikhologuiia. Tezisi dokladov Vsesoiuznoi konferentsiia. Moskva, 23–25 iuniia, 1981 g. 198 p.

Lazarev, A. V. (2007/2019) The Comprehensive Portuguese-Russian Dictionary. 115.000 entries. In: ABBYY. Lingvo European Electronic Dictionary. Version 1.11.1. Russia.

Nikoshkova, E.V. (2006/2019) The English-Russian dictionary of psychology. 20.000 entries. In: ABBYY. Lingvo European Electronic Dictionary. Version 1.11.1. Russia.

Vigotski, L. S. (vários/1960) Razvitie visshikh psikhitcheskikh funktsii. Iz neopublikovannikh trudov. Moskva: Izdatel’stvo Akademii Pedagoguitcheskikh Nauk RSFSR. 500 p.

Vigotski, L. S. (1931/1960) Istoriia razvitiia visshikh psikhitcheskikh funktsii (Gl. I-V). In: Razvitie visshikh psikhitcheskikh funktsii. Iz neopublikovannikh trudov. Moskva: Izdatel’stvo Akademii Pedagoguitcheskikh Nauk RSFSR. p. 13–223.

Vigotski, L. S. (1931/1983) Diagnostika razvitiia i pedologuitcheskaia klinika trudnogo detstva. In: Sobranie sotchinenii v shesti tomakh. Tom piatii. Osnovi defektologuiia. Moskva: Pedagoguika. p. 257–321.

Vigotski, L. S. (1931/2020) O pensamento na esquizofrenia. Umuarama-PR: “Estação MIR”, arquivos digitais. 21 p. Disponível em: https://vigotski.org/lsv_1931_pns-sqz.pdf

Vigotski, L. S. (1933/2020) Psicologia da esquizofrenia. Umuarama-PR: “Esta-ção MIR”, arquivos digitais. 8 p. Disponível em: https://vigotski.org/lsv_1933_psi-sqz.pdf

Vygotski, L. S. (1931/1997) Diagnóstico del Desarrollo y clínica paidológica de la infancia difícil. In: Obras escogidas. Tomo V. Fundamentos de defectología. Madrid: Visor. p. 275–338.

Vigotski, L. S. (1933–34/1934) Glava shestaia. Issledovanie razvitiia nautchnikh poniatii v detskom vozraste. In: Mishlenie i retch’. Psikhologuitcheskie issledovaniia. Moskva; Leningrad: Gosudarstvennoe Sotsial’no Ekonomitcheskoe Izdatel’stvo, 1934a. p. 163–259.

Vigotski, L. S. (1933–34/2001) Estudo do desenvolvimento dos conceitos científicos na infância. In: A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes. p. 241–394.

Vigotski, L. S. (1934/2007) Capítulo sexto: Estudio del desarrollo de los conceptos científicos en la infancia. In: Pensamiento y habla. Buenos Aires: Colihue, 1934/2007. p. 265–422.

Vygotsky, L. S. (1931/1994) Thought in schizophrenia. In: The Vygotsky reader. Oxford, UK; Cambridge USA: Basil Blackwell, 1994. p. 313¬326.

Vygotsky, L. S. (1933/1987) The psychology of schizophrenia. In: Soviet Psychology. 1987. p. 72–77.

NOTAS

[1] Em russo, priznaki, plural de priznak: indício, sinal, vestígio. Vigotski, várias vezes, diz simptom (sintoma) com a acepção de “indício”, referindo-se a traços que “indicam” a especificidade de determinado período de desenvolvimento. Aqui, mesmo em tema relativo a situações atípicas de desenvolvimento, a autor diz priznaki. Suponho ser melhor traduzir por “indícios”, pois se ela desejasse dizer “sintoma” também poderia valer-se de simptomi — ainda que, em algumas situações, os dois termos possam ser sinônimos em russo, e mesmo em português — N. T.

[2] Trata-se de obra publicada novamente no tomo quinto das “Obras reunidas em seis tomos” de L. S. Vigotski (cf. Vigotski, 1931/1982; Vygotski, 1931/1997) — N. T.

[3] Trata-se da segunda publicação de textos escolhidos de Vigotski, depois do período de proibição das obras de pedologistas de 1936 até, pelo menos, 1953 (ano da morte de Stálin) (cf. Vigotski, vários/1960). O trabalho citado é exatamente “História do desenvolvimento das funções psíquicas superiores” (1931/1960), em sua edição com apenas 5 capítulos. Edição ampliada da obra que os contém data de 1983, com 15 capítulos (Vigotski, 1931/1983; Vygotski, 1931/2000). Ou seja, veio a público, dois anos após o evento em que S. Ia. Rubinstein apresenta estas de informe — N. T.

[4] Em russo, “mera obshshnosti paniatia”: “medida de generalidade do conceito”. Termo utilizado por Vigotski para referir-se ao quão geral ou específico pode ser um conceito, tal como estabelecido pelo acúmulo histórico de dada cultura. Por exemplo, ao estipularmos que “vivo” é mais geral que “animal” ou “vegetal”; que “animal” é mais geral que “vertebrado” ou “invertebrado”; e assim por diante. No processo de desenvolvimento de qualquer criança, de início, o grau de generalidade de cada conceito em relação aos demais não estará organizado de modo sistemático como aquele que determinados saberes sociais já estabeleceram (cf. Vigotski 1933–34/1934; Vigotski 1933–34/2001; 1933–34/2007). A autora chama atenção para que mesmo se a diferença entre o “grau de generalidade” de dois conceitos não esteja claramente definida para alguém, isso não constitui critério para diferenciação clínica. Possivelmente porque depende essencialmente de processos educacionais, lato sensu — N. T.

[5] No tomo 5 das “Obras reunidas em seis tomos” de L. S. Vigotski, o nome consta como “S. Lebenshtein”, sem mais informações. Até o momento não foi possível encontrar dados biográficos sobre esta pesquisadora ou este pesquisador — N. T.

[6] Cf. Vigotski (1931/2020; 1933/2020) e Vygotsky (1931/1994; 1933/1987) — N. T.

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Bruno Bianchi
Kátharsis

Pai. Psicólogo e especialista em gestão pública. Tradutor e militante do PCB